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A possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos

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19/08/2010 às 15:24
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2. A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA

Como ocorre com a adoção, o conceito de família também apresenta variações através dos tempos.

2.1. Conceito de família

De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, o conceito de família atravessa o tempo e o espaço, sempre tentando clarear e demarcar o seu limite, especialmente para fins de direito. [41]

Etimologicamente, família advém do latim famulia, que deriva de famulus (escravo), vocábulo originado do osco famel, servo, e do sânscrito vama, lugar ou habitação. [42]

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 16, III, estabeleceu:

"A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado."

Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica, em seu artigo 17, conceituou:

"A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela Sociedade e pelo Estado."

Clóvis Bevilácqua define família como

"um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie." [43]

Para Paulo Nader,

"família é uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra de um tronco comum." [44]

De acordo com Maria Helena Diniz, na seara jurídica encontram-se três acepções do vocábulo família: a amplíssima, a lata e a restrita:

a) No sentido amplíssimo o termo abrange todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consangüinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos, como no caso do artigo 1412 § 2º do Código Civil, em que as necessidades do usuário compreendem também as das pessoas do seu serviço doméstico.

b) Na acepção lata, além dos cônjuges ou companheiros, e de seus filhos, abrange os parentes de linha reta ou colateral, bem como os afins (os parentes do outro cônjuge ou companheiro), como a concebem os artigos 1591 e s. do Código civil, o Decreto-lei nº 3200/41 e a Lei 883/49.

c) Na significação restrita é a família (CF, art. 226 §§ 1º e 2º) o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole (CC, arts, 1567 e 1716) e entidade familiar a comunidade formada pelos pais, que vivem em união estável, ou por qualquer dos pais e descendentes, como prescreve o art. 226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, independente de existir o vínculo conjugal que a originou.[45]

A Constituição Federal, em seu artigo 226 caput, preceitua que a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado. Define ainda três espécies de entidades familiares [46]:

- a constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis (CF, art. 226, §§ 1º e 2º);

- a constituída pela união estável entre o homem e a mulher devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (CF, art. 226, § 3º);

- a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, § 4º).

A lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, criada com o objetivo de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliou o conceito de família quando considerou em seu artigo 5º, inciso II, que

"a família é compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa".

De acordo com a definição do IBGE:

"Família é o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar. Entende-se por dependência doméstica a relação estabelecida entre a pessoa de referência e os empregados domésticos e agregados da família, e por normas de convivência as regras estabelecidas para o convívio de pessoas que moram juntas, sem estarem ligadas por laços de parentesco ou dependência doméstica. Consideram-se como famílias conviventes as constituídas de, no mínimo, duas pessoas cada uma, que residam na mesma unidade domiciliar." [47]

A partir das definições acima apresentadas, pode-se observar que o conceito de família sofreu uma ampliação em seu conteúdo: no passado eram considerados como seus membros apenas pessoas ligadas pelo vínculo da consangüinidade, atualmente são considerados como familiares pessoas que convivem entre si, não sendo necessária a presença de laços naturais.

2.2. A origem e a evolução da família através dos tempos

A origem da família ou a formação dos primeiros grupos familiares primitivos é tema que não encontra consenso nas teorias sociológicas desenvolvidas com esse objeto.

Conforme descrição feita por Friedrich Engels, no estado primitivo das civilizações o grupo familiar não se assentava nas relações individuais. As relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo (endogamia). Disso decorria sempre que a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve origem matriarcal, porque a criança ficava sempre junto à mãe, que a alimentava e educava. [48]

Posteriormente, na vida primitiva, as guerras, a carência de mulheres e talvez uma inclinação natural levaram os homens a buscar relações com mulheres de outras tribos, antes do que em seu próprio grupo. Os historiadores fixam neste fenômeno a primeira manifestação contra o incesto no meio social (exogamia). Nesse diapasão, no curso da história o homem marcha para relações individuais, com caráter de exclusividade, embora algumas civilizações mantivessem concomitantemente situações de poligamia, como ocorre até o presente. Desse modo, atinge-se a organização atual de inspiração monogâmica. [49]

Caio Mário da Silva Pereira aponta que essa posição antropológica que sustenta a promiscuidade não é isenta de dúvidas, entendendo ser pouco provável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos. [50]

Para ele, levando-se em consideração as referências literárias, as contribuições de historiadores e outros documentos, pode-se retratar a família romana como padrão institucional no ocidente, principalmente tendo em vista que a família brasileira no século XIX a ela muito se assemelhava. [51]

Em Roma, a família era organizada sobre o princípio da autoridade, exercido pelo pater família, que abrangia quantos a ela estavam submetidos. O pater era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz. Comandava, oficiava o culto aos deuses domésticos e distribuía justiça. [52]

O poder do pater exercido sobre a mulher, os filhos e os escravos é quase absoluto. A família como grupo é essencial para a perpetuação do culto familiar. No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamentos da família romana. Os membros da família antiga eram unidos por vínculo mais poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. Por esse largo período da Antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados. [53]

Sobre a evolução da família e sua estrutura nos dias atuais, nos ensina Sílvio Venosa:

"A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família. A industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalhavam sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se para o mercado de trabalho. No século XX, o papel da mulher transforma-se profundamente, com sensíveis efeitos no meio familiar. Na maioria das legislações, a mulher, não sem superar enormes resistências, alcança os mesmos direitos do marido. Com isso transfigura-se a convivência entre pais e filhos.

As uniões sem casamento, apesar de serem muito comuns em muitas civilizações do passado, passam a ser regularmente aceitas pela sociedade e pela legislação. A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independente de núpcias." [54]

2.3. A família nas Constituições brasileiras

Para que se possa entender a evolução da família no direito brasileiro, faz-se necessário um estudo de sua abordagem nas Constituições e legislação brasileiras.

A primeira Constituição do Brasil, outorgada em 1824 pelo Imperador D. Pedro I, não fez nenhuma menção à família ou ao casamento. Tratou apenas em seu capítulo III (arts. 105 a 115) da família imperial e seu aspecto de dotação. [55]

Segundo Luciana Nahas, isso não significa que não havia regulamentação jurídica a respeito da família. Não se pode esquecer que a religião católica era a religião oficial do Brasil, nos moldes do artigo 5º do texto constitucional. Desta forma, incumbia ao direito Canônico regulamentar as questões referentes ao casamento e suas conseqüências. [56]

A segunda Constituição do Brasil e primeira da República, promulgada em 1891, também não dedicou capítulo especial à família. Entretanto em seu artigo 72, § 4º, dizia: "A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita." Esse artigo ficou inserido nesta constituição em razão da separação Igreja/Estado. A partir do regime republicano, o catolicismo deixou de ser a religião oficial e, com isso, tornou-se necessário mencionar o casamento civil como o vínculo constituinte da família brasileira. Até então era dispensável, pois as famílias constituíam-se pelo vínculo do casamento religioso, que tinha automaticamente efeitos civis, já que não havia a separação dos poderes da Igreja / Estado. [57]

Sob a regência desta Constituição, foi elaborado o Código Civil de 1916, Lei nº 3.701 de 01/01/1916, regulamentado as questões familiares da época. [58]

A família, de acordo com o Código Civil de 1916, caracterizava-se por ser entidade formada exclusivamente pelo matrimônio civil. O patriarcado é uma das principais características do modelo vigente, com a subordinação da mulher e dos filhos ao comando do pai. Havia uma distinção no tocante aos filhos havidos durante o casamento – os chamados filhos legítimos – e os havidos fora do casamento, ou filhos ilegítimos. [59]

A segunda Constituição da República (1934) dedicou um capítulo à família, onde em quatro artigos (144 a 147) estabelecia as regras do casamento indissolúvel. Foi, portanto, a partir dessa Constituição que, seguindo uma tendência internacional e com as modificações sociais, as Constituições passaram a dedicar capítulos à família e a tratá-la separadamente, dando-lhe maior importância. [60]

A Constituição de 1934 manteve o modelo familiar adotado pelo Código Civil de 1916, com a elevação da proteção jurídica ao patamar constitucional. A família, reconhecida e amparada pelo direito, era a entidade constituída através do casamento e dos filhos oriundos deste. Não houve a preocupação do legislador em apresentar um conceito do que seria uma família, apenas especificou o ato pelo qual se constituía e que era indissolúvel. [61]

A Constituição de 1937, apesar de alterar importantes conceitos políticos e administrativos da organização do Estado e reduzir alguns dos direitos individuais e políticos, manteve o direito de proteção à família, com pequenas alterações, em um capítulo específico. [62]

Da mesma forma que a anterior, a Constituição de 1937 também não apresentou um conceito de família, apesar de impor algumas alterações ao tratar da necessidade de educação da prole, a colaboração estatal para as famílias necessitadas e a igualdade entre os filhos naturais e legítimos. [63]

A Constituição de 1946 não trouxe mudanças significativas no tratamento da família, em relação às anteriores. Continuou atrelada ao casamento civil com vínculo indissolúvel, e retornou a possibilidade, já prevista na Constituição de 1934 e suprimida na de 1937, de registro civil do casamento religioso. [64]

As Constituições de 1967 e 1969 (Emenda nº 1/69), seguindo a mesma linha de pensamento traziam em seu texto um sentido único de que o casamento indissolúvel era a única forma de se constituir uma família. [65]

A edição da Emenda Constitucional nº 9, de 29/06/1977, que tornou possível a dissolução do vínculo conjugal através do divórcio, trouxe uma mudança significativa à estrutura da família brasileira. Logo após a Emenda, foi editada a Lei 6.515 de 26/12/1977, a Lei do Divórcio, regulamentando então as causas, prazos e procedimentos para a dissolução da sociedade conjugal e do casamento. [66]

Mesmo com esse avanço legislativo, ainda não eram reconhecidas outras formas de constituição da entidade familiar, não vinculadas ao matrimônio civil ou religioso.

De acordo com João Roberto Salazar Júnior,

"o panorama histórico familiar na esfera constitucional, desde a Constituição de 1891 até a de 1969, revela extrema rigidez do legislador constitucional, e, conseqüentemente, descompasso com as evoluções sociais, na medida em que as diversas Constituições apenas contemplaram expressamente a família oriunda do casamento indissolúvel. As demais entidades familiares eram relegadas à condição de sociedades de fato, cuja proteção do Estado era defendida somente por alguns autores, a partir de uma interpretação aberta do texto constitucional." [67]

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2.4. A família brasileira na Constituição de 1988

A Constituição de 1988 representou uma profunda ruptura em relação ao conceito de família estabelecido pelas Constituições anteriores.

De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, a Constituição de 1988 ampliou a idéia de família anteriormente concebida pelo direito brasileiro:

"...a idéia de família para o Direito brasileiro sempre foi a de que ela é constituída de pais e filhos unidos a partir de um casamento regulado e regulamentado pelo Estado. Com a Constituição de 1988 esse conceito ampliou-se, uma vez que o Estado começou a reconhecer ‘como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como a união estável entre homem e mulher’. Isto significa uma evolução do conceito de família. Até então, a expressão da lei jurídica só reconhecia como família aquela entidade constituída pelo casamento. Em outras palavras, o conceito de família se abriu, indo em direção a um conceito mais real, impulsionado pela própria realidade." [68]

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, abriu e ampliou as formas de constituição de família.

Da leitura do referido artigo, pode-se observar que além da família constituída pelo casamento (art. 226 §§ 1º e 2º), a Carta Magna reconhece explicitamente a família constituída pela união estável (art. 226, § 3º) e a família monoparental, compreendida como "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes" (art. 226, § 4º), conforme já abordado no item 2.1 do presente estudo.

Como nos ensina Luciana Faísca Nahas, houve um alargamento conceitual de família trazido pela Constituição Federal de 1988, voltado muito mais à proteção da dignidade do ser humano, que deixou de ser mero partícipe da entidade, mas sim o objetivo geral de sua formação. O paradigma do casamento, sexo e procriação não serve mais para identificar um vínculo interpessoal digno de proteção. A família passou a ser vivenciada como um espaço de afetividade destinado a realizar os anseios de felicidade de cada um. [69]

Pode-se observar, porém, que o legislador não apresentou um conceito do que seria família, apenas, expressamente, ampliou a abrangência da proteção do Estado ao instituto.

Adiante, serão abordadas, de forma sucinta, as famílias atualmente reconhecidas pela Constituição Federal.

2.4.1. As famílias constituídas pelo casamento

A primeira entidade familiar protegida pela Constituição Federal é a formada pelo casamento, porém sem a exclusividade a ele antes reservada.

Estabelece que no Brasil o casamento é civil (art. 226, § 1º), mas reconhece que o casamento religioso tem efeitos civis na forma da lei (art. 226, § 2º) e iguala os direitos e deveres entre os cônjuges na constância da sociedade conjugal (art. 226, § 5º).

O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial (art. 226, § 6º).

Muito embora o casamento não seja mais o único instituto formador da família, ainda é considerado por muitos doutrinadores como a mais importante instituição do direito de família. [70]

2.4.2. As famílias constituídas pela união estável

De acordo com parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."

Como já abordado anteriormente, antes da Constituição Federal de 1988 não eram reconhecidas outras formas de constituição da entidade familiar que não fossem vinculadas ao matrimônio civil ou religioso.

Desta forma as relações estabelecidas fora do casamento, que existem desde o início da nossa colonização [71], eram tidas como ilegítimas e consideradas como sociedades de fato, portanto não tuteladas pelo direito.

O instituto é regulamentado pela Lei 8.971/94, que trata sobre o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão e pela Lei 9.278/96, que regula o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal.

O Código Civil trata da união estável nos artigos 1723 a 1727 e não trouxe inovação ao ordenamento jurídico, visto que esta já era regulamentada pelas leis 8.971/94 e 9.278/96. [72]

2.4.3. As famílias monoparentais

A família monoparental, reconhecida constitucionalmente como entidade familiar é conceituada como, "a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". [73]

O reconhecimento e a definição da família monoparental como família natural também é extraído do artigo 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, que dispõe que "entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes".

Para Eduardo de Oliveira Leite,

"uma família é monoparental quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças". [74]

De acordo com levantamento feito pelo IBGE, no período 1997/2007, no conjunto de famílias que têm todos os filhos menores de 16 anos, houve um crescimento da proporção daquelas que são do tipo monoparental: passando de 19,2% para 21,8%, o que está de acordo com os dados do registro civil sobre o aumento das separações conjugais. [75]

Eduardo de Oliveira Leite nos ensina que a monoparentalidade sempre existiu, se levarmos em consideração a ocorrência de mães solteiras, mulheres e crianças abandonadas, porém só se impôs como fenômeno social nas três últimas décadas, com maior intensidade nos últimos 20 anos, período em que se constata o maior número de divórcios (uma das causas geradoras do fenômeno). [76]

O reconhecimento da existência das famílias monoparentais e sua especial proteção pelo Estado podem ser considerados como a manifestação de uma política familiar que não mais se limita aos padrões tradicionais, mas que quebra preconceitos e se estende à realidade fática da sociedade brasileira.

2.4.4. As "famílias unipessoais"

Além das entidades familiares citadas acima, já se reconhece como entidade familiar a pessoa que vive sozinha.

Como já abordado no item 2.1, o IBGE define como família o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, residente na mesma unidade domiciliar, ou pessoa que mora só em uma unidade domiciliar.

Conforme pesquisa realizada pelo IBGE em 2008, houve grande crescimento da proporção de pessoas que vivem sozinhas (8,3% em 1997 para 11,1% em 2007), uma tendência que vem sendo verificada nos últimos anos, fruto da redução das taxas de mortalidade e do aumento da esperança de vida, especialmente para as mulheres. Em 2007, os arranjos familiares unipessoais correspondiam a cerca de 6,7 milhões, sendo que 40,8% eram constituídos por pessoas de 60 anos ou mais de idade. [77]

De acordo com Euclides de Oliveira, geralmente se entende como entidade familiar o agrupamento formado por um casal, com ou sem filhos. Mas bem pode ocorrer que alguém, por mudança de seu estado civil ou por preferir a vida celibatária, resida sozinha em seu imóvel. Nem por isso perde a qualidade de uma pessoa humana integrada em comunidade familiar, conquanto seus parentes residem em outro local. [78]

Em 15 de outubro de 2008, foi aprovada pelo Supremo Tribunal de Justiça a Súmula 364, que amplia os casos em que se pode usar a proteção do bem de família: "O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas".

O bem de família foi criado pela Lei 8.009/90 e é definido como o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, que se torna impenhorável para pagamento de dívida.

O projeto que deu origem à nova súmula foi relatado pela ministra Eliana Calmon e teve como precedentes os julgamentos nos Recursos Especiais (Resp) 139.012, 450.989, 57.606 e 159.851, consagrando a interpretação extensiva da entidade familiar. [79]

Destaca-se a seguir decisão proferida pelo supremo Tribunal de Justiça que estende o conceito de família à pessoa que vive sozinha, ou seja, a "família unipessoal":

"CIVIL - IMÓVEL - IMPENHORABILIDADE – "A Lei nº 8.009/90. O art. 1º precisa ser interpretado consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. "Data venia", a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário - à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, "data venia", põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal." (STJ – 6ª T. - REsp 182.223 / SP - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, Diário da Justiça, Seção I, 10 maio 1999, p. 234). (grifo nosso)

2.5. A união entre pessoas do mesmo sexo – uma nova entidade familiar?

Os modelos de família biparental, com ou sem casamento, e o monoparental têm expressa previsão legal. Mas há, atualmente, outro tipo de família não regulada pelo ordenamento pátrio.

A união entre pessoas de mesmo sexo pode ser considerada como entidade familiar?

Esta pergunta tem gerado polêmica na doutrina e na jurisprudência, pois para respondê-la é necessário saber se as entidades familiares previstas textualmente na Constituição Federal constituem numerus clausus, ou se é possível estender o conceito de família, e conseqüentemente a proteção do Estado (art. 226, caput, CF) para outros agrupamentos, como por exemplo, as uniões homoafetivas.

De acordo com João Roberto Salazar Júnior, parte da doutrina entende que somente as três espécies de família previstas na Constituição Federal são reconhecidas para fins de proteção jurídica. Dentre os principais doutrinadores que partilham desse entendimento, destacam-se José Cretella Júnior, Sérgio Gischkow Pereira, Sílvio Luís Ferreira da Rocha e Manoel Gonçalves Pereira Filho. [80]

Por outro lado há uma corrente que sustenta que a norma da Constituição Federal não é taxativa quanto à enumeração das entidades familiares que merecem proteção do Estado.

Um dos principais defensores dessa corrente é Paulo Luiz Netto Lôbo que defende que as entidades familiares indicadas na Constituição assim o foram por serem mais conhecidas; daí não sendo possível afirmar que se trata de rol taxativo, pois família é um conceito indeterminado, cuja concretização deve ser feita pelo intérprete. [81]

Maria Berenice Dias também se destaca entre os doutrinadores que conferem interpretação ampliativa à norma constitucional. Segundo ela,

"o Código Civil ignorou o alargamento conceitual que ocorreu na estrutura familiar, passando a albergar todas as formas de convívio que, tendo origem em um olhar, acabam levando a comunhão de vidas, ao comprometimento mútuo e a responsabilidades recíprocas. Defende assim, que todas as formas familiares estão contempladas no artigo 226, merecendo a devida proteção do Estado, pois o que este visa a albergar, em última instância, não é a família em si, mas os indivíduos que a integram, de modo a proporcionar-lhes o desenvolvimento pessoal." [82]

Partindo-se do princípio de que a norma da Constituição Federal não é taxativa quanto à enumeração das entidades familiares que merecem proteção do Estado, a qual entidade familiar estaria comparada a união homoafetiva?

No âmbito específico do Direto de Família, existem divergências sobre a possibilidade de reconhecimento de uniões de pessoa do mesmo sexo como entidades familiares. A ausência de previsão legal expressa é o principal motivo para a negativa desta possibilidade. [83]

De acordo com Maria Berenice Dias, existem duas Propostas de Emenda Constitucional que buscam afastar a discriminação por orientação sexual e proteger as uniões homoafetivas, porém estão arquivadas: a PEC 66/2003 dá nova redação aos artigos 3º e 7º da Constituição Federal, incluindo entre os objetivos fundantes do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de orientação sexual. Já a PEC 70/2003 pretende a alteração do § 3º do artigo 226 da CF, para afastar a expressão "entre um homem e uma mulher" do dispositivo que prevê a união estável. [84]

Na Câmara dos Deputados, o mais antigo e popular dos Projetos de Lei que regula a "união civil entre pessoas do mesmo sexo" é o de número 1.151, de 1995, de autoria da ex-deputada Marta Suplicy, porém foi retirado da pauta de votação em 31/05/2001. [85]

A Lei Maria da Penha (11.340/06) reconhece de forma explícita, no parágrafo único de seu artigo 5º, a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, senão vejamos:

Art.5º: Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra  a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e de dano moral ou patrimonial:

I - (...)

II - no âmbito familiar, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - (...)

Parágrafo único. As relações enunciadas neste artigo independem de orientação sexual. 

Como não há previsão jurídica para a união entre pessoas do mesmo sexo, os tribunais têm aplicado, por analogia, as regras da união estável, conforme podemos observar nas decisões destacadas a seguir.

A primeira decisão aqui destacada é relatada pela Desembargadora Maria Berenice Dias, que aplicando a analogia, reconheceu efeitos de união estável a relacionamento afetivo de nove anos entre dois homens, fundamentando seu posicionamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade, justificando ainda que a ausência de lei específica não significa ausência de direito. Segue o teor da ementa:

"APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE.

É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos, não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros. E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Ausência de regramento específico. Utilização de analogia e dos princípios gerais de direito. A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo, vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves." (Ap. Cív. 70009550070 – 7ª Câmara Cível – TJRS – Relª. Des. Maria Berenice Dias – j. em 17.11.2004). (grifo nosso)

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais também manifesta entendimento de que a união homoafetiva deve ser equiparada a entidade familiar:

"AÇÃO ORDINÁRIA - UNIÃO HOMOAFETIVA - ANALOGIA COM A UNIÃO ESTÁVEL PROTEGIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - PRINCÍPIO DA IGUALDADE (NÃO-DISCRIMINAÇÃO) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE UM PARCEIRO EM RELAÇÃO AO OUTRO, PARA TODOS OS FINS DE DIREITO - REQUISITOS PREENCHIDOS - PEDIDO PROCEDENTE. - À união homoafetiva, que preenche os requisitos da união estável entre casais heterossexuais, deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo-se reconhecer os direitos decorrentes desse vínculo, sob pena de ofensa aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. - O art. 226, da Constituição Federal não pode ser analisado isoladamente, restritivamente, devendo observar-se os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Referido dispositivo, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu excluir dessa proteção a união homoafetiva, até porque, à época em que entrou em vigor a atual Carta Política, há quase 20 anos, não teve o legislador essa preocupação, o que cede espaço para a aplicação analógica da norma a situações atuais, antes não pensadas. - A lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento de um direito." (Ap. Cível 1.0024.06.930324-6/001 – 7ª Câmara Cível - TJMG - Relª. Des. Heloísa Combat – j. em 22.05.2007). (grifo nosso)

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, também tem admitido a hipótese da pensão por morte devida a companheiros de mesmo sexo na constância união homoafetiva, levando em conta o princípio constitucional da igualdade:

"PREVIDÊNCIA SOCIAL – Pensão. – A pensão por morte é devida a companheiros de mesmo sexo na constância da união homoafetiva em face do princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, I, CF). – O benefício da pensão por morte deve corresponder à totalidade dos vencimentos ou proventos do servidor falecido. – Inteligência do art. 40, § 5º, CF. 2. Os juros de mora incidem a partir da citação (art. 405 CC e art. 219 CPC) à razão de 6º ao ano, pois se trata de verba de caráter remuneratório (art. 1º-F da Lei nº 9.494/97). – Precedentes do STF. – Sentença reformada. – Recurso provido." (Ap. Cível. 726.939.5/7-00. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelante: Antônio de Pádua Carneiro. Apelado: IPESP. Rel. Rebouças de Carvalho. Julgamento: 17.12.2008). (grifo nosso)

O próprio STF reconheceu a possibilidade de união estável nas famílias homoafetivas, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 3300:

"(..) o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. (...): ‘A Constituição outorgou especial proteção à família, independentemente da celebração do casamento, bem como às famílias monoparentais. Mas a família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também o convívio de pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, cabe ser reconhecido como entidade familiar. A prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características. Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode fechar os olhos a essas novas realidades. Posturas preconceituosas ou discriminatórias geram grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões de caráter moral ou de conteúdo meramente religioso. Essa responsabilidade de ver o novo assumiu a Justiça ao emprestar juridicidade às uniões extraconjugais. Deve, agora, mostrar igual independência e coragem quanto às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção. (...)". (ADI 3300, Tribunal Pleno do STF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento: 03/02/2006). (grifo nosso).

Por outro lado, há também decisões contrárias que não reconhecem a união homoafetiva como entidade familiar, apresentando como justificativa a falta de previsão em nosso ordenamento jurídico. Destacam-se as que seguem abaixo:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA - PRELIMINAR - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - ACOLHIMENTO – RECURSO PROVIDO PARA EXTINGUIR A AÇÃO SEM APRECIAÇÃO DO MÉRITO. Embora relevante a discussão concernente à união homossexual, sobretudo em razão dos efeitos que irradia na divisão do patrimônio adquirido com o esforço comum, nossa legislação não permite por ora seu reconhecimento como união estável." (Agravo de instrumento nº 544.640-4/2-00, 3ª Câmara de Direito Privado, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Des. Jesus Lofrano, Julgado em 12/02/2008). (grifo nosso)

"AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO HOMOAFETIVA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. LEGISLAÇÃO EM VIGOR QUE NÃO AMPARA TAL PRETENSÃO. ART. 226, § 3º, CF, LEI 9.278/96 E ART. 1.723 DO CC. NORMAS QUE EXPRESSAMENTE ESTABELECEM COMO UM DOS REQUISITOS AO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL A DIVERSIDADE DE SEXOS. SENTENÇA CONFIRMADA. RECURSO DESPROVIDO. "O relacionamento homoafetivo entre pessoas do mesmo sexo não pode ser reconhecido como união estável, a ponto de merecer a proteção do Estado, porquanto o § 3º do art. 226 da Carta Magna e o art. 1.723 do Código Civil somente reconhece como entidade familiar aquela constituída entre homem e mulher." (Ap. Cív. n. 2006.016597-1, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Relator: Des. Mazoni Ferreira. Julgamento 28/09/2006). (grifo nosso)

"ENTIDADE FAMILIAR. UNIÃO ESTÁVEL. PESSOAS DO MESMO SEXO. RECONHECIMENTO. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DEPENDÊNCIA PREVIDENCIÁRIA. PENSÃO POR MORTE. IMPOSSIBILIDADE. - A Constituição da República não considera como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, sendo casuísticas as respectivas definições do art.226. - A consagração do companheirismo como forma de dependência previdenciária atende os princípios da entidade familiar, revelada por união estável, não se admitindo pensão para pessoa do mesmo sexo, em consideração de união homossexual." (Ap. Cível. 1.0702.04.182123-3/001. Relator: Des. Ernane Fidélis. Julgamento 29/05/2008). (grifo nosso)

Analisando as decisões apresentadas, observa-se que o legislador parte dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana para justificar a possibilidade do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

A Constituição Federal, em seu Título I, que trata dos Princípios Fundamentais [86], estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), e entre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Entende-se que o legislador, embora não tenha se referido expressamente, quando fala em quaisquer outras formas de discriminação, inclui a que tem por base a discriminação por orientação sexual. [87]

Para José Afonso da Silva, "dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida." [88]

A regulamentação do princípio da igualdade encontra-se disposta no caput do artigo 5º da Constituição Federal que afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Seriam os princípios expostos na Constituição Federal respeitados, quando se verifica o preconceito existente quanto ao reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar?

Para responder a esse questionamento, é importante apontar a reflexão de Maria Berenice Dias em artigo publicado na Revista Jurídica Areópago da Faculdade Unifaimi:

"(...) de nada adianta assegurar respeito à dignidade humana e à liberdade. Pouco vale afirmar a igualdade de todos perante a lei, (...), que não são admitidos preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver segmentos alvos da exclusão social, tratamento desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado Democrático de Direito." [89]

É inadmissível que um país que estabeleceu em sua Constituição Federal o respeito à diversidade cultural e de pensamento, a proteção à intimidade e à vida privada e à liberdade de expressão omita-se na luta de brasileiros que seguem uma orientação sexual diferente da maioria e, que por esse motivo, não têm reconhecidos direitos fundamentais.

Partilhamos da opinião da desembargadora Dra. Maria Berenice Dias [90], de que a união entre pessoas do mesmo sexo pode ser considerada entidade familiar, merecendo a proteção do Estado, considerando-se que nela estão presentes alguns dos requisitos necessários à configuração da união estável, já explanados no item 2.4.2 do presente trabalho, quais sejam: a convivência pública, contínua e duradora e com o objetivo de constituir família.

Pelo exposto acima, observa-se que o reconhecimento jurídico da união homoafetiva como entidade familiar e, conseqüentemente, das relações a ela atreladas, como, por exemplo, a partilha de bens, o direito à pensão alimentícia e à adoção, ainda está longe de chegar a uma solução, porém nota-se que a sociedade está caminhando, mesmo que de forma tímida, nesta direção. [91]

Após o desenvolvimento do estudo acerca da família, observou-se as mudanças de paradigmas e a preocupação do Estado em protegê-la não apenas como instituição, mas ampliando essa proteção aos interesses individuais de cada um de seus membros.

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Sobre a autora
Sílvia Coutinho Pedroso

Bacharelando do curso de Direito pela Faculdade de Direito de Itu - FADITU, Assistente jurídico de empresa concessionária de serviços públicos de água e esgoto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSO, Sílvia Coutinho. A possibilidade jurídica da adoção por pares homoafetivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2605, 19 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17224. Acesso em: 24 abr. 2024.

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