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A tipicidade fechada e o crime previsto no art. 20 da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional

Resumo:


  • A lei penal exige que um ato só pode ser considerado crime se houver uma lei anterior que o defina, respeitando o princípio da legalidade.

  • A tipificação do crime de desvio de finalidade em financiamentos, como previsto no artigo 20 da Lei n.º 7.492/86, exige a demonstração de que os recursos foram efetivamente aplicados em finalidades distintas das contratadas ou legalmente estabelecidas.

  • O Supremo Tribunal Federal, ao analisar casos de desvio de finalidade em financiamentos, enfatiza a necessidade de comprovação robusta da aplicação indevida dos recursos para que haja condenação.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Não há crime sem lei anterior que o defina.

Legalidade estrita reserva de lei, tipicidade fechada. O enunciado solene que inaugura o Código Penal vem sendo lido e estudado, e a seu respeito vêm sendo escritos numerosos tratados e longos ensaios, e à exaustão se lhe atribuem diferentes nomes e sentidos.

Nem poderia ser diferente.

Trata-se de uma fragorosa vitória da civilização sobre a barbárie, resultado da longa evolução das instituições – nem sempre em linha reta e frequentemente manchada de sangue – e cuja magnitude chega a passar esquecida pelo observador desavisado, como o ar que se respira.

A regra sintetiza a substituição do governo dos homens pelo império das leis, característica inerente ao Estado de Direito, e talvez esteja devidamente sedimentada na consciência jurídica nacional.

Ou talvez aquela longa e tortuosa evolução ainda dependa de largos passos.

Faço semelhante consideração a propósito da incidência concreta do tipo previsto no artigo 20 da Lei n.º 7.492, de 16 de junho de 1986.

O mencionado dispositivo penal criminaliza a conduta consistente em aplicar recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial, ou por instituição credenciada para repassá-lo, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato.

Para correta interpretação do texto legal, faz-se necessário compreender que nem todos os crimes descritos pela Lei n.º 7.492/86 têm por objetivo tutelar a higidez do Sistema Financeiro Nacional. Curiosamente, a expressão "risco sistêmico" poderia se referir à possibilidade de dano em qualquer sistema, mas celebrou-se como o perigo que ronda a sanidade das instituições que o integram.

Segundo o economista José Alexandre Scheinkman

, risco sistêmico deve ser definido como a possibilidade de um choque sobre uma parte limitada do sistema – a falência de uma grande instituição financeira, por exemplo – possa atingir por todo o sistema financeiro, levando a uma reação em cadeia de falências e, como numa corrida de dominós, conduzir à quebra do sistema como um todo. [01]

Quem obtém financiamento de instituição financeira oficial pode cometer o crime, ainda que venha a honrar a dívida contraída. Mais ainda, revela-se em princípio indiferente o valor da operação de crédito efetuada.

Noutro giro, torna-se imprescindível que o mútuo tenha efetiva natureza jurídica de financiamento, eis que o termo surge como elemento normativo do tipo.

Para fins de incidência da norma penal em estudo, financiamento tem sido compreendido como o empréstimo vinculado a determinada finalidade, ou em outras palavras, aquele em que os recursos obtidos devem ser empregados pelo mutuário na consecução dos objetivos previamente determinados.

Por expressa determinação constitucional, contida no art. 165, § 2.º da Carta da República, agências financeiras oficiais de fomento seguem a política estabelecida na lei de diretrizes orçamentárias.

Com isso, os financiamentos concedidos por tais instituições atendem a objetivos estabelecidos em lei. As correspondentes linhas de crédito se beneficiam de juros mais baixos ou condições de pagamento mais vantajosas, justificadas precisamente por esses interesses públicos subjacentes.

A essência da norma penal está exatamente em impedir que quantias emprestadas segundo aquelas regras privilegiadas não sejam dirigidas ao alcance destes interesses públicos.

Sendo norma penal, não admira que a conduta incriminada consista em "aplicar em finalidade diversa" os valores recebidos. Não se pretende punir a simples frustração dos objetivos do financiamento, mesmo quando decorrente de culpa do mutuário, mas o desvio doloso dos respectivos recursos em seu benefício egoístico.

De fato, não existe equivalência entre as condutas consistentes em, por um lado, aplicar determinada quantia em finalidade diversa da prevista legal ou contratualmente e, por outro, não aplicá-la nas finalidades ali previstas.

Sem que haja efetiva demonstração da "finalidade diversa da prevista em lei ou contrato" em que teriam sido aplicados os "recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial ou por instituição credenciada para repassá-lo", resta considerar não aperfeiçoado o tipo penal descrito no artigo 20 da Lei n.º 7.492/86.

Ao analisar a questão no RHC n.º 75.375/DF, o Supremo Tribunal Federal realmente considerou que a exigência de demonstração da finalidade diversa era excessiva por ocasião do oferecimento da denúncia, in verbis: [02]

FINANCIAMENTO - DESTINAÇÃO - DESVIO. O tipo do artigo 20 da Lei nº 7.492/96 prescinde da indicação, na denúncia, da destinação dos recursos obtidos mediante financiamento. Cumpre ao titular da ação penal demonstrar de forma robusta o alegado desvio do numerário obtido.

Contudo, uma leitura atenta de cada voto proferido naquele acórdão revela que a falta de indicação da destinação dos recursos obtidos basta ao recebimento da denúncia, mas, nunca, à prolação de um decreto condenatório.

Todos os membros daquela egrégia corte explicitaram a convicção de que a imposição de pena ao réu depende de comprovação da destinação dos recursos em finalidade diversa da contratada ou prevista em lei.

Transcrevem-se abaixo trechos de cada voto, com grifos não originais:

Não posso, Senhor Presidente, dizer da insubsistência da inicial, isso diante dos parâmetros da denúncia, parâmetros reveladores de que os recursos levantados em cinco empréstimos distintos foram destinados ao que não estava inicialmente previsto – segundo a denúncia, não sei se é verdade, e aí o Ministério Público vai ter que comprovar isso. De acordo com o apurado na fase administrativa, não se fez sequer uma cerca na fazenda que seria beneficiada com os empréstimos. Não posso concluir, a essa altura, que há atipicidade, tendo em conta a narração dos fatos contida na inicial da ação penal. (Ministro Marco Aurélio)

No caso em espécie, a estrutura do raciocínio tem como premissa maior o "aplicar, em finalidade diversa"; como premissa menor, "não aplicou na finalidade determinada no contrato". Extrai-se dessa premissa menor uma primeira conclusão: por não ter aplicado na finalidade do contrato, aplicou em finalidade diversa.

(…)

Sr. Presidente, nesta matéria, sou rigorosamente estrito. Em matéria penal, no meu ponto de vista, não tergiverso. Ou a leu disse ou não disse; se a lei não disse e devia dizer, não é problema que esteja para ser examinado neste Tribunal.

(…)

Penso que, efetivamente, tem razão o prolator do voto vencido no Superior Tribunal de Justiça, o eminente Ministro William Patterson. Não há, no texto legal, a hipótese omissiva: o Ministério Público acusa que o réu aplicou em finalidade diversa e tem ele o ônus de demonstrar, porque a lei assim determina. (Ministro Nelson Jobim)

Cumpre saber se a afirmação contida na denúncia estaria em consonância com a regra desse art. 20. A mim me parece que não, Sr. Presidente, porque, na verdade, se o dispositivo diz "aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato", pressupões que haja afirmação da aplicação em sentido contrário. (Ministro Maurício Corrêa)

Ora, bem afirma o ilustre Subprocurador-Geral Mardem Costa Pinto, no parecer de fls. 156/159, os fatos apurados pela fiscalização do Banco do Brasil "autorizam um juízo de suspeita de crime, eis que a não aplicação dos recursos na forma em que foi pactuada realmente sugere, com certa segurança, o cometimento do ilícito contra o Sistema Financeiro Nacional na forma" disposta no art. 20 da Lei 7.492/86.

(…)

A denúncia, portanto, não é inepta. Os fatos estão indicados com precisão. A defesa poderá, portanto, exercitar-se, às inteiras, cumprindo ao órgão acusador, a seu turno, no curso da ação, demonstrar o desvio de finalidade dos recursos. (Ministro Carlos Veloso)

A controvérsia que se evidencia resulta, basicamente, da circunstância de os votos que negaram provimento ao recurso ordinário de habeas corpus entenderem que o importante, na incidência da Lei, é a demonstração da não-aplicação dos recursos obtidos em empréstimos nas finalidades constantes do contrato, não sendo necessário, ao menos em termos de oferecimento da denúncia, ficar, desde logo, comprovado em que e onde se aplicou esse dinheiro obtido no empréstimo oficial.

Compreendo, de acordo com os eminentes Ministros Relator e Carlos Velloso, que não se pode ter como inepta a denúncia, sendo esse, tão-só, o limite de apreciação da matéria nesse âmbito do habeas corpus.

De fato, o dispositivo legal que tipifica o ilícito pelo qual foi acusado o paciente Alceu Sanches, prevê a não-aplicação nas finalidades constantes do contrato. A denúncia se encarregou de fazer a indicação do contrato de empréstimo concedido e apontar a não-aplicação naquela finalidade, objeto do empréstimo. Tudo o mais há de ser apurado na dilação probatória que, dessa maneira, não se interdita. (Ministro Néri da Silveira)

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Com toda razão, parece injusto condenar alguém pelo crime de "aplicar, em finalidade diversa da prevista em lei ou contrato, recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial", quando apenas se comprovou a conduta omissiva consistente em "não aplicar recursos provenientes de financiamento concedido por instituição financeira oficial na finalidade prevista em lei ou contrato".

Cito um exemplo verídico, extraído de uma ação penal proposta na Seção Judiciária do Espírito Santo, para reafirmar a opinião exposta acima.

Propôs-se ação penal movida em face de um pequeno agricultor, acusando-o de ter aplicado em finalidade diversa da prevista em contrato recursos provenientes do PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, tendo como agente financeiro o BANDES – Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo.

A rigor, baseava-se a denúncia numa presunção: se o réu recebera o recurso para renovar a lavoura cafeeira, bem como construir a tulha e o terreiro, e a vistoria realizada em sua propriedade não constatara a realização desses projetos, então naturalmente houvera aplicação dos recursos em finalidade diversa.

A resposta à acusação trazia documentos que pareciam demonstrar que alguns valores tinham sido destinados aos fins previstos no contrato e que o projeto apresentado como condição ao recebimento dos recursos do PRONAF fora ao menos parcialmente executado.

Entretanto, a simplicidade do pequeno agricultor se refletia na rusticidade da documentação apresentada, impedindo um juízo valorativo seguro acerca daqueles registros contábeis rudimentares.

Em todo caso, a denúncia narrava condutas consistentes em deixar de aplicar recursos nas finalidades contratadas, distintas portanto do tipo de aplicá-los em finalidade diversa.

A denúncia não fora rejeitada de plano, tendo sido recebida pro societate. Contudo, considerando que o fato narrado (inexecução do projeto) não constituía crime (desvio de finalidade), mereceu aplicação o disposto no artigo 397, III do Código de Processo Penal:

Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:

(…)

III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime.

Os crimes definidos pela Lei n.º 7.492/86 mereceram o apelido de "crimes de colarinho branco", herdado da expressão "white collar crimes" cunhada por Edwin Sutherland. [03]

Formalmente, nada obsta que um pequeno produtor rural, trabalhando em regime de economia familiar, cometa o crime previsto no texto legal.

Na prática, porém, ficou evidente a injustiça de se confundir aquele humilde senhor com os grandes tubarões de negociatas milionárias, capazes de levar instituições financeiras à bancarrota e, agora sim, gerar o temido risco sistêmico.

Para evitá-la, bastou relembrar o enunciado solene que inaugura o Código Penal e tantas vezes parece esquecido.

Não há crime sem lei anterior que o defina.


Notas

  1. SHEINKMAN, José Alexandre apud GARCIA, Márcio G. P. Risco sistêmico, derivativos e crises financeiras. Disponível em http://www.econ.puc-rio.br/Mgarcia/Artigos/Macrometrica/!riscosistm.pdf
  2. STF - Segunda Turma. RHC 75.375/DF. Rel.: Ministro Marco Aurélio. DJ 06.04.2001. p. 00107.
  3. SUTHERLAND, Edwin Hardin. White Collar Crime. New York: Dryden Press, 1949.
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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Marcus Vinicius Figueiredo Oliveira. A tipicidade fechada e o crime previsto no art. 20 da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2614, 28 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17289. Acesso em: 22 dez. 2024.

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