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Judicialização e legitimidade democrática

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6.Da Legitimidade e sua relação com os Provimentos.

Platão e Aristóteles já ofertavam uma noção de legitimidade como sustentáculo de uma ordem jurídico-política justificada em suas respectivas obras "As Leis" e "Política", apoiadas na crença da autoridade advinda do sagrado [41]. Porém é entre os romanos que o adjetivo legitimus aparece pela primeira vez, com acepção de ações em conformidade com a lei ou com os costumes, podendo-se localizar, então, expressões como legitimum imperium e legitimum dominium [42].

No medievo a acepção, pela força do vínculo entre o sagrado e o secular, ganha novos contornos teóricos, como o direito divino dos reis, esculpido pela transmissão hereditária do poder via patriarcado, conforme estabelecido em textos bíblicos. Essa concepção, calcada num jusnaturalismo forte, no qual a validade das regras de conduta e de controle político possuíam um fundamento transcendental vinculante do poder, permaneceu largamente difundida no decorrer da era medieval, vindo a ser revisitada somente no século XI por Tomás de Aquino e Bartolo di Sassoferrato, para os quais a legitimidade é uma qualidade do direito ao governo, pelas legitima postestas [43]. No mesmo século Guilherme de Occam formula o conceito de legitimidade governamental, que deriva do consentimento fundado em leis naturais, baseado no adágio quod omnes tanget, ou seja, aquilo que atinge a todos tem de ser aprovada por todos.

Mas foi Hobbes que estabeleceu a ruptura conceitual com o jusnaturalismo divino [44], assentando sua premissa pré-estatal não no divino, mas sob critérios puramente racionais e laicos, servindo o direito natural apenas como premissa legitimadora das leis positivas, assegurando o jusnaturalismo, tão somente, o cumprimento do pacto no que concerne à obediência ao soberano. A legitimidade, tanto política quanto jurídica, derivaria da autoridade soberana do titular do poder.

Com a positivação do direito, o conceito de legitimidade perde seu fundamento moral, impondo-se completamente no século XIX, sendo utilizado nesse primeiro momento como a posse do poder efetivo e sendo posteriormente entendido como o princípio da legalidade puramente positivo, que no afã de tentar impedir a restauração do direito natural, impeliu-o para a realidade pura [45].

Contudo, o que se vê nesta proposta teórica é a concepção de legitimidade enquanto sujeição ao órgão Estatal, e entre eles o jurisdicional, como uma forma de dominação, conforme apontado por Weber.

Para Luhmann o conceito atual de legitimidade deve ser cunhado sobre a convicção da legitimidade do direito, pela obrigatoriedade de determinadas normas e decisões, ou do valor dos princípios que as justificam. A partir desta proposta o autor alemão passa a empregar seus esforços para determinar um conceito de legitimidade, buscando responder uma indagação atormentante: "como é possível divulgar a convicção real da legalidade ou da força compulsiva desta decisão, quando só alguns é que decidem?" [46]

Na modernidade, com os influxos de ordem prática, decorrentes das grandes revoluções burguesas, promoveu-se uma migração da legitimidade da pessoa para a ordem, ou seja, para algo que tenha ordem, o sistema.

Habermas percebeu que, nesse cenário social, pluralista e complexo, há um desacoplamento entre a faticidade da sanção e a legitimidade, que não ocorria nas sociedades iluministas de outrora. Nas sociedades pós-metafísicas modernas, acirra-se a tensão entre a faticidade e a validez [47].

O Direito, através da coerção que emana, substitui a circunscrição da convicção pela sanção, que terá de ser deduzida de uma pretensão de validez [48], pois "a permissão para coerção jurídica é deduzida de uma expectativa de legitimidade" [49]

Extrai-se daí a ligação tensa entre aceitação fundada faticamente e aceitabilidade, ou seja, uma aceitabilidade ancorada na validez (validade social) [geltung] e não na validade (lógica) [gültigkeit] [50].

O Direito surge, em faticidade e validez, simultaneamente como meio de organização e como instituição, uma vez que a validez da faticidade da coerção pode, agora ser normativamente exposta e comunicativamente sustentada perante todos na exata medida em que é justificável dentro de um sistema de direitos que se abre a todos possíveis participantes [51].

A Legitimidade do Direito, então, encontra repouso no princípio da democracia, que se infere a partir da interligação do princípio do discurso e do conceito de forma jurídica.

Habermas assim leciona:

... o princípio da democracia resulta da interligação [Verschränkung] que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento [Verschränkung] como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação [anwendung] do princípio do discurso ao direito à liberdade subjetiva de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A Gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário. [52]

O Direito democraticamente produzido seria um meio de integração social que a um só tempo produz legitimidade de tal forma que os destinatários das normas jurídicas são os seus co-autores [53].

É esta constatação que, em diversos momentos, é posta de lado na contemporaneidade, principalmente em terrae brasilis.

Conforme ressalta Dierle Coelho Nunes, ao se realizar uma investigação nas diretrizes de funcionamento do sistema jurídico, não só no brasileiro, mas em toda América Latina, percebe-se que do juiz é exigida uma altíssima produtividade de decisões no menor espaço-tempo processual possível, chegando-se a torná-la critério constitucional objetivo de promoção por merecimento. Contudo, mesmo que possível a um juiz com formação extremamente plural antever os impactos de suas decisões, há a necessidade de se ofertar ao mesmo uma infra-estrutura idônea para tal [54].

Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos. Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui [55].

Porém, colocar sobre o magistrado o ônus de tentar "imaginar" quais os efeitos de sua decisão para além das partes que serão atingidas por sua decisão, se mostra uma atividade hercúlea [56].

Neste sentido esclarecem Dierle Nunes e Alexandre Franco Bahia:

A solução, quer nos parecer, apenas pode advir do próprio processo: a decisão do juiz deve ser tal que resulte da co-participação de todos os sujeitos processuais no processo. Assim, se, por exemplo, em um caso sobre saúde, se argumenta que a decisão vai implicar em danos ao erário público (e isso implicará na falta de recursos para outros usuários do sistema), tal não pode ser pressuposto, quer pelo juiz, quer pela Administração Pública, mas amplamente provado e debatido nos autos, de forma que o Poder Público, de forma transparente e clara, demonstre suas razões, em contraditório com o autor. O que se vê em boa parte das discussões e julgados, entretanto, são tentativas de fazer com que o juiz avalie, não o caso que tem diante de si, mas eventuais (e supostas) repercussões "sociais, econômicas, políticas e jurídicas" de sua decisão. O problema dessa racionalidade está em que os direitos fundamentais não podem ser tratados em uma relação pragmática de custo-benefício.

Pensa-se, que a adoção da postura judicial "processualista democrática", como já defendido em outras obras [57], deve ser compatível com o paradigma do estado Processual de direito Democrático, que assim é explicado por Fazzalari:

O paradigma que será examinado aqui, é, a meu ver, o que deve ser acolhido. Além da vigência positiva, que nós da área não quereremos certamente negligenciar, isso devido a sua racionalidade interior (critério de preferência, credo, se o irracional for colocado sob controle). Sem negar que a história caminha, esse modelo admite os valores fundamentais do nosso ordenamento – e, com eles, a todos aqueles que deles dependem: conseqüentemente a todo o ordenamento – de evoluir, sem ser obliterado e modificado; de modificar-se, mantendo seu núcleo incorrupto, isso é ao longo de uma trajetória assinalada por nossa escolha original. Agregarei aqui, que tal paradigma, na medida em que permite aos valores positivos viver e durar, supera, no concreto, a antinomia que se insinua em todos os valores: para os quais eles são, sim, históricos e factuais, mas devem, numa sociedade dada, servir de crítica dos valores, isso é dos critérios duráveis do ordenamento do agir. Mas há uma outra característica que dota este paradigma, e o impõe: e é a processualidade, a realização do trabalho da Corte constitucional mediante processo, isso é, no contraditório dos (uma parte representada dele) interessados e contrainteressados, conseqüentemente coram populo e com sua participação. Ocupei-me demasiadamente, num primeiro momento, em torno da categoria do processo, porque impõe aqui outros discursos. Arriscarei sozinho, mas fora de qualquer esquematização historicista, a tarefa que a historia quer – ou quer também – contínuo contraditório, conseqüentemente processo, para a convalidação dos valores: consistindo como o anteriormente colocado, na continuação da convivência. [58]

Friedrich Müller, então, afirma de forma categórica que: "Democracia significa direito positivo – o direito de cada pessoa" e a razão disso está em que ela pressupõe, além da base normativa, nexo legitimador entre a organização da liberdade e a da igualdade de cada indivíduo, de modo a garantir-lhe tratamento de membro do povo, tendo este como instância de legitimação, a justificar a concepção daquela, para além da estrutura normativa textual, como nível de exigências positivas.

A democracia moderna avançada não é simplesmente um determinado dispositivo de técnica jurídica sobre como colocar em vigor textos de normas; não é, portanto, apenas uma estrutura (legislatória) de textos, o que vale essencialmente também para o Estado de Direito. [...] A democracia avançada é assim- e nesse sentido ela vai também um bom pedaço além da estrutura de meros textos – um nível de exigências, aquém do qual não se pode ficar – e isso tendo em consideração a maneira pela qual as pessoas devem ser genericamente tratadas nesse sistema de poder-violência [Gewalt] organizado (denominado ‘Estado’): não como subpessoas [Unter-Menschen], não como súditos [Untertanen], também não no caso de grupos isolados de pessoas, mas como membros do Soberano, do ‘povo’ que legitime no sentido mais profundo a totalidade desse Estado [59]

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Habermas o conceitua assim "uma ordem política livremente estabelecida pela vontade do povo de modo que os destinatários das normas legais podem, ao mesmo tempo, se reconhecer como os autores da lei". [60]

E o que garante tal posição democrática hoje é o processualismo moderno, pois, como afirma Aroldo Plínio Gonçalves:

No Direito Processual atual, concebido como sistema normativo, o processo já não pode ser reduzido a uma mera legitimação pelo procedimento, não porque se devam dispensar as formas, mas porque o processo já não é mais apenas um rito para justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o desenvolvimento do conceito de processo construído sobre o contraditório é resultado de muitas conquistas históricas. O procedimento desenvolvido em contraditório entre os interessados na decisão final construiu-se não como uma forma de participação dos jurisdicionais para justificar um ato imperativo final do Estado, mas como garantia de participação dos detentores de interesses contrapostos, em simétrica paridade, para interferir na formação daquele ato. [61]

Assim, como elucida Dierle Coelho Nunes, ao invés de se depositar na magistratura as grandes esperanças dos heróis gregos de outrora, vez que esta "... se vê constrita a: a) administrar o processo sem formação para tal e b) a ofertar alta produtividade de decisões, sem auxilio técnico de nada ou de ninguém, com enorme qualidade e com antevisão dos impactos do provimento" [62], dever-se-ia, portanto, tomar medidas mais eficientes para se promover a melhoria qualitativa do sistema.

Dierle Coelho Nunes e Alexandre Franco Bahia sugerem, então, que:

Existe uma tendência da grande maioria dos sistemas processuais em se retirar do juiz a gestão do andamento dos procedimentos e a atribuir a um administrador judicial,deixando ao magistrado o cumprimento da sua função primordial: julgar. Em outro espectro, já está mais do que no momento de se perceber a diversidade de tipos de litigiosidade: a) individual ou "de varejo" ou "de baixa intensidade": sobre a qual o estudo e dogmática foram tradicionalmente desenvolvidos, envolvendo lesões e ameaças a direito isoladas; b) a litigiosidade coletiva: envolvendo direitos coletivos e difusos, nos quais se utilizam procedimentos coletivos representativos, normalmente patrocinados por legitimados extraordinários (órgão de execução do MP, Associações representativas etc.); e c) em massa ou de alta intensidade: que dá margem a propositura de ações repetitivas ou seriais, que possuem como base pretensões isomórficas, com especificidades, mas que apresentam questões (jurídicas e/ou fáticas) comuns para a resolução da causa [63].

Outrossim, sugerimos outras adoções, essas mais amplas, mas que promovem a integração da atividade jurisdicional à democracia, quais sejam: 1) o entendimento de que os procedimentos jurisdicionais são estruturas técnicas que formam micro-sistemas replicantes do complexo ordenamento jurídico, que servem para dirimir conflitos interpretativos dos legitimados e que devem ser regidos pela instituição constitucional do processo (pela principiologia do contraditório, isonomia e ampla defesa); e 2) o entendimento de que o provimento jurisdicional, não pode ser concebido apenas, de forma simplista ou simplória, como um ato de vontade ou inteligência do magistrado, pois essas são concepções que reduzem a complexidade requerida da atividade jurisdicional, como faz a forma de defesa do avestruz. Assim provimento deve ser compreendido, de forma constitucional e processualmente adequada, como resultante processual-discursiva de um microssistema (procedimento) replicante de um único sistema jurídico (ordenamento) vivente, auto-conceituador de seu conteúdo, legitimante da integração social, por se colocar ante a "comunio opinio", para modificá-la ou se modificar, que utiliza para tanto a lógica de aplicação inferencionalista [64].

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Araújo de Carvalho

Professor da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM; Professor Convidado - Pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMINAS; Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em Direito Processual Constitucional pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix; Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC e membro do escritório Carvalho & Garcia Advocacia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo. Judicialização e legitimidade democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2620, 3 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17325. Acesso em: 17 nov. 2024.

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