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Perdão judicial nos delitos de trânsito

01/09/1998 às 00:00
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No Código Penal comum, o perdão judicial, genericamente previsto no art. 107, IX, como causa extintiva da punibilidade, é permitido, dentre outros, nos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa (arts. 121, § 5º e 129, § 8º).

De questionar-se: é admissível o perdão judicial nos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa descritos no Código Brasileiro de Trânsito (arts. 302 e 303 da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997)?

Levanta-se posição no sentido negativo. Argumenta-se que o art. 300 do Projeto de Lei do CBT, que o admitia, foi vetado pelo Senhor Presidente da República. Se o texto original do Projeto era permissivo, vetado, a Lei nova, não o prevendo, proíbe sua aplicação. Além disso, - prossegue essa orientação, - o art. 291, "caput", do CBT, determina a incidência subsidiária das "normas gerais" do Código Penal e o perdão judicial está enunciado na Parte Especial. Creio que em favor dessa tese, que não advogo, haveria mais um argumento. Nos termos do art. 107, IX, do Código Penal, o perdão judicial só é permitido "nos casos previstos em lei". E não está disciplinado no CBT. Essa causa extintiva da punibilidade é de aplicação restrita aos casos legais, não se estendendo a todas as infrações penais, recaindo, pois, somente sobre aquelas especificamente indicadas na lei (TACrimSP, ACrim 629.929, RJDTACrimSP, 10:122; JTARS, 64:65).

Temos outra posição: o perdão judicial é admissível nos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa cometidos no trânsito.

O obstáculo do veto é superável. No Projeto de Lei, o instituto só era admitido em determinados casos, restrição com que não concordou o Senhor Presidente da República. Por isso, impugnou o dispositivo, não sem antes dizer da conveniência da medida nos delitos de circulação.

Não são convincentes as teses de que ao CBT, por força de seu art. 291, "caput", somente são aplicáveis as "normas gerais" do Código Penal, encontrando-se o perdão judicial na Parte Especial, e que esse instituto só é admissível "nos casos previstos em lei", silenciando a Lei n. 9.503/97 sobre o tema.

Os arts. 302 e 303 do CBT, definindo o homicídio culposo e a lesão corporal culposa praticados na direção de veículo automotor, tratam de "crimes remetidos", hipóteses em que uma norma penal incriminadora faz menção a outra, que a integra. Essa referência pode ser feita utilizando-se de dois critérios:

1º - mencionando o número do artigo da outra lei incriminadora. Ex.: o art. 304 do Código Penal, ao definir o crime de uso de documento falso, remete o intérprete aos arts. 297 a 302 do Código Penal, de maneira que as elementares desses delitos passam a incorporá-lo;

2º - mediante inserção do "nomen juris" da infração penal no delito autônomo. Ex.: a Lei de Tortura (Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997), no art. 1º, § 3º, 1ª parte, definindo infração qualificada pelo resultado, faz referência a "lesão corporal grave ou gravíssima", obviamente aludindo ao art. 129, §§ 1º e 2º, do Código Penal. De modo que, se o sujeito, torturando a vítima, produz-lhe lesão corporal grave ou gravíssima, é necessário ir àqueles dispositivos verificar o que por elas se deve entender. Assim, aqueles dois parágrafos do art. 129 passam a fazer parte do crime qualificado de tortura.

O CBT, ao descrever o homicídio culposo e a lesão corporal culposa, empregou o segundo critério, inserindo as denominações legais desses crimes nas definições típicas: "Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor" (art. 302); "Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor" (art. 303) (sublinhas nossas).

As definições são criticáveis. Nunca houve maneira mais estranha de descrever delitos. Nos dois casos, o verbo, que tecnicamente representa o núcleo do tipo, refletindo a ação ou omissão, não menciona a conduta principal do autor. É "praticar". Ora, o comportamento do autor no homicídio culposo, para fins de definição típica, não consiste em "praticar homicídio culposo" e sim "matar alguém culposamente". O verbo típico é "matar" e não "praticar". O sujeito é punido não porque "praticou" e sim porque "matou alguém". Autor é quem realiza a conduta contida no verbo do tipo e não quem "pratica homicídio" ou outro crime.

No Código Penal, "matar alguém culposamente" tem o nome de "homicídio culposo" (art. 121, § 3º); "ofender culposamente a integridade corporal ou a saúde de outrem" denomina-se "lesão corporal culposa" (art. 129, § 6º). De modo que os arts. 302 e 303 do CBT, ao introduzir nos tipos os nomes jurídicos "homicídio culposo" e "lesão corporal culposa", referem-se aos crimes dos arts. 121, § 3º e 129, § 6º, do Código Penal, quando praticados na direção de veículo automotor.

Criou-se uma figura específica de homicídio culposo, mantendo o tipo do art. 121, § 3º, do Código Penal, caráter genérico, estabelecendo-se entre eles uma relação de generalidade e especialidade (princípio da especialidade). Há um crime genérico e outro específico. A figura especial (art. 302) contém todos os elementos da fórmula genérica (CP, art. 121, § 3º) e mais um denominado especializante (a elementar modal "na direção de veículo automotor"). Temos, pois, um "delictum sui generis", autônomo, excludente do tipo genérico. O mesmo se diga em relação à lesão corporal culposa.

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E não é só. As referências típicas "homicídio culposo" e "lesão corporal culposa", emprestadas às figuras especiais dos crimes de circulação de veículos, corregam as elementares, causas e circunstâncias daqueles tipos. Assim, por exemplo, a remissão ao homicídio culposo comum traz para o delito especial não só as elementares "se o homicídio é culposo" do § 3º do art. 121 como as demais causas e circunstâncias que o envolvem, como é o caso do perdão judicial (§ 5º, 1ª parte), observando-se que as causas de aumento de pena do § 4º encontram-se previstas, com essa natureza ou como delitos autônomos, nos arts. 302, III, 304 e 305 do CBT.

Isso é do sistema penal. O art. 304 do Código Penal, definindo o uso de documento falso e remetendo o intérprete aos arts. 297 e ss., traz para si, como ficou consignado, não só as elementares como também as circunstâncias e disposições explicativas e ampliativas daqueles delitos, como são os casos dos documentos públicos por equiparação (art. 297, § 2º), do aumento de pena em face da função pública exercida pelo autor (art. 299, parágrafo único) etc. Quando uma norma remete a outra, por intermédio da inserção do número do artigo ou do "nomen juris" do delito, impregna-se de todo o seu conteúdo, salvo disposição expressa em contrário. Na hipótese, o homicídio culposo cometido no trânsito contém todas as elementares, causas e circunstâncias do tipo comum, com exceção do disposto em contrário ou de forma diversa pela lei especial (como nas causas especiais de aumento de pena).

E não poderia ser de outra maneira, sob pena de criar-se uma situação de flagrante inconstitucionalidade, ferindo o princípio da igualdade. Com efeito. Interpretação diferente conduz à conclusão de que a morte culposa de ente querido causada na direção de veículo automotor não admite o perdão judicial; nas relações comuns, fora do trânsito, permite. Considerando que 99% dos casos de perdão judicial são aplicados nos delitos de circulação, a proibição é absurda.

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Sobre o autor
Damásio E. de Jesus

advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Damásio .. Perdão judicial nos delitos de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 26, 1 set. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1733. Acesso em: 16 abr. 2024.

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Texto gentilmente cedido pelo autor

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