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Fiança: a perda de aplicabilidade no ordenamento pátrio

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Criou-se um novo modelo de liberdade provisória, sem fiança, que passou a ser utilizado como regra no âmbito processual penal na concessão do benefício.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ESTADO DE DIREITO COMO LIMITE AO PODER ESTATAL. 2.1- Estado de direito e princípio do estado de inocência. 2.2- Legitimidades da exigência da fiança e princípio do estado de inocência. 3. CONTEXTO HISTÓRICO. 3.1- Origem. 3.2- Evolução do instituto no ordenamento penal pátrio. 3.3- Conceito. 3.4- Natureza Jurídica. 4. ASPECTOS RELEVANTES. 4.1- Finalidade. 4.2- Fixação do valor da fiança. 4.3- Modalidades de fiança. 5. DELITOS CONSTITUCIONALMENTE INAFIANÇÁVEIS E LIBERDADE PROVISÓRIA. 5.1- Interpretação do artigo 310, parágrafo único. 5.2- Delitos Inafiançáveis. 6. FIANÇA: PERDA DA APLICABILIDADE. 6.1- Contradição. 7. CONCLUSÃO. 8. REFERÊNCIAS


1. Introdução

Para uma melhor compreensão do instituto da fiança, é importante ressaltar que, com o advento da Lei 6416/77 e, mormente, com o status constitucional de direito fundamental alcançado pelo princípio do estado de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, muitas transformações ocorreram no trato da matéria. Neste contexto, criou-se um novo modelo de liberdade provisória, sem fiança, que passou a ser utilizado como regra no âmbito processual penal na concessão do benefício.

Tendo em vista toda esta mudança no nosso ordenamento, indaga-se, na presente pesquisa, acerca da aplicabilidade do instituto, sua utilidade nos moldes em que se encontra hodiernamente estruturado no ordenamento penal pátrio e a necessidade de sua reformulação para que possa servir como instrumento cautelar que vincule efetivamente o indivíduo ao processo, atenda suas demais finalidades e seja utilizado coerentemente, de maneira a evitar as gritantes distorções existentes, ocasionadas, sobretudo, pelo tratamento dado ao instituto sem nenhuma sistematização e pela falta de primor técnico do legislador pátrio. Pergunta-se se é legítimo exigir maiores ônus ao indivíduo preso em flagrante delito em crimes mais levemente apenados e exigir menos encargos àqueles presos em flagrante em delitos mais graves, pelo simples fato de não preencher os requisitos da liberdade provisória mais onerosa.

Para tal mister, serão abordados alguns tópicos lançados pela doutrina e jurisprudência pátrias, procurando demonstrar que a confusão em sua compreensão tem contribuído de maneira decisiva para a incoerência no trato da questão.

A análise do instituto se deterá às hipóteses de prisão em flagrante, visto que são as situações mais freqüentes e importantes em que o instituto encontra aplicação.

O referencial teórico que embasou a referida pesquisa foi o princípio do estado de inocência, garantia constitucional que deita suas raízes no estado de direito e que se mostra plenamente compatível com a exigência da fiança.

Procuraremos demonstrar que, se efetivamente houver uma reformulação da fiança, para que seja exigida coerentemente nas situações cabíveis, adequando-se os ônus suportados pelo indivíduo à gravidade do delito praticado, e que se houver a fixação de seu valor em patamares razoáveis, compatíveis com as condições de fortuna do acusado, o instituto trará inegável contribuição para a jurisdição penal.

O trabalho é dividido em cinco partes: após a introdução, no segundo capítulo, busca-se compreender o princípio do estado de inocência como direito fundamental oriundo do estado de direito e demonstrar sua compatibilidade com a exigência da fiança. O terceiro capítulo trata da origem e evolução do instituto e a controvérsia existente a respeito de sua natureza jurídica, buscando demonstrar que muito de seu tratamento incongruente tem origem nesta controvérsia. No quarto capítulo, passa-se a analisar alguns aspectos relevantes, dentre eles, a sua finalidade, os critérios e a inobservância deles na fixação de seu valor, bem como as diversas alterações no padrão monetário do país que contribuíram para a fixação de seu valor em patamares irrisórios, deixando assim de atender as finalidades para as quais foi criada. No quinto capítulo, analisaremos a discussão a respeito do real alcance e sentido dos delitos inafiançáveis previstos na Constituição Federal e sua relação com a liberdade provisória, bem como doutrina e jurisprudência vêm se posicionando a respeito. No sexto capítulo, demonstraremos as distorções surgidas a partir do advento da Lei 6416/77, e a interpretação, que a nosso sentir, seja a mais correta do parágrafo único do artigo 310 do CPP, a qual contribuirá, ao final, para trilhar a conclusão de que, a partir da reformulação do instituto tendo em vista atender efetivamente as finalidades para as quais foi criado e de que sua exigência não fere o princípio constitucional do estado de inocência, é possível resgatar sua aplicabilidade, reduzida em nosso ordenamento.

O método de abordagem foi o dedutivo, pois é a forma que mais se adéqua aos objetivos propostos na presente pesquisa, partindo-se do pressuposto de que há normas em vigor que servem de base para se chegar a um conhecimento novo. Partindo-se do princípio do estado de inocência e da sua compatibilidade com a cautelaridade, característica imanente à fiança, tem-se o objetivo de demonstrar que a perda da aplicabilidade da fiança ocorreu, sobretudo, devido à confusão na compreensão do instituto, no tratamento assistemático dado pelo legislador e nas inúmeras alterações legislativas que trouxeram incongruência e inegável inconsistência no trato da matéria e que benefícios poderão ser alcançados, sendo necessário, entretanto, uma completa reestruturação da fiança em nosso ordenamento, de modo a dar um tratamento sistemático e coerente à matéria revigorando assim sua utilidade.

A pesquisa assumiu feição multidisciplinar, por existir uma imbricação de elementos pertinentes à Teoria Geral do Estado, ao Direito Constitucional, Penal e Processual Penal.

Quanto às técnicas de pesquisa, optou-se pela documentação indireta, através de pesquisa ao disposto na referência bibliográfica, recorrendo-se, primordialmente, a fontes da doutrina pátria, jurisprudência e artigos científicos para a perfeita conformação do tema.


2. Estado de direito como limite ao poder estatal

2.1 Estado de direito e princípio do estado de inocência

O Estado de direito surge como mecanismo para impor limites e evitar o exercício incontrolado do poder pelo Estado, mediante submissão deste às leis e ao direito, de modo que não só a atuação do executivo, mas também do judiciário deve encontrar respaldo legal. É no governo das leis que se reconhecem direitos, liberdades e garantias aos cidadãos face ao Estado.

O termo Estado de Direito é uma construção lingüística e uma cunhagem conceptual própria do espaço lingüístico alemão, sem correspondentes exatos em outros idiomas; e aquilo que nas suas origens se queria designar com esse conceito, é também uma criação da teoria do Estado do precoce liberalismo alemão, em cujo âmbito significava o Estado da razão; o Estado do entendimento; ou, mais detalhadamente, o Estado em que se governa segundo a vontade geral racional e somente se busca o que é melhor para todos (BÖCKENFÖRDE apud MENDES, 2008, p.41- 42).

Segundo Gomes Canotilho (1993, p.348-349), "o conceito de Estado de direito surge como um conceito temporalmente condicionado, aberto a influências e confluências cambiantes do Estado e da constituição e a várias possibilidades de concretização". As garantias formais e o estabelecimento de regras procedimentais como forma de garantir as liberdades individuais surgiram como manifestação do Estado liberal e formal do direito e dele decorre o surgimento do status negativus do indivíduo, cuja esfera de liberdade só poderia sofrer restrição estatal desde que autorizado por lei e nos limites por ela definidos.

As manifestações modernas do Estado de direito surgiram como resposta ao absolutismo, visando garantir uma esfera de liberdade, de modo que nela, o Estado só poderia intervir se estivesse amparado na lei. Esta proteção num primeiro momento residia principalmente em resguardar a liberdade individual, para que não ocorressem detenções arbitrárias por parte do Estado. Neste sentido, Reinhold Zippelius (1997, p.384-385) afirma que:

A história da liberdade do cidadão é uma história de restrição e do controlo do poder do estado. [...] A ação do Estado devia ser controlada através de regras procedimentais (relativos aos procedimentos legislativos, administrativos e jurisdicionais) protegendo-a contra o arbítrio. Deviam também ser criados mecanismos de controlo judicial e outros cuja função era fiscalizar a observância das regras de jogo do sistema de regulação jurídico.

Destarte, uma das principais funções do Estado de Direito em sua ótica liberal, consistia em evitar e reprimir práticas arbitrárias do Estado contra os indivíduos, de forma que estes tivessem mecanismos para resistir às investidas ilegítimas que violassem suas liberdades. Desta forma, só cabe restringir as liberdades individuais quando e na medida em que for necessário para atingir e proteger os interesses da comunidade.

É neste contexto que se desenvolve o princípio do estado de inocência, entendido como direito fundamental de defesa do indivíduo em face de ingerências do poder estatal em sua liberdade. Neste sentido, Ingo Sarlet (2003, p. 176):

Acima de tudo, os direitos fundamentais - na condição de direitos de defesa - objetivam a limitação do poder estatal, assegurando ao indivíduo uma esfera de liberdade e outorgando-lhe um direito subjetivo que lhe permita evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental ou mesmo a eliminação de agressões que esteja sofrendo em sua esfera de autonomia pessoal.

E, neste particular, a partir da norma contida no artigo 5º, §1º [01] , da Constituição Federal, podemos afirmar que tal princípio possui normatividade suficiente para a produção de seus efeitos essenciais, sendo de observância obrigatória e vinculante a todos os poderes estatais, dotado de eficácia plena e aplicabilidade imediata em nosso ordenamento, não necessitando da atividade legislativa para que ele possa vir a ser concretizado.

Luigi Ferrajoli (2002) explica que tal princípio remonta suas origens no direito romano, entretanto, com o advento da idade medieval e do processo inquisitorial acabou ofuscado, só sendo revigorado a partir do início da idade moderna, com o surgimento das correntes iluministas [02], sendo novamente mitigado no fim do século XIX, influenciado, sobretudo, pelo autoritarismo presente na cultura penalista da época e, somente a partir da segunda metade do século XX é que o princípio passou a ser novamente observado em vários ordenamentos jurídicos.

Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado [...] A presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica "segurança" fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica "defesa" destes contra o arbítrio punitivo (FERRAJOLI, 2002, p.441).

Ressalte-se que, apesar de parte da doutrina e jurisprudência se referir "princípio da não culpabilidade" ou "princípio da presunção de inocência", estamos com Eugênio Pacelli, que, ao discorrer sobre o tema, assevera que:

A nossa Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim, tanto a fase investigatória (pré-processual) quanto a fase processual propriamente dita (ação penal) (PACELLI, 2007, p. 415).

Desta forma, o autor afirma que, diferentemente de constituições alienígenas que se referem a princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, a nossa não faz nenhuma referência nesse sentido, devendo-se qualificar, portanto, a norma constante no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição como princípio do estado ou situação de inocência, e desta forma, o indivíduo não é presumido inocente até que se prove o contrário, mas sim é inocente até que fique demonstrada a sua culpabilidade.

2.2 Legitimidade da exigência da fiança e princípio do estado de inocência.

No âmbito processual penal, chama-se a atenção para o fato de que, apesar de ter sido o nosso código elaborado sob a égide de um Estado de Direito, alguns institutos, como a prisão provisória, sofreram grandes influências das concepções dominantes da época, algumas delas incompatíveis com o Estado de Direito. Naquele tempo, a regra nos casos de prisão em flagrante era o recolhimento do indivíduo ao cárcere, em que se partia do pressuposto de que o preso em flagrante delito era culpado [03], e desta maneira, a regra era permanecer encarcerado ao longo do processo e, somente em casos excepcionais se admitia a liberdade provisória, e mesmo assim, mediante prestação da fiança que era a única modalidade existente.

Esta situação começou a mudar a partir da edição da Lei 6416/77, que criou outra modalidade de liberdade provisória, sem fiança, exigindo apenas que o acusado comparecesse aos atos do processo quando intimado, invertendo a regra até então vigente de que o indivíduo preso em flagrante somente excepcionalmente seria posto em liberdade.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tal tendência ganhou corpo e se consolidou com o status constitucional de direito fundamental alcançado pelo princípio do estado de inocência, presente no artigo 5º, LVII [04], da Constituição Federal.

Por tal princípio, conforme ensinamentos de Eugênio Pacelli (2007), há duas regras específicas que devem ser observadas. A primeira diz respeito à impossibilidade de o réu durante a persecução penal sofrer restrições pessoais com base exclusivamente na possibilidade de sofrer condenação. A segunda diz respeito ao contexto probatório, em que as provas atinentes a autoria do fato e de sua existência ficaria a cargo exclusivamente da acusação. Eventual alegação de excludentes da ilicitude ou da culpabilidade, caso alegado pela defesa deveria, ai sim, ser por ela comprovada.

É no contexto da prisão provisória, mormente, que sobressai a importância do primeiro aspecto, uma vez que, somente em casos excepcionais e presentes razões cautelares, é que se deve recolher o indivíduo ao cárcere antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, pois, fora esta situação, estaria sendo antecipada a prisão-pena, que só é legítima após a condenação definitiva do réu. Desta maneira, se não há razões para se manter no cárcere o indivíduo preso em flagrante delito, descabe conservá-lo na prisão com base exclusivamente na possibilidade de ele vir a ser eventualmente condenado.

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Vale ressaltar que nenhum direito ou garantia fundamental é absoluto, de modo que, legítima é a restrição de tais direitos e garantias, desde que devidamente justificado e autorizado por lei e que se mantenha intacto o seu núcleo essencial. É neste contexto que se justifica e se legitima a exigência da fiança, como medida cautelar que restringe direitos fundamentais em prol de interesses maiores da comunidade em esclarecer o delito e punir o responsável. A exigência de fiança não se relaciona com a antecipação da culpabilidade do indivíduo, mas sim como medida destinada a garantir a efetividade da persecução penal e neste sentido com o caráter cautelar.

Destarte, não há qualquer incompatibilidade entre o princípio do estado de inocência e o instituto da fiança, sendo legítima a sua exigência como medida cautelar no seio do processo.

Entretanto, conforme passaremos a ver, não obstante cabível a exigência da fiança para que o indivíduo possa responder ao processo penal em liberdade, o instituto acabou por perder grande parte de sua utilidade e razão de existir no âmbito da prisão em flagrante nos moldes em que se encontra atualmente estruturado. Importante para compreendermos a razão desta perda de aplicabilidade é analisarmos todo contexto histórico em que o instituto está inserido.


3. Contexto Histórico

3.1 Origem

A fiança em sua origem tinha caráter fidejussória, que consistia no empenho da palavra de pessoa idônea, que garantia que o réu iria acompanhar a instrução criminal e se apresentaria em caso de eventual condenação (NUCCI, 2008).

Na Grécia, nos crimes que não envolviam conspiração política ou peculato, permitia-se ao réu ficar em liberdade, desde que, três outros cidadãos prestassem caução e se comprometessem a garantir a presença do réu nos atos processuais (ROCHA; BAZ, 1999).

Já entre os romanos, anteriormente ao período imperial, era permitido ao indivíduo defender-se em liberdade, exceto nos crimes contra a segurança do Estado, desde que pagasse fiança ou prestasse o compromisso de comparecer aos atos processuais, no caso de ser pobre. Com o advento do período imperial, o instituto da liberdade provisória ficou sob o poder discricionário do juiz, como mero favor caso concedido ao indivíduo. No direito português, nas Ordenações eram previstas as seguintes modalidades de liberdade provisória (ROCHA; BAZ, 1999):

Seguro ou carta de segurança: O acusado fazia uma promessa em juízo para se livrar solto e para tanto também era sujeito a observar determinadas condições.

Homenagem ou menagem: Era concedida somente a determinadas pessoas, tidas como qualificadas, e era uma espécie de privilégio que gozavam para responder a processo em liberdade e deveriam permanecer em determinado local, cidade, castelo, durante o processo.

Caução por fiéis carcereiros: Consistia na palavra dada por fiadores considerados idôneos que o réu compareceria a todos os atos processuais, e desta forma, era concedido a ele a graça pelo rei, que permitia que respondesse o processo em liberdade.

Fiança: O réu prestava uma caução que lhe permitiria responder o processo em liberdade e assegurava a sua apresentação no dia do julgamento.

Segundo Eugênio Pacelli (2007), a fiança em sua origem, tinha caráter fidejussória, juntamente com as cartas de seguro, a homenagem, os fiéis carcereiros, e consistia em uma garantia que assegurava a apresentação do preso no dia do julgamento.

Posteriormente, na legislação imperial, a Constituição de 1824, e o Código de Processo Criminal de 1832 resumiram todas as diversas modalidades de liberdade provisória a uma única: a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, já transformada, então, em garantia real, e não mais fidejussória (PACELLI, 2007).

3.2 Evolução do instituto no ordenamento penal pátrio

Na legislação imperial, de todas as espécies de liberdade provisória, conforme supramencionado, somente a fiança foi adotada pelo Código de Processo Penal de 1832 e pela Constituição de 1824. Naquele código, se deferia tanto ao acusado, como a um particular a possibilidade de prestar a fiança, e neste caso, o particular poderia atuar em defesa de seu patrimônio, de forma que a ele fosse dado auxílio para a captura do acusado que tivesse quebrado a fiança ou que tivesse fugido após a condenação (ROCHA; BAZ, 1999).

A liberdade com o pagamento de fiança era a única modalidade de liberdade provisória. Caso o crime fosse inafiançável, deveria o réu aguardar o julgamento preso.

Vem desde a época do império a exigência de o acusado demonstrar que não estava impedido de responder ao processo em liberdade.

Seguindo a tendência da época imperial, a Constituição da República de 1891 e o Código Penal de 1890 também mantiveram a concessão da liberdade provisória somente mediante fiança (1999).

O Código de Processo Penal de 1941, atualmente em vigor, regulou a liberdade provisória no Título IX, Capítulo VI, do Livro I.

O atual código, em sua redação originária, também adotou como regra a prisão do indivíduo, possibilitando somente a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança e excepcionalmente, admitia-se a liberdade sem fiança nos casos em que se pudesse comprovar de plano que o crime estava acobertado por uma excludente da antijuridicidade, de acordo com o disposto no artigo 310, caput do CPP (PACELLI, 2007), nas hipóteses constantes no artigo 321 do CPP, em que havia ampla possibilidade de não ser imposta ao réu pena privativa de liberdade ao final do processo devido à leve apenação de tais delitos ou que não fosse cumulativa ou alternativamente imposta pena privativa de liberdade e na hipótese do artigo 350 que dispõe da impossibilidade do réu prestar a fiança por motivo de pobreza. Desta forma quando a lei estabelecia que o crime era inafiançável, ou que para ele não cabia fiança, conforme previsto nos artigos 323 e 324 do CPP, a conseqüência era o preso ser mantido na prisão até julgamento (PACELLI, 2007).

Até o advento da Lei 6416/77, só havia uma modalidade de liberdade provisória, que era mediante o pagamento de fiança e se um crime era inafiançável, não caberia a liberdade provisória.

O Código de Processo Penal originariamente tratava desse tema de forma bastante simples, mas inúmeras alterações legislativas tornaram o assunto extremamente complexo e com uma indisfarçável inconsistência.

Este sistema inicialmente adotado partia da presunção de culpa de quem fosse preso em flagrante delito, fazendo assim um juízo antecipado de culpabilidade sobre o autor do fato. A regra com relação à situação de flagrância era a manutenção da prisão cautelar. A liberdade sem fiança era a exceção, só sendo concedida nas hipóteses previstas, conforme supramencionadas.

Entretanto, este sistema foi reformulado a partir da Lei 6416/77, que inseriu o § único no artigo 310, e, se passou a admitir a liberdade provisória sem a prestação de fiança mesmo quando previsto a inafiançabilidade do crime. Assim a prisão passou a ser a exceção em caso de prisão em flagrante delito, tornando-se a liberdade a regra.

O instituto da fiança teve, após a citada lei, sua aplicabilidade reduzida substancialmente no ordenamento jurídico pátrio, já que o artigo 310,§ único do CPP estendeu a regra nele constante para a quase totalidade dos crimes, excetuado obviamente, àqueles casos previstos em regra especial, presentes tanto no Código de Processo Penal quanto em legislação extravagante que determinam a não aplicação do § único do artigo 310 do CPP.

Desta forma, não se verificando as razões para a prisão preventiva, constantes no artigo 312 do CPP, mediante prévia oitiva do Ministério Público e termo de comparecimento aos atos do processo, o réu tem o direito subjetivo público de obter a liberdade provisória sem necessidade de pagamento de fiança (PACELLI, 2007). Este passou a ser o regime efetivamente utilizado, tornando praticamente inútil o regime da liberdade provisória mediante fiança no âmbito da prisão em flagrante.

A Constituição de 1988 acabou por elencar a fiança como espécie de liberdade provisória, visto que pela primeira vez utilizou a expressão "liberdade provisória, com ou sem fiança" (ROCHA; BAZ, 1999).

Entretanto, deve-se ressaltar que, apesar de a regra geral passar a ser o regime de liberdade provisória sem fiança, há casos em que o legislador infraconstitucional excepcionou tal regra.

O revigoramento do instituto só veio com o advento das leis 7780/89 e 8035/90 (ROCHA; BAZ, 1999).

Esta última acabou por ressuscitar o instituto da fiança, que teve sua utilidade fulminada com o advento da Lei 6416/77. Tal lei vedou a liberdade provisória sem fiança para os crimes cometidos contra a economia popular e aos crimes de sonegação fiscal. Semelhante restrição aplica-se aos delitos previstos na Lei 1521/51 e na Lei 8137/90 que atualmente regula crimes contra a ordem tributária, que se enquadra na hipótese de crime de sonegação fiscal. Com a inserção do §2, incisos I a III no artigo 325 do CPP, restou afastada a aplicação do artigo 310, parágrafo único do CPP, determinando que a liberdade provisória só poderá ser concedida mediante prestação de fiança (NUCCI, 2008).Não obstante a louvável intenção do legislador em dar um tratamento mais severo a estes crimes, tendo em vista a danosidade social de tais práticas, verifica-se mais uma vez o tratamento incongruente dado pelo legislador, pois, ao determinar a não incidência do artigo 310§ único, levou-se em conta a gravidade do delito e o dano à sociedade que advém de tais práticas criminosas, critério, que foi desprezado pela Lei 6416/77, visto que a gravidade do delito por si só não é motivo impediente da concessão da liberdade provisória sem fiança.

Apesar de o artigo 325 §2 excepcionar a regra do artigo 310 parágrafo único do CPP, importa lembrar que, se verificada a impossibilidade de prestar a fiança por motivo de pobreza, conforme preceitua o artigo 350, caputdo CPP, deverá o juiz conceder liberdade provisória sem fiança, desde que o acusado se sujeite às obrigações constantes nos artigos 327 e 328 do CPP. Sendo assim, mesmo nos casos de crimes contra a economia popular e de sonegação fiscal, poderá o réu obter liberdade provisória sem prestação de fiança.

3.3 Conceito

Segundo Tourinho Filho (2004, p.575):

Fiança, para o legislador processual penal, é uma garantia real. É certo que, na técnica jurídica, fiança é espécie do gênero caução. Esta pode ser real ou fidejussória [...] Entre nós, a fiança consiste em depósito em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou até mesmo em hipoteca inscrita em primeiro lugar.

De acordo com Guilherme Nucci (2008, p. 624-625):

Considera-se fiança uma espécie do gênero caução, que significa garantia ou segurança. Diz-se ser a caução fidejussória, quando a garantia dada é pessoal, isto é, assegurada pelo empenho da palavra de pessoa idônea, de que o réu vai acompanhar a instrução e apresentar-se, em caso de condenação. Esta seria a autêntica fiança. Com o passar dos anos, foi substituída pela denominada caução real, que implica o depósito ou a entrega de valores, desfigurando, a fiança. Ainda assim, é a caução real a feição da atual fiança, conforme se vê no Código de Processo Penal.

3.4 Natureza Jurídica

Debate-se em doutrina se a fiança seria sucedânea da prisão provisória e nesta ótica, entendida como contracautela ou se enquadraria na classificação própria das medidas cautelares.

Para José Frederico Marques (1997, p. 132):

A fiança criminal, desse modo entendida, é espécie de que a liberdade provisória constitui o gênero. Trata-se, pois, de contracautela destinada a impedir que a dilação do processo condenatório cause dano ao ‘jus libertatis’de par com o caráter de sub-rogado cautelar da prisão provisória.

Sob esta ótica, entende-se que a prisão provisória seria a medida cautelar, destinada a assegurar a efetividade do processo, ao passo que a fiança seria a contracautela desta medida, neste sentido, explicam Luiz Otávio Rocha e Marco Antônio Baz (1999, p.18) que:

[...] a liberdade provisória com fiança já foi vista como uma contracautela, em contraposição à prisão provisória. A prisão em flagrante delito do indiciado seria uma cautela para a regular tramitação do processo penal e sua cessação exigiria uma contracautela, representada pela fiança.

Entretanto, esta concepção não mais pode ser admitida, sobretudo, com o advento da Constituição de 1988 em que o princípio do estado de inocência [05] ganhou guarida constitucional no artigo 5º, inciso LVII, e passou a servir como parâmetro interpretativo e critério orientador para toda a legislação infraconstitucional.

Impende ressaltar que, desde seus meandros até os dias atuais, sobredito princípio tem como base norteadora impor limites a repressão estatal e proteger a liberdade dos indivíduos, porém, o princípio do estado da inocência, nos casos em que estejam em jogo interesses maiores da coletividade não é capaz por si só de afastar a prisão cautelar. Há de se realizar o adequado sopesamento dos valores em jogo, de forma a evitar o sacrifício total de um princípio em face de outro, sempre tendo em vista a preservação do núcleo essencial de cada qual.

A manutenção da prisão cautelar do indivíduo só poderá ser admitida se devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. O inciso LXI do artigo 5º, vem respaldar a necessidade de o juiz fundamentar a manutenção da prisão em flagrante, não podendo mantê-la caso não haja alguma das condições previstas no artigo 312 do CPP. Caso o juiz verifique a necessidade da manutenção da prisão ao preso em flagrante delito, ela deve perdurar somente pelo tempo necessário, isto é, não mais presentes as razões justificadoras da prisão, o indivíduo deverá ser posto em liberdade. Conforme afirma Eugênio Pacelli (2007, p.462):

O exame acerca da existência de razões da prisão preventiva deve ser feito pelo auto de prisão em flagrante, tal como se acha disposto em lei (artigo 310, parágrafo único do CPP), não se podendo exigir que a prova da inexistência das mencionadas razões seja atribuída ao aprisionado.

Do mesmo modo, cabe ao juiz demonstrar a necessidade de manutenção da prisão por ordem escrita e fundamentada [06]. Desta forma, com o status constitucional de direito fundamental adquirido pelo princípio do estado de inocência, a liberdade do indivíduo durante o processo penal passou a ser a regra, não se podendo admitir que a fiança prestada pelo indivíduo seja um contraponto prisão provisória (PACELLI, 2007).

É esta também a posição de Luiz Otávio Rocha e Marco Antônio Baz (1999, p.18):

Essa concepção (contracautela), se aceitável outrora, em época que vigorava a regra da necessidade da manutenção da prisão em flagrante do réu durante o processo, não prevalece diante da ordem constitucional hodierna, pois existe agora expressa presunção da não culpabilidade durante o processo penal, donde o réu somente por exceção deve permanecer preso enquanto tramitar o feito, um vero rigor extremo reservado tão somente para aqueles casos em que a hipótese fática revelar a necessidade absoluta da custódia. O instituto tem natureza cautelar, atinente à liberdade do imputado.

Para Scarance Fernandes (2003, p.323):

[...] a idéia de fiança como contracautela é também equivocada pelo fato de somente se referir a uma contracautela quando o réu já estivesse preso, ao passo que enquanto solto, possuía natureza idêntica a uma, em sua essência, às outras modalidades de medidas cautelares.

O autor, embora admita a natureza cautelar da fiança, só a reconhece no caso do indivíduo estar solto, ao passo que se estiver preso e prestar a fiança ela teria caráter de contracautela.

Segundo Afrânio Silva Jardim (2003, p. 246-247), há determinadas características que devem estar presentes em todas as medidas cautelares, quais sejam:

a) Acessoriedade: em razão de o processo ou medida cautelar encontrar-se sempre vinculado ao resultado do processo principal;

b) Preventividade: vez que se destina a prevenir a ocorrência de danos enquanto o processo principal não chega ao fim;

c) Instrumentalidade hipotética: [...] a tutela cautelar pode incidir sem que o seu beneficiário, ao final do processo principal, tenha efetivamente reconhecido o direito alegado, que surge apenas como viável ou reprovável;

d) Provisoriedade: sua manutenção depende da persistência dos motivos que evidenciaram a urgência da medida necessária à tutela do processo.

Sob a ótica do atual ordenamento constitucional pátrio, indubitável é a subsunção da fiança dentre as medidas cautelares, estando presentes neste instituto todas as características da tutela cautelar, e, mormente, com o advento do princípio do estado de inocência, em que passou ser regra a liberdade do indivíduo durante a persecução penal, que dependendo da situação, está sujeito a um ônus, qual seja, a fiança.

Outra questão que suscita controvérsia tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial, é a discussão a respeito da caracterização da fiança como ônus imputado ao indivíduo ou direito subjetivo. Autores há que tratam o instituto como um direito subjetivo do indivíduo, podendo-se encontrar a mesma orientação na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, bem como há outros que postulam o caráter de ônus imposto ao indivíduo.

Para Walter Acosta (1989), a fiança seria um direito subjetivo do réu, cabível em algumas infrações penais, e que seria prestada mediante caução e o cumprimento de determinadas obrigações, e possibilitaria que ele permanecesse em liberdade para preparar sua defesa.

Orientação esta seguida por Magalhães Noronha (1997, p.186) que a conceitua como "um direito subjetivo do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível". O autor, ao fazer a diferenciação entre a fiança e a liberdade provisória afirma que com relação a esta última, o julgador teria a faculdade de concedê-la, in verbis (1997, p.183):

Há uma distinção entre a liberdade provisória e a fiança. Esta última constitui um direito do réu, enquanto a liberdade provisória poderá ou não ser concedida, não sendo um direito do acusado, mas uma faculdade do julgador, como indica o verbo usado pelo legislador ‘poderá’. Destarte, é possível que o acusado não tenha direito à fiança, mas seja favorecido pela liberdade provisória.

Entretanto, somos obrigados a discordar do magistério do renomado autor, visto que a Constituição de 1988, ao estabelecer o princípio do estado de inocência como um direito fundamental, acabou por eleger a liberdade como sendo a regra no processo penal, e desta forma, o julgador não tem a mera faculdade de conceder a liberdade provisória. Sendo admissível, o julgador deverá conceder a liberdade provisória sob pena de violação ao artigo 5º inciso LXVI, constituindo, pois, um direito subjetivo do acusado.

Neste sentido, Júlio Fabbrini Mirabete (2006, p.438):

Tem-se entendido, por vezes, que o parágrafo único do artigo 310 atribui ao magistrado a mera faculdade de conceder a liberdade provisória. Trata-se, porém, de um direito subjetivo processual do acusado que, despojado de sua liberdade pelo flagrante, a readquire desde que não ocorra nenhuma das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva. Nãopodeojuiz, reconhecendo que não há elementos que autorizariam a decretação da prisão preventiva, deixar de conceder a liberdade provisória. Além disso, embora a lei diga que a liberdade é concedida quando o juiz verificar a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, deve-se entender que quer dizer que deve concedê-la quando não verificar a ocorrência de uma dessas hipóteses, pois caso contrário estaria exigindo a evidência de um fato negativo, o que não se coaduna com o sistema probatório do processo penal.

Não obstante, o autor, acaba por atribuir a fiança a natureza jurídica de direito subjetivo, in verbis (2006, p.441):

A fiança é um direito subjetivo constitucional do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível. É um meio utilizado para obter a liberdade provisória: se o acusado está preso, é solto; se está em liberdade, mas ameaçado de custódia, a prisão não se efetua.

Apesar das doutas opiniões acima expostas, entendemos que um direito subjetivo do acusado não é a fiança, mas sim a liberdade provisória.

A Constituição Federal de 1988, no Título II, que trata sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, estabelece em seu artigo 5º, inciso LXVI, que "ninguém será levado à prisão ou nela mantida, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança"elevando o direito à liberdade provisória, com ou sem fiança a direito fundamental, sendo, portanto, cláusula pétrea que resguarda a liberdade do cidadão.

Desta forma, temos que a liberdade provisória seria o gênero dos quais seriam espécies a liberdade provisória com fiança e a liberdade provisória sem fiança (ROCHA; BAZ, 1999).

A fiança seria um meio para que o autor obtivesse a liberdade provisória. Uma vez previsto somente a possibilidade de liberdade provisória mediante a prestação de fiança, o acusado terá que arcar com o ônus de prestá-la para que possa gozar do direito a liberdade provisória.

Pensemos na situação de a autoridade policial ou judicial deixar de fixar o valor da fiança quando cabível. O que a autoridade estará violando é o direito de o indivíduo ser posto em liberdade mediante o encargo de ser prestado determinado valor. Nesta situação, o indivíduo deverá mediante petição simples dirigida ao juiz requerer que fixe o seu valor para que então, pagando determinada quantia, exerça o seu direito de ser posto em liberdade.

Desta forma, a fiança seria um ônus que visa vincular o réu ao processo, e garantir que, caso condenado, seja recolhido à prisão como forma de evitar a perda de seu valor. Sob esta ótica, ela seria um ônus que estaria sujeito o acusado.

É neste sentido a posição de José Frederico Marques (1997, p. 132), que vislumbra a fiança como um requisito, ônus a ser cumprido para a obtenção da liberdade provisória:

A fiança criminal é ônus imposto ao réu ou ao indiciado em quase todos os casos de liberdade provisória, para que assim ele possa defender-se solto em processo penal condenatório. Consiste o referido ônus em caução prestada em juízo para garantia da liberdade provisória. Tal ônus é um acessório da liberdade provisória que o réu obtém [...].

Espínola Filho (2000, p. 565-566) defende que a fiança é um encargo, uma garantia exigível do acusado como meio para que seja posto em liberdade provisória, entendida, pois, como um ônus, conforme seu magistério:

Assim, configurado, nos seus principais característicos, o instituto, é de ser definida a fiança como a caução, prestada em favor do acusado, para obter a sua liberdade provisória, até o pronunciamento final da causa, em decisão passada em julgado, dando a garantia de que cumprirá as obrigações fixadas pela lei, atenderá às intimações para os atos do inquérito, da instrução criminal e do julgamento, se sujeitará à execução da condenação, se lhe for imposta, e satisfará as obrigações pecuniárias cuja responsabilidade, em tal caso, lhe for atribuída.

Guilherme Nucci (2008, p. 611), apesar de não se referir expressamente à fiança, reconhece o caráter de direito subjetivo a liberdade provisória in verbis:

[...] confirmando o fato da autoridade policial dever lavrar, sempre, o auto de prisão em flagrante tão logo tome conhecimento da detenção ocorrida, realizando apenas o juízo de tipicidade, sem adentrar nas demais excludentes do crime, cabe ao magistrado, recebendo a cópia do flagrante, deliberar sobre a liberdade provisória, que é um direito do indiciado, desde que preencha os requisitos legais.

O que se pode notar é a confusão de parte da doutrina entre os institutos da liberdade provisória e fiança, portanto, entre um direito e um ônus.

Esta concepção da fiança entendida como direito subjetivo do acusado ou indiciado só poderia ser aceitável na época em que existia apenas uma modalidade de liberdade provisória, mediante fiança, em que a inafiançabilidade de um delito se traduzia na impossibilidade de o acusado ou indiciado obter a liberdade provisória. E desta forma, o legislador ao acenar com a inafiançabilidade de um delito estava retirando do indivíduo o direito de ser posto em liberdade.

O que é um direito subjetivo do acusado é a liberdade provisória caso ela seja admitida, mormente com o advento da Constituição Federal de 1988 que erigiu o princípio do estado de inocência a status constitucional. E neste caso esta liberdade poderá ser concedida mediante a prestação de um ônus (fiança) e demais obrigações constantes no Código de Processo Penal (artigos 327, 328 e 341) ou sem este ônus, somente estando obrigado a comparecer a todos atos do inquérito e da instrução quando intimado.

Por conseguinte, se o indivíduo preso em flagrante não preencher os requisitos da prisão preventiva, possui ele o direito subjetivo de obter a liberdade provisória, que possui duas espécies: liberdade provisória com fiança e liberdade provisória sem fiança.

Como conciliar a alegação de que a fiança seria um direito subjetivo do acusado, se caso o indivíduo exercesse este direito teria mais obrigações a cumprir para ser posto em liberdade? O que o indivíduo possui é o direito subjetivo a liberdade provisória, que se cabível deverá ser concedida. Na hipótese de ser vedada expressamente a liberdade provisória do artigo 310 § único, caberá então a liberdade provisória com fiança, impondo assim o ônus de o agente prestar a caução real para que seja posto em liberdade.

Da maneira posta, a fiança seria um "ônus" imposto ao agente como um meio para que ele exerça um direito, qual seja, a liberdade provisória. Este ônus só seria imposto ao indivíduo nas situações em que a lei só admite a liberdade provisória com fiança (como no artigo 325 §2), pois, caso possível o regime menos severo (artigo 310 § único) este é que deverá ser aplicado, sob pena de constrangimento ilegal.

Veja-se o contrassenso: O indivíduo comete um crime afiançável. Nesta hipótese, o indivíduo poderá, em tese, obter a liberdade provisória do artigo 310 parágrafo único e também a liberdade provisória mediante fiança. Caso o juiz impusesse o regime menos severo, estaria ele violando um direito subjetivo do acusado, qual seja, a fiança.

O que podemos observar é que, o legislador ao invocar a inafiançabilidade como medida de endurecimento no combate a criminalidade acaba retirando um encargo e não limitando um direito do indivíduo, acabando por criar perplexidade no contexto da liberdade provisória.

Para que possamos compreender a perda da aplicabilidade da fiança no âmbito da prisão em flagrante, importante é a análise de determinados aspectos relativos ao instituto.

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Sobre o autor
William Matheus Fogaça de Moraes

Advogado, bacharel em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pós-graduando em Direito Processual Penal pela Universidade Gama Filho/RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, William Matheus Fogaça. Fiança: a perda de aplicabilidade no ordenamento pátrio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2606, 20 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17222. Acesso em: 24 nov. 2024.

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