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Imunidade tributária

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27/08/2010 às 17:02
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RESUMO

O objetivo do presente trabalho é o delineamento do instituto jurídico constitucional das imunidades tributárias, principalmente em seus aspectos teóricos gerais, essenciais, motivo pelo qual não nos detivemos nas questões mais pragmáticas, mas somente nas relevantes para a compreensão do tema de modo a nos possibilitar ter uma visão critica, coerente e ponderada que nos permita extrair nossas próprias conclusões sobre as várias questões que giram em torno do assunto. Para tanto, partimos, primeiramente, das considerações acerca do direito positivo, da norma jurídica e da Ciência do Direito, que servem de referencial na pesquisa que empreendemos neste estudo. Após, descrevemos a evolução histórica da tributação, no que discorremos sobre a independência dos Estados Unidos, a revolução Francesa, como na nossa história brasileira. Sempre com uma visão crítica, comparamos os posicionamentos das várias correntes doutrinárias, enfrentando também os pontos que, apesar de alguns autores não tratarem em suas obras, outros os contemplam, o que fazemos com o escopo de obtermos um entendimento abrangente. Nesta parte é que nos detivemos de forma mais pormenorizada, tratando além das matérias afetas às imunidades propriamente ditas, várias atinentes ao direito como um todo, como a fenomenologia da incidência, a teoria autopoiética, competência legislativa, diferenciação entre as normas de estrutura e normas de conduta, o Estado Constitucional, dentre outras. Concluímos que as imunidades tributárias são normas jurídicas constitucionais que estabelecem a incompetência do legislador em instituir tributos sobre certas situações suficientemente caracterizadas. Depois da concretização da natureza jurídica das imunidades, cuidamos das suas características, sua aplicação, seus efeitos, sua abrangência, a diferenciando de outros institutos, e da sua estabilidade enquanto direito fundamental do contribuinte, nos referindo tanto à doutrina como a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal. a exegese dos preceitos imunizantes é tratada no presente trabalho, no qual discorremos sobre a hermenêutica e aplicação do direito, desde a interpretação literal, passando pela interpretação lógica, até a teleológica. A interpretação econômica no direito tributário foi estudada, assim como a interpretação restritiva e extensiva. Por fim, concluímos como devem ser interpretados os preceitos relativos às imunidades tributárias. Também a questão referente ao contribuinte de fato e contribuinte de direito foi tratada neste tópico. O último item de nossa monografia e das "imunidades em espécies", o qual cuida, principalmente, das imunidades previstas pelo inciso VI, do artigo 150, da Constituição Federal, por serem mais gerais, mas também foram estudadas as imunidades específicas e as imunidades ante às taxas e contribuições, sem esquecermos a profundidade que o assunto exige. Na conclusão abordamos o resultado do estudo, extraindo as conclusões que entendemos serem importantes.


CAPÍTULO 1

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 O direito positivo, a norma jurídica e a Ciência do Direito

Imaginemos uma caverna onde prisioneiros estão imobilizados diante de uma parede em que são projetadas sobras de marionetes e estatuetas conduzidas e manipuladas por homens livres, tal qual cinema rudimentar em tela de pedra. Essas projeções são o mundo objetivo dos prisioneiros da caverna. Imaginemos ainda que um dos prisioneiros escape: os músculos atrofiados e a visão ofuscada pela luz do sol não colaboram na descoberta do novo mundo; a prática, o costume e a tradição seduzem-no a retornar à situação anterior, mas algo mais forte faz que enfrente cegueira e dor, superando os obstáculos que o separam do mundo dos homens livres.

A alegoria da caverna, de Platão, mostra que as percepções sensoriais são formas imperfeitas do conhecimento, em relação à verdade plena da "realidade". Que é a caverna? O mundo em que vivemos e no qual percebemos os textos do direito. Que é a tela onde se projetam as sombras? A prática jurídica, as condutas, os fatos e também os atos de aplicação do direito. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O jurista que interpreta os textos do direito. Que é a luz exterior do sol? A verdade construída metodologicamente no discurso da Ciência do Direito. Que é o mundo exterior? O mundo das idéias, que para o direito corresponde al altiplano das normas jurídicas. Quem são os homens livres que manipulam as estatuetas e as marionetes? São as autoridades que aplicam o direito, manipulando os textos do direito para produzir a prática jurídica.

Qual é o instrumento que liberta o jurista de seus grilhões e das imagens elaboradas por esses homens livres? A teoria geral do direito, a Lógica, a Epistemologia do Direito, a Semiótica Geral, a Semântica, a Lingüística, a Axiologia, a História, a Sociologia que nos permitem compreender o processo de geração de sentido que surge a partir do texto normativo. Por que os demais prisioneiros não buscam esse caminho? Porque imaginam que o mundo sensível, e a prática que nele se encontra, é o único e verdadeiro mundo real.

Ocorre que o direito não é o mundo real, se o fosse já não seria mais direito, seria a realidade. Mas o apego à prática, ao costume, à tradição, ao argumento de autoridade, em suma, àquilo que Warat chamou de senso comum teórico dos juristas, designando as "condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e escritura do direito", muitas vezes nos afastam da própria realidade do direito. [01]

O problema fundamental de toda ciência é a demarcação de seu objeto-formal. Objeto-formal é o produto de um corte abstrato sobre o objeto-material cuja constituição é complexa. Este último não é já a realidade disposta no mundo existencial, mas a matéria reconstituída gnosiologicamente sobre a qual se opera essa demarcação.

A cada ciência corresponde um objeto-formal. Autêntica teoria é todo sistema de proposições orientado para um objeto com fim cognoscivo. Neste sentido, fazer teoria é fazer ciência, é, pois, constituir um sistema de proposições descritivas orientado para um objeto-formal com fim cognoscitivo.

A Ciência do Direito é uma das formas de se conhecer a realidade do direito. Como ciência que é, pressupõe um objeto-formal de investigação. Esta não se oferece já delimitado, pronto, ao cientista do direito. É construído, "resulta do ato de pôr entre parêntese, mediante critérios seletivos, alguns aspectos, ficando em evidência outros, mas todos eles, aspectos constituintes da mesma coisa." [02]

Há ainda, quem contesta a cientificidade do discurso da Dogmática Jurídica. São os adeptos do chamado ceticismo científico-jurídico, para os quais o direito é insuscetível de conhecimento de ordem sistemática, afirmando com isso que a ciência jurídica não é, na realidade, uma ciência, baseados na tese de que o seu objeto (o direito) modifica-se no tempo e no espaço, e essa mutabilidade impede ao jurista a exatidão na construção científica, ao passo que o naturalista tem diante de si um objeto permanente ou invariável, que lhe permite fazer longas lucubrações, verificações, experiências e corrigir os erros que, porventura, tiver cometido.

Mas o que de fato ocorre, é que o direito em sua ontologia é fenômeno complexo e cientificamente inapreensível, tem ele o seu aspecto moral, histórico, ético, antropológico, sociológico, psicológico, político, etc. Ou seja, é fenômeno de múltiplas facetas, sendo que, uma abordagem história não é menos verdadeira que uma compreensão sociológica ou política. São as várias maneiras de se conhecer o objeto, oriundas de um corte metodológico que se faz necessário frente a limitação própria do ser cognoscente, ou seja, daquele que produz conhecimento científico aproximando-se do objeto.

Neste aspecto, ensina Paulo de Barros Carvalho que:

O conhecimento jurídico não refoge a esse imperativo epistemológico. Ao observarmos o fenômeno existencial de um determinado sistema de direito positivo, somos imediatamente compelidos a abandonar outros prismas, para que se torne possível uma elaboração coerente e cheia de sentido. É certo que o mesmo objeto – um dado sistema jurídico-normativo – pode suscitar várias posições cognoscivas, abrindo campo à Sociologia Jurídica, à Ética Jurídica, à História do Direito, à Política Jurídica e, entre outras, à Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica. Esta última investiga a natureza do ser jurídico, firmando-se como uma atividade intelectual que postula conhecer de que maneira se articulam e de que modo funcionam as prescrições normativas. [03]

Se perguntarmos a um determinado grupo de pessoas o que é direito, as respostas serão, provavelmente, as mais variadas possíveis, porque o termo direito pode ser compreendido em vários sentidos, tais como: de justiça, conjunto de princípios fundamentais de proteção ao homem e que estão acima do direito positivado (direito natural); faculdade de agir amparada pelo direito (direito subjetivo); setor do conhecimento humano que se dedica a descrever o direito positivo (Ciência do Direito); conjunto de normas jurídicas válidas (direito positivo).

Para efeito deste estudo, interessa dar ênfase à distinção existente entre direito positivo e Ciência do Direito, com o propósito de evitar equívocos, visto que os dois sistemas são bastante diferentes, e que se irá ocupar justamente das unidades de um desses sistemas.

O direito positivo é o conjunto de normas jurídicas válidas em determinada sociedade, versado em linguagem prescritiva e técnica, correspondente à lógica deôntica, e sujeito a juízos de validade ou invalidade. De outro modo, a Ciência do Direito é o estudo e sistematização de seu objeto, qual seja, o direito positivo como conjunto de prescrições destinado a direcionar o comportamento humano em suas relações intersubjetivas, sendo sua linguagem descritiva (apta a transmitir conhecimentos) e científica, e lhe aplicando a lógica apofândica, com juízos de verdadeiro ou falso.

A linguagem do direito positivo é direcionada à regulamentação de condutas, se dirigindo para a região material, influenciando-a, enquanto que a linguagem da Ciência do Direito discorre acerca do direito positivo, descrevendo-o sem nele intervir, de modo que, a linguagem da Ciência do Direito, em relação à linguagem do direito positivo, pode ser considerada uma linguagem de sobrenível, na medida em que trata do direito posto também como camada de linguagem.

As unidades deste sistema (a norma jurídica) que, diga-se de passagem, caracteriza-se como sistema nomoempírico prescritivo [04], é a significação obtida dos textos do direito positivo pelo ser cognoscente, sendo a porção do direito com o mínimo de sentido, cuja significação é obtida pelo jurista, através da análise do sistema jurídico em sua totalidade, perfazendo-se um juízo hipotético condicional. Não se confundem a norma jurídica com o enunciado prescritivo, eis que o enunciado prescritivo são os comandos extraídos dos textos da lei, que formam as proposições em nosso intelecto, que por sua vez, através da interpretação sistemática feita pelo jurista, formarão as normas jurídicas.

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Os enunciados prescritivos são oriundos do suporte físico, o qual pode ser compreendido como o texto escrito do direito positivo, os caracteres lingüísticos, que formam noções pela sua percepção pelo ser cognoscente, enquanto que o significado é formado pelas associações destas noções formando juízos lógicos que se reportam ao comportamento humano. Tais significados através de sua interpretação formam as significações correspondentes à sua sistematização. Este último o domínio das normas jurídicas.

Portanto, em apertada síntese, podemos dizer que o direito tributário positivo é o ramo didaticamente autônomo do direito, formado pelo conjunto de normas jurídicas que disciplinam direta ou indiretamente a instituição, arrecadação, fiscalização e extinção de tributos, bem como pela que instituem os deveres instrumentais e as medidas sancionatórias impostas em decorrência do descumprimento de obrigação tributária o deveres instrumentais.

A Ciência do Direito, por sua vez, é uma metalinguagem do direito positivo, na medida em que fala e sistematiza seu objeto, o direito positivo.

Contudo, todas as abordagens científicas gozam de veracidade inerente ao seu tom de cientificidade, próprio de seu discurso. Motivo pelo qual notamos que o direito pode ser compreendido em seus vários aspectos, de modo que em nada atrapalharia a compreensão do objeto material a sua abordagem mediante diversos cortes epistemológicos, mas, de outra forma, somente aperfeiçoaria a compreensão de um fenômeno complexo como o direito.

1.2 Conteúdo semântico do termo imunidade e a abrangência do instituto

Etimologicamente, o vocábulo "imunidade" procede do latim immunitas, immunitate. O vocábulo indica ‘negação de munus’ (cargo, função ou encargo). O prefixo in oferece a sua verdadeira conotação (sem encargo, livre de encargos ou de munus)." Em princípio, pois, o vocábulo remete à noção de desobrigação de se suportar uma condição onerosa. Munus é também empregado, no latim, como sinônimo de imposto e ainda um outro significado do vocábulo é o de dádiva ou favor.

A sílaba latina in que antecede a raiz, além de negação, assume também o significado de "em, para dentro de" e o termo "munitus", que obedece o mesmo radical de munus, tem o sentido de "algo protegido por uma barreira".

Im-munis - como sendo a qualidade daquele que goza da Immunitas - é, pois, tanto o "protegido de ‘munus’" (livre da tributação), como o que "insere no ‘munus’", termo que aqui adquire a acepção de "favor ou dáviva’" (privilegiado). O vocábulo imune, em sua origem latina, revela intrinsecamente o significado de uma prerrogativa.

Em se tratando de tributos, tal concepção de imunidade, entendido o vocábulo "privilégio" em seu sentido vulgar, ao leigo parece denotar equivocadamente uma pretensa "regalia" ou "prerrogativa" de que gozam determinados entes que passam a ser "livres" da tributação. Ainda que essa acepção repugne o preceito científico da isonomia jurídica – tal como é entendida hodiernamente, há que se observar que existem razões históricas que determinaram tal sentido subjacente ao instituto da imunidade tributária, o que impõe a análise histórica do instituto, para o fim de entendermos a extensão deste instituto jurídico.

Mesmo se conhecendo a etimologia do termo imunidade, juridicamente, também mostra-se necessário delimitarmos a sua acepção jurídica, o sentido em que a expressão está sendo empregada na presente monografia, pois como tantos outros, o termo é plurívoco, comportando várias acepções. Dentre os vários sentidos em que ele é utilizado pela doutrina, está o de imunidade como norma jurídica, direito subjetivo [05], e como conceito jurídico positivo [06].

A falta de especificação do sentido em que determinado termo plurívoco estiver sendo utilizada prejudica a cientificidade do discurso jurídico. Alfredo Augusto Becker adverte que o

rigoroso cuidado na terminologia não é exigência ditada pela gramática para a beleza do estilo, mas é uma exigência fundamental – como aguda e exaustivamente demonstrou Norberto Bobbio – para construir qualquer Ciência. Deve-se distinguir entre Veracidade e Cientificidade. Veracidade é o objetivo. Cientificidade é o meio para alcançar aquele objetivo. A natureza essencial de toda e qualquer Ciência é a natureza instrumental. Ciência é um instrumento mediante o qual se apreende a Veracidade. [07]

Desta forma, é de bom alvitre, para o bom desenvolvimento desta monografia, que se examine o termo "imunidade" como norma jurídica, para que não incorramos em equívocos, indicando-se em que sentido está sendo empregado o termo no decorrer deste trabalho.

1.3 Escorço histórico

Tem grande importância a lição de Aliomar Baleeiro, em razão da qual percebemos o quanto a matéria jurídico-tributária reporta-se à idéia de como é compreendido o poder político, e à sujeição dos súditos de um Estado à dominação que sobre eles é exercida:

O tributo é vestusta e fiel sombra do poder político há mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ela se projeta sobre o solo de sua dominação. Inúmeros testemunhos, desde a Antiguidade até hoje, excluem qualquer dúvida. [08]

Vê-se como é importante a matéria jurídica em tela, percebendo-se a utilidade da compreensão histórica capaz de conferir uma visão geral aos motivos extrajurídicos da tributação, para posteriormente, destrincharmos cada período em que sua compreensão foi sofrendo alterações, refletindo os valores sociais existente á época. Isto possibilita enxergamos como a imunidade, inicialmente conferida como favor a classes privilegiadas sem nenhum senso de equidade, isonomia, ou justiça fiscal, passou à proteger valores referentes ao bem comum e finalidades essenciais à democracia e garantia de direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão, etc.

A noção história é relevante à compreensão de tributação e, consequentemente, da imunidade tributária, visto que esta é uma espécie de desoneração tributária, pois confere a visão de como a tributação passou de ilegítima e injusta para formas de arrecadação para consecução de fins aliados ao bem comum e, como os privilégios de castas cederam lugar à valores aliados à sociedade como um todo.

A imunidade era relacionada com a noção de "benesse fiscal" a uns poucos privilegiados. A desoneração de tributos baseava-se, precipuamente, na diferenciação das classes sociais, sendo concedida indiscriminadamente como graça ou favor aos amigos e protegidos do soberano. O privilégio tributário era decorrente do domínio político inicialmente, para, em seguida, manifestar-se em favor dos povos invasores e conquistadores em relação aos conquistados, como também, em favor das classes tidas como superiores diante dos menos privilegiados desprovidos de direitos civis e políticos. Todavia, com o passar dos tempos, não mais havendo razão para a distinção de classes, os privilégios fiscais foram sofrendo radical transformação, dando lugar à fundamentação jurídica com base nos supremos interesses sociais.

Na Idade Antiga remota, as desonerações tributárias, tomadas como verdadeiras "prerrogativas fiscais", baseavam-se na distinção entre classes sociais. Na China, Índia, Pérsia, Babilônia e em algumas cidades da Grécia antiga, às classes aristocráticas era simplesmente dispensado o pagamento de tributos. É no âmbito desse sistema de castas - onde quanto mais elevada a classe, tanto maiores favores fiscais eram atribuídos – que se operava a desoneração tributária, como forma de favoritismo dispensado pelos soberanos, que representavam o Estado, aos mais privilegiados socialmente.

No Direito Romano, muito embora houvesse uma estrutura tributária mais complexa, a situação não era diversa em relação a outras sociedades da Antigüidade. Também em Roma, com freqüência, as isenções eram concedidas, mais ou menos caprichosamente, como graça ou favor, aos seguidores ou amigos dos senhores e soberanos.

Na época medieval, em que prevalecia o feudalismo, a tributação revelava a estrutura da sociedade, que era dividida em castas, de um lado o clero e a nobreza, que gozavam dos privilégios tributários concedidos pelo soberano e, de outro, a burguesia, que suportava as exações.

A existência dos privilégios tributários não contrastava com princípios de justiça vigorantes à época e consagrados nas Constituições medievais e em todas as Constituições cunhadas no ordenamento feudal. A organização social era então condicionada à distinção entre classes e comprometer a existência e a hegemonia dessas classes seria comprometer a existência do próprio Estado. Tais privilégios, portanto, eram tidos como condicionantes para assegurar a manutenção da ordem social e a consecução dos fins do Estado. Os privilégios tributários integravam todo um variado sistema de privilégios que o direito reconhecia às classes nobres. A nobreza e o clero, por mera tradição histórica, gozaram de privilégios até a Revolução Francesa.

Em Portugal, com as Ordenações Filipinas, estatuía-se que estavam escusados do pagamento de contribuições extraordinárias ("fintas") "os fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem, os doutores, licenciados, bacharéis, vereadores e procuradores". Esse privilégio confirmou-se pela consolidação de 1773, assinada pelo Rei e pelo Marquês de Pombal, vigendo para Portugal, colônias e Brasil, onde a herança dos favores fiscais de nossos antecedentes lusitanos pôde ser percebida, ao longo do tempo, no tocante às desonerações fiscais.

Após uma era marcada pela instituição de privilégios fiscais em função do sistema de classes, a partir de 1789, com a Revolução Francesa - de cuja inspiração iluminista nos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade resultou a tentativa de se abolirem privilégios reprováveis na estrutura social que então surgia, instauram-se novos paradigmas que passam a nortear as relações de poder entre o Estado e seus súditos, com repercussões relevantes na tributação, inclusive.

1.3.1 Independência dos Estados Unidos como reação à tributação

A independência dos Estados Unidos da América teve influência do iluminismo, tendo sido causado, dentre outros motivos, por medidas de arrecadação forçada, levadas a cabo pela Inglaterra, com o objetivo de reabastecer os cofres da Coroa inglesa, que estavam desfalcados em razão da Guerra dos Sete Anos (1756-1763) contra a França.

Diversas foram as medidas que a Inglaterra adotou para arrecadar dinheiro, em detrimento dos colonos das treze colônias, que viam-se compelidos a arcar com as medidas impostas pela Coroa. Em 1764 e 1765 foram aprovados, respectivamente, no Parlamento Inglês, o Sugar Act - que taxava produtos que não viessem das Antilhas Britânicas - e o Stamp Act (Lei do Selo), pela qual passaram a ser tributados todos os documentos públicos. Seguiram-se os Townshend Acts, que impuseram a tributação sobre todas as mercadorias importadas – atos estes abolidos em função do boicote aos produtos externos, ao que se seguiu o Tea Act(1773).

O Sugar Act (1764) estabelecia novas taxas alfandegárias sobre grande quantidade de produtos estrangeiros, o Stamp Act (1765) exigia que fossem colocados selos nos documentos legais, contratos comerciais, jornais e até em baralhos. Os colonos protestaram, argumentado que se tratava de tributos internos estabelecidos por um Parlamento no qual não tinham representação.

O "Tea Act" tem um relevo especial na revolução e independência das treze colônias, posto que desencadeou o movimento que culminou com a independência norte-americana.

Tendo permanecido somente a taxação externa do chá, a Lei do Chá passa a atribuir monopólio à Companhia das Índias Orientais, onde havia interesses econômicos da Inglaterra. Contra tal expediente, ocorreu o episódio conhecido como "Boston Tea Party", em que comerciantes (colonos) disfarçados de índios destruíram trezentas caixas de chá tiradas dos porões de barcos ancorados no porto de Boston. Através de tal incidente, a crise entre a colônia e a metrópole atinge seu auge, deflagrando uma série de acontecimentos que culminaram com a Declaração da Independência e promulgação da primeira Constituição dos Estados Unidos, com regime republicado, presidencialista e a tripartição de poderes preconizada por Montesquieu.

1.3.2 A Revolução Francesa – elevada tributação do povo e privilégios do clero e da nobreza

Na França a situação era de desigualdade entre as classes sociais, sendo a sociedade dividida por estamentos, os quais estabeleciam a concessão de privilégios a alguns, em detrimentos de outros que arcavam com as despesas do Estado e dos privilegiados.

O clero constituía o primeiro estado, a nobreza o segundo estado, e a burguesia e proletariado referiam-se ao terceiro estado.

O terceiro estado arcava com o peso de impostos e contribuições para o rei, clero e a nobreza. Os outros dois estados não pagavam tributos e ainda viviam as custas do dinheiro público. Nessas condições o terceiro estado reivindicava a extinção dos privilégios e a igualdade.

A revolução francesa, da mesma forma como ocorreu com a norte-americana, tem dentre os motivos que a desencadearam, a tributação. Existia uma elevada tributação do terceiro estado e, em contrapartida, o primeiro e segundo estados gozavam eram castas privilegiadas. A nobreza era uma classe decadente, que vivia de forma parasitária, vivendo livres de vários tributos, possuíam tribunais próprios, recebiam pensões do poder real e possuíam direitos feudais (servidão, corvéias, banalidades). Sobre os servos, camponeses livres e arrendatários – a maioria da população rural – pesava o maior número de impostos, contribuições e exigência de prestação de serviços gratuita, devidos ao rei e ao clero, que também oneravam a camada da burguesia urbana. Para obter grandes lucros, os arrecadadores exploravam ao máximo os contribuintes do terceiro estado. Só o gasto da corte e da nobreza que viviam em Versalhes representavam 10% (dez por cento) das despesas de toda a França, peso que recaía sobre os ombros do povo.

Nesse quadro, em época em que se pregavam os ideais do iluminismo, tais distinções de castas a justificar abusos e privilégios, agravados pelo déficit nas despesas do Estado, a exigir mais e mais tributação do terceiro estado, eclodiu a crise.

Foi convocada a Assembléia dos Estados-Gerais, para tomada de medidas urgentes, com o objetivo de obrigar o terceiro estado a arcar com as medidas de arrecadação, através de tributos ainda maiores. O terceiro estado era composto da maioria do membros dos Estados-Gerais, não aceitando os termos propostos.

Em 17 de junho de 1789, o terceiro estado proclama-se Assembléia Nacional, recebendo adesão de parte do clero e de nobres influenciados pelo iluminismo. Em 9 de julho, a Assembléia Nacional se transforma em Assembléia Constituindo, vindo a tona a Constituição em 1791, que consagrou a separação dos três poderes, exsurgem os ideais de "liberté, igualité et fraternité". Os restos de feudalismo, os controles mercantilistas sobre a economia são suprimidos; abolidas são todas as desonerações fiscais, que constituíram durante largo período de tempo, os privilégios da nobreza e do clero ; foi proclamada a igualdade de todos perante a lei.

Neste contexto, verifica-se que surge o princípio da Generalidade da Tributação, com o ideal de que ninguém, através de condição social, pudesse se eximir do pagamento de tributos, uma vez que somente o interesse público autoriza a desoneração tributária.

Dessa forma, substituindo a antiga concepção de imunidade como um favor fiscal do soberano, com a evolução dos governos autocráticos e absolutistas para o Estado de Direito, o vocábulo assume sua atual representação. Desonerada (im-munus: livre de imposto) é somente aquela situação que deve ser protegida (im-munitus) da tributação, em torno da qual se deve colocar uma barreira à exação, para a preservação de um valor maior para o Estado que a própria arrecadação. Não se dando ao propósito de agasalhar favoritismos ou privilégios – no Moderno Estado de Direito onde não há lugar para favores fiscais, tem, hoje, a imunidade caráter excepcional, visto que – em regra - vige o princípio da generalidade da tributação , denotando "índole nitidamente política" .

1.3.3 Considerações acerca do direito brasileiro

Analisando a história brasileira também nos deparamos com fenômeno semelhante ao da França e dos Estados Unidos, pois o movimento de independência encontrou motivos também na área das exações tributárias.

O principal movimento de independência política do Brasil colônia em relação ao domínio de Portugal, a exemplo do que ocorreu com a Independência dos Estados Unidos da América do Norte e com a Revolução Francesa, tem seu substrato também na tributação: as rebeliões surgiam sempre que alguma nova medida contrariasse os interesses econômicos dos colonos, quando algum novo monopólio ou privilégio fosse criado ou quando eram aumentados os impostos.

Dentre as rebeliões ocorridas no século XVIII, a Inconfidência Mineira teve grande repercussão, por envolver amplos setores da elite intelectual e contestar o sistema colonial. Dentre os motivos que a ensejaram estavam medidas de política rígida, dentre as quais, o trabalho em minas para arrecadas mais impostos (o quinto) sobre o ouro extraído.

A Inconfidência Mineira de 1789 eclodiu a partir de uma revolta contra a opressão portuguesa, exigindo o pagamento de impostos atrasados (a derrama), mas, diversamente do que ocorrera com as Treze Colônias da América do Norte em relação à Inglaterra, a Inconfidência de Minas terminou violentamente sufocada pela metrópole. Mantiveram-se os privilégios e a exação abusiva.

Somente um século depois do movimento, com a proclamação da República e com a instauração do regime federativo no Brasil , fixaram-se regras e princípios jurídicos do Estado de Direito que passariam a delinear a ordem tributária , inclusive no tocante às limitações do poder de tributar, aí incluídas as hipóteses de imunidade. É na primeira Constituição republicana de 1891 que é adotada, pela primeira vez na federação brasileira, a figura da imunidade tributária.

Segundo Aliomar Baleeiro "Foi a experiência dos Estados Unidos a mestra do legislador brasileiro em 1981 e ainda o inspirou em 1946." [09]

Contudo, urge esclarecer que a sistematização das imunidades no modelo norte americano é diferente da que existe no direito pátrio, dado a conjectura diversa existente no Brasil e nos Estados Unidos. Nos EUA, tomando, por exemplo, o instituto da imunidade recíproca, observa-se que primeiramente se protegeu a União, que era tenra e franzina ante a autonomia ciumenta e agressiva dos Estados, que tributavam atividades ligadas à União.

Tal preocupação refletiu a necessidade de estabelecer equilíbrio entre as instituições federais.

Nos Estados Unidos o processo de federalização ocorreu de forma centrípeta, ante a força política de cada Estado da federação, diferentemente do Brasil, em que o delineamento de um poder unitário, procurou descentralizar o poder, dando espaço à federação. Por tal razão é que no direito pátrio o delineamento das imunidades, dentre elas a recíproca, encontra minuciosamente previsto e positivado na Constituição Federal.

A este respeito, trecho da obra do mestre Aliomar Baleeiro ilustra bem a questão:

Em nenhum dispositivo da Constituição dos Estados Unidos ou de suas emendas se contém expressamente o princípio da reciprocal immunity of Federal and State Instrumentalities. Ela é conseqüência remota e indireta da teoria dos "poderes implícitos", inseparável do nome de HAMILTON, que, desde a Convenção de Filadélfia, defendeu a necessidade de expansão da competência federal, em detrimento da ciumenta autonomia dos Estados. [10]

E também como a seguir:

Nenhuma Constituição excede a brasileira, a partir da redação de 1946, pelo zelo com que reduziu a disposições jurídicas aqueles princípios tributários. Nenhuma outra contém tantas limitações expressas em matéria financeira. Por isso mesmo, a interpretação e a aplicação daqueles dispositivos não podem dispensar as elaborações da Ciência das Finanças, velha fonte de onde afinal promanram. [11]

Vê-se, portanto, a preocupação do constituinte brasileiro em defender a autonomia dos Estados, já que a Federação é oriunda de um Estado com traços fortemente unitários.

No sistema jurídico positivo brasileiro, primeiramente foi prevista a imunidade recíproca (que inibe a atividade legiferante de um ente da federação em relação à outro), garantidora da Federação, sendo adotada no Texto Magno Republicano de 1891, sendo que as demais espécies de imunidades somente foram acolhidas com a Constituição de 1946. Aliomar Baleeiro, justifica-se dizendo que

Quando o preâmbulo da Constituição proclamou que ela resulta do propósito dos representantes do povo brasileiro, reunidos sob a proteção de Deus, para organizar um regime democrático, exterioriza ao mesmo tempo a fé em certos valores espirituais. Ela, pois, naturalmente, procurou protegê-los e encorajá-los pelos meios eficazes ao seu alcance e um desses meios é evitar que, através da tributação, criem-se obstáculos para o efetivo exercício daqueles valores. [12]

Tais fatores são fundamentais na distinção dos sistemas jurídicos dos países, por explicitar a origem do poder que refletem as Constituições e nos sistemas jurídicos delas decorrentes, tendo importantes repercussões na área tributária.

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Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Ex-Procurador do Estado de Minas Gerais. Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS JÚNIOR, Ari Timóteo. Imunidade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2613, 27 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17284. Acesso em: 28 mar. 2024.

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