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O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo

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24/08/2010 às 16:28
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4. Formas de Controle do Poder de Rejeição

Um dos aspectos que mais preocupa os que se opõem ao descumprimento pelo Executivo de lei que considere inconstitucional são os aspectos relacionados à concentração de poder no Chefe do Executivo e a insegurança jurídica que poderá ocorrer devido ao grande número de titulares ao exercício desse direito (Presidente, Governadores e Prefeitos).

Nesse sentido, passa-se a análise de formas de controle desse exercício apontadas pela Doutrina, a fim de garantir uma maior segurança jurídica quando da negativa de aplicação da lei inconstitucional pelos Chefes do Executivo no âmbito Federal, Estadual e Municipal.

Uma das formas de buscar uma maior uniformidade da ação administrativa é o posicionamento, defendido amplamente pela doutrina de que, o Chefe do Executivo é o único legitimado a afastar a aplicação da lei tida por inconstitucional, não sendo possível o exercício pelos demais servidores. Destacam-se abaixo os posicionamentos sobre o tema:

O que parece, porém, fora de dúvida é que, conforme entende Lúcio Bittencourt, somente aos escalões superiores da administração pode-se reconhecer esse poder, sob pena de amesquinhar-se um processo, conduzindo-se a uma completa anarquia administrativa. [34]

Alerta ainda Ana Cláudia Nascimento Gomes que tal prerrogativa não pode ser dada aos servidores em geral, sob pena de causar sérios riscos à segurança Jurídica e a "unidade da ação administrativa". [35]

Nesse mesmo sentido é o entendimento de Gilmar Mendes que, aponta a existência de consenso sobre o assunto:

Verifica-se, é certo, algum consenso doutrinário, no sentido de que, em princípio, os agentes administrativos não dispõem de competência para apreciar a lei segundo critério constitucionais, devendo, no caso em que entenda haver inconstitucionalidade, provocar a autoridade hierarquicamente superior a respeito. [36]

Alexandre de Moraes, ao abordar o exercício do descumprimento, cita Elival da Silva Ramos, que afirma ser esta legitimidade de descumprimento, exclusiva do Chefe do Executivo, por tratar-se de medida suscetível de consequências sérias. Caso o servidor vislumbre o vício de constitucionalidade da lei, deverá levar o tema à análise do Chefe do Executivo que, decidirá sobre a necessidade ou não do descumprimento. [37]

A mais importante forma de controle do exercício de descumprimento, se dará através da possibilidade de posterior exame da constitucionalidade das leis pelo Poder Judiciário. Ao judiciário caberá sempre a legitimidade conferida pela Constituição de análise da controvérsia sobre a constitucionalidade da lei e consequentemente a determinação de sua aplicação, seja no controle difuso, de forma incidental por qualquer juiz ou tribunal, seja no controle concentrado, através de ADI, perante o STF por afronta à Constituição Federal de lei ou ato normativo Estadual ou Federal e, perante os tribunais por afronta à Constituição Estadual de lei ou ato normativo Estadual ou Municipal.

Sendo assim, aquele que se sentir prejudicado com o ato do Chefe do Executivo de negar aplicação à lei inconstitucional, deverá reclamar em juízo a sua pretensão de direito. "Parte seria o Estado contra os que teriam de beneficiar com uma lei inconstitucional". [38]

Caso haja entendimento pela inconstitucionalidade da lei o Judiciário estará ratificando, convalidando o posicionamento de descumprimento do Chefe do Executivo, conforme afirmado por Gustavo Binembjm:

Por outro lado, a decisão da Chefia do Poder Executivo estará sempre sujeita a ulterior reexame pelo Poder Judiciário, o que poderá dar-se tanto em sede de controle concreto, como no âmbito da fiscalização abstrata. À Administração Pública caberá alegar em sua defesa que o descumprimento da lei deveu-se à sua incompatibilidade com a Constituição. Caso o argumento seja acolhido, a conduta da Administração estará sendo, a fortiori, validada pelo Poder Judiciário. [39]

Lado outro, caso o entendimento do Judiciário seja pela constitucionalidade da lei, o Executivo ficará sujeito à responsabilização por ter-lhe negado cumprimento, conforme determina o art. 85, VII, da Constituição Federal, ficando ainda, obrigado a dar cumprimento à lei, conforme posicionamento abaixo destacado:

Proclamada ao revés, a constitucionalidade da lei até então enjeitada, fica o Chefe do Executivo à mercê dos procedimentos constitucionais e legais tendentes à sua responsabilização político-administrativa. Com efeito, ao optar por simplesmente negar aplicação à lei, ao invés de ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade – caso cabível – o agente político o faz por sua conta e risco, submetendo-se aos ônus daí decorrentes. [40]

Cabe destacar ainda que Ana Cláudia Nascimento Gomes trabalha em obra dedicada ao estudo do tema objeto desse trabalho, aspectos procedimentais que denominou de "como fazer". Nesse sentido, buscou a citada autora, estabelecer procedimentos que devem ser observados pelo Chefe do Executivo, para o exercício do descumprimento de lei considerada inconstitucional, nos casos em que a mesma defende sua possibilidade, conforme trecho abaixo colacionado:

Quanto aos aspectos formais do legítimo ato de desaplicação da lei inconstitucional, descreveu-se como encargos da autoridade administrativa o cumprimento dos seguintes deveres: (i) dever de elaborar fundamentação expressa; (ii) dever de notificar o MP, em integrais termos do ato de desaplicação, (iii) dever de notificar, em integrais termos, a entidade administrativa tutelar; (iv) dever de dar pleno conhecimento público do ato desaplicação, especialmente para fins de ciência do poder legisferante autor do ato normativo desaplicado e para fins de responsabilização pelos transtornos e prejuízos advindos do ato de desaplicação.

Na verdade, os aludidos requisitos formais do legítimo ato de desaplicação (para além daqueles que decorrem do fato desse se tratar de um ato administrativo em termos genéricos) visam propiciar a maior transparência possível à decisão de rejeição da lei inconstitucional; o seu imediato controle (ou aval) por parte dos tribunais competentes e a implementação de seus eventuais efeitos civis (responsabilidade civil da entidade), administrativos (responsabilidade administrativa da autoridade e o exercício dos poderes de tutela) e políticos (fiscalização parlamentar da atividade administrativa). [41]

Ressalta-se que, embora certos atos possam atribuir uma maior segurança jurídica em relação ao ato administrativo do Chefe do Executivo, de negar cumprimento à lei inconstitucional, não poderá ser exigido qualquer tipo de formalidade como critério de validade do ato, uma vez que sua essência está na supremacia da Constituição e não propriamente no ato do Chefe do Executivo, ou em requisitos de validade e eficácia (agente competente, objeto, forma, motivo e fim), como nos demais atos administrativos. Posicionamento este adotado no trecho de julgado abaixo destacado:

[...], sendo lícito ao Executivo recusar-se a cumprir leis inconstitucionais, é claro que não importará a forma como isso seja determinado no âmbito da Administração. Se pode o Governador, verbalmente ou mediante simples despacho, ordenar a seus Secretários e demais subordinados que não cumpram determinada lei eivada de vício de inconstitucionalidade, por qual razão não poderia fazê-lo mediante um decreto simplesmente diretivo, como o de que ora se cuida. [42] (GRIFO ACRESCIDO).

O que estará sendo analisado pelo judiciário não será o ato de descumprimento em si, mas sim a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei descumprida.

Contudo, a publicidade do ato de descumprimento, com a devida fundamentação da decisão, publicada no diário oficial, parece adequada para garantir a segurança jurídica e a possibilidade de controle dos demais poderes sobre o ato de descumprimento pelo Executivo, além de, garantir o conhecimento aos possíveis interessados em discutir eventual direito em juízo.

Reafirma-se que sempre que o Chefe do Executivo tiver dúvidas sobre inconstitucionalidade de lei, deverá levar a matéria à apreciação do judiciário para que não incorra em posterior responsabilização pelo descumprimento, caso esteja equivocado em seu entendimento.


5. Conclusão

Diante do exposto, verifica-se que apesar de não haver previsão expressa na Constituição de possibilidade de descumprimento da norma inconstitucional pelos Chefes do Executivo, reafirma-se a possibilidade de descumprimento, uma vez que seria este um meio adequado para que se alcance a proteção do texto constitucional, atendendo assim, de forma satisfatória ao princípio da supremacia da Constituição.

A manutenção do sentimento hoje existente de monopólio da interpretação da Constituição pelo STF mostra-se prejudicial ao amadurecimento constitucional não só dos demais Órgãos, mas dos cidadãos em sentido geral. Não é possível se afirmar que estamos diante de um Estado Democrático de Direito, que tem como base uma Constituição tida como democrática, se esta mesma não possui a força de influenciar o dia a dia dos cidadãos a ela submetidos. Não se pode afirmar ser democrático um país em que a Carta democrática só pode ser lida por um único órgão – o STF.

A possibilidade de descumprimento pelos Chefes do Executivo de lei que considere inconstitucional vai de encontro a esse sentimento de monopólio da interpretação da Constituição pelo STF, na busca de difundir a interpretação do texto constitucional a um maior número de intérpretes e combater essa ascensão judicial, que deve ser vista com maior cautela, buscando a retomada do equilíbrio dos poderes constituídos para que ao final seja alcançada a supremacia constitucional almejada.


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Sobre a autora
Ana Lúcia Damascena

Graduada em Direito pela Faculdade Metodista Granbery - FMG, Brasil (2010). Advogada. Servidora Pública Efetiva da Prefeitura de Juiz de Fora - MG. Atualmente atuando na Assessoria Jurídica da Comissão Permanente de Licitação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAMASCENA, Ana Lúcia. O poder de rejeição de leis inconstitucionais pelo Executivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2610, 24 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17250. Acesso em: 19 abr. 2024.

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