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A proibição constitucional da despedida arbitrária

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07/09/2010 às 10:43
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3. PERSPECTIVAS NO DIREITO BRASILEIRO

É nesse contexto que se pode afirmar a despedida "sem justa causa" como produtora de vítimas: ela é um dos mais agudos elementos de vulnerabilidade e descartabilidade da pessoa que vive do trabalho, inserido em um processo vitimizador estrutural. A despedida sem justa causa, pois, não é apenas a liberdade de resilição contratual. Esta teria um sentido totalmente diverso, de simples mobilidade ou flexibilidades nas relações e no exercício da autonomia privada, não fosse a vitimização estrutural. Mas, na lógica da vulnerabilidade dos sobintegrados, é a contrapartida espetacular da racionalização econômica extrema: a "simples e neutra" descartabilidade da pessoa humana, sem expectativa de reparação. Diante dela, todas as demais normas trabalhistas perdem boa parte de seu potencial integrador.

Leonardo Vieira Wandelli, p. 86.

No direito brasileiro existe uma alta rotatividade no emprego, fato que, por si só, leva a fazer uma reflexão sobre as condições de cidadania dos trabalhadores.

Deve-se consignar, aproristicamente, que será dado um enfoque ao cotidiano das relações de emprego, impregnado de constantes abusos dos direitos, sempre diante da "coação" da despedida arbitrária, fato esse que, por via oblíqua, atinge o direito de ação e o livre e desembaraçado acesso à justiça.

3.1. CONSIDERAÇÕS AO REDOR DO ART. 7º, I DA CONSTITUIÇÃO

Muitos (des)construtores do direito se utilizam de argumentos neoliberais ao analisar o direito laboral, pugnando pela flexibilização (muitas vezes confundida com desregulamentação) da legislação trabalhista, olvidando-se do contexto histórico de todo o direito do trabalho e sua razão (protetora) de ser.

Essa parte neoliberal dos formadores de opiniões incute na sociedade o sentimento de banalização da despedida injusta. Como assevera Wandelli, "A racionalidade formal-positivista põe-se a serviço da banalização da despedida injusta, à medida que bloqueia a normatividade dos princípios e direitos fundamentais que permitiriam coibir-se a despedida em uma série de casos em que ela é tratada como "simples e neutro exercício de um direito potestativo pelo empregador" (WANDELLI, 2004, p. 25).

Existe a "banalização do mal". Para melhor compreender a crítica que inicialmente está sendo feita, bastante ilustrativa é a exemplificação que Wandelli fornece, na época do Estado Nazista Alemão:

A dramaticidade do enfrentamento da injustiça foi retratada em profundidade por Hannah Arendt, ao acompanhar o julgamento do funcionário nazista alemão, Adolf Eichmann. Julgado e condenado à morte no Estado de Israel em 1961, executou-se a pena de enforcamento a 31 de maio de 1962. Eichmann foi responsabilizado pela morte, deportação e degradação de milhões de pessoas durante o regime totalitário nazista. Conforme o relato da autora, o zeloso funcionário não usava arma e tinha ojeriza a sangue. Também não era um perverso, sádico ou mesmo carreirista. Ao contrário, era aterradoramente normal. Na matança que ajudou a produzir, limitou-se a cumprir ordens perfeitamente legais e regulares. As próprias leis nacionais - na Alemanha e, evidentemente, em Israel – e internacionais, que tipificaram as condutas de genocídio, são posteriores aos fatos, embora não fossem inéditas na humanidade. Tampouco se lhe pode imputar que, não obstante suas condutas fossem formalmente legais, tenha ele violado a moralidade ou o senso de juridicidade vigente, segundo os quais teria obrigação de se recusar ditas ordens. O domínio do Estado burocrático nazista era tal, e tamanho era o empenho na eliminação de valores morais contrários ao projeto nazista de dominação total, que se pode dizer que Eichmann, de fato, sentia-se mais no estrito cumprimento do dever, segundo as leis e a moralidade vigente em seu país. Eichmann apenas fazia o seu trabalho. A banalidade do imenso mal produzido reside exatamente no fato de que simplesmente não pensava na atrocidade de seus atos. Não formulava, sobre eles, nenhum juízo crítico. Eram tecnicamente neutros. Eichmann, considerava-se, sinceramente, uma pessoa de bem. (WANDELLI, 2004, p. 88) (Grifo nosso).

Essa banalização ocorre "como um processo de fetichização que silencia a injustiça que pode ser dita segundo o próprio sistema" (WANDELLI, 2004, p. 93).

Com relação especificamente à interpretação do artigo em comento, os debates jurisprudenciais e doutrinários ao seu redor, na maioria das vezes se restringem apenas a mais pobre das interpretações, a gramatical, sobre o âmbito semântico do dispositivo, como por exemplo, se despedida arbitrária é diferente da despedida sem justa causa.

A argumentação de que o art. 7º, I seria norma de eficácia limitada, contida, dependendo de lei complementar; sugestões com base numa interpretação do método, seja ela sistemática, histórica, gramatical, nada mais são do que o denominado por Lenio Luiz Streck de "fetichização do discurso jurídico" (STRECK, 2001), pois, na verdade, o doutrinador/julgador está encobrindo a verdade, criando argumentos jurídicos para justificar uma tese já elaborada mentalmente.

Sem dúvida o sistema e esse tipo de discurso fetichizado devem ser criticados, de forma a existir uma insurgência colaboradora por parte dos cidadãos, visando-se resgatar a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, já existem diversos julgados rechaçando a despedida discriminatória, tendo o Colendo Tribunal Superior do Trabalho decidido, reiteradamente, pela reintegração do trabalhador portador do vírus HIV [03]. Nesse passo existe também a Lei 9.029/1995.

Ainda analisando-se a jurisprudência, o Tribunal Superior do Trabalho, em voto de tese brilhante do hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, já adotou a questão de que não se pode despedir por convicções políticas [04], sendo esta a Ementa do julgado:

DIREITO POTESTATIVO DE RESILIR O CONTRATO – ABUSO. O exercício pode mostrar-se abusivo. Despedido o empregado face à convicção política que possui, forçoso é concluir pela nulidade do ato e conseqüente reintegração, com o pagamento dos salários e vantagens do período de afastamento. A liberdade política é atributo da cidadania, não passando o ato patronal, pelo crivo da Constituição no que encerra, em torno do tema, garantias mínimas do cidadão

Outra consideração também ao redor do artigo 7º inciso do texto constitucional é o entendimento de que para toda forma de despedida sem justa causa a "indenização" seja uma multa de 40% (quarenta por cento) do FGTS, o que acarreta uma repugnante "indenização" tarifada. A despedida por motivos econômicos e a denúncia vazia do contrato de trabalho não podem ter, a nosso ver, a mesma conseqüência jurídica.

Um outro viés para o qual se quer chamar a atenção, com lastro no art. 7º da CRFB/1988, já tangenciado ao longo deste texto, é o esvaziamento do livre acesso ao judiciário e do direito de ação pelo empregado.

Nas lições de Wandelli:

Um dos aspectos mais relevantes das relações de trabalho está no fato de que a possibilidade de livre despedida torna praticamente inviável a defesa pelo trabalhador, de seus direitos, enquanto se mantém a relação de emprego. A prática secular de excluir-se qualquer trabalhador que se insurja contra a violação dos seus direitos retratada no relato da epígrafe desta seção, é a negação de fato e de direito da pessoa do trabalhador (WANDELLI, 2004, p. 419).

Existe uma ineficácia generalizada do acesso ao Judiciário, uma "indevida constrição do direito de ação" (WANDELLI, 2004, p. 420).

O direito de ação é corolário ao devido processo legal, que se constrói sobre o fundamento de que a parte tem a garantia de ingressar em juízo (e de se defender, amplamente), para fazer valer o direito material assegurado. "Se assim não for de nada vale para o cidadão o sistema jurídico assegurar-lhe condições reais de ingresso em juízo, além de meios efetivos de demonstração e de reparação do direito que entende violado[...]" (MANUS, 1996, p. 100).

Fazendo-se uma pesquisa jurisprudencial nos diversos Tribunais Regionais do Trabalho, bem como no TST, verifica-se, sumariamente, que quase a totalidade dos processos existentes na Justiça do Trabalho versam sobre desempregados que tiveram seus direitos vilipendiados ao longo dos anos e foram prejudicados por não poderem reclamar ao longo da relação empregatícia.

Nesse sentido é o posicionamento de Wandelli:

O fato notório de que a maior parte dos demandantes na Justiça do Trabalho são desempregados que, muitas vezes, tiveram parte de seus direitos sistematicamente sonegados ao longo de anos, mas vêem-se obrigados a abandoná-los à prescrição, sob pena de perder o emprego, põe as partes em absoluta desigualdade e esvazia materialmente a garantia constitucional do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF). Quando enfim o empregado busca a tutela judicial, esse estado de coisas, faz com que o exercício dos direitos fique grandemente limitado à sua recuperação indenizatória. Assim, mantém-se situação crônica de inobservância dos direitos ao longo do vínculo de emprego, neutralizando os instrumentos de garantia de seu exercício oportuno. Restringe-se concretamente a possibilidade de urgência e inibitória das lesões e, mais grave, compele-se com isso, para a via da monetarização indenizatória, direitos indisponíveis e de natureza pessoal, tais como o direito à saúde, ao respeito à dignidade, intimidade e vida privada, à convivência familiar e comunitária (pense-se no direito de recusar-se ao trabalho extraordinário ou aos domingos, fora das hipóteses obrigatórias, de proteção em face dos riscos à saúde) ou de preservação das condições contratuais mais benéficas (WANDELLI, 2004, p. 420).

Esse também é o posicionamento de Edilton Meireles, citando os seguintes exemplos de despedidas abusivas:

[...] o empregador despede empregado que exerce atividades sindicais (violação aos fins sociais), em represália ao fato do empregador ter ajuizado reclamação trabalhista (violação aos fins sociais), por ter o empregado prestado depoimento como testemunha em processo promovido contra a empresa (violação aos fins sociais) e por outras causas alheias ao contrato de trabalho (MEIRELES, 2005, p. 200/201).

Contudo, já existe jurisprudência que vislumbrou essa situação, autorizando o empregado a utilizar o direito de ação em face do empregador sem correr o risco de ser despedido [05].

Impende-se salientar, na lição de Ronald Amorim e Souza que "o rompimento de qualquer contrato, sem que ele seja integralmente cumprido ou executado, deve trazer como conseqüência natural à satisfação ou reparação dos prejuízos que daí possam emergir" (SOUZA, 2002, p. 357).

Nesse lastro, a Constituição Federal de 1988 transformou o FGTS "num pecúlio do empregado", com isso cessou o seu papel de indenizar o obreiro pelo encerramento arbitrário/abusivo do vínculo empregatício, vindo "à tona seu inegável papel de salário diferido" (SOUZA, 2002, p. 368).

Prossegue Souza na sua exposição:

Com efeito, o inciso I, do art. 7º da Constituição Federal vedou o despedimento arbitrário mas, ao fazê-lo, instituiu uma indenização para quem ofendesse tal vedação. O lógico que se poderia alvitrar para o comando da Lei Maior seria sancionar com a nulidade a prática e impor o retorno do empregado ao posto então ocupado. Deu-se, todavia, a opção paradoxal e o mesmo dispositivo dispuseram sobre a instituição de uma indenização compensatória de prática vedada (SOUZA, 2002, p. 369).

Com relação à indenização, a doutrina mais respeitável entende que:

[...] deve ser ressaltado que a despedida abusiva gera o direito a uma indenização, no mínimo pelos danos morais, independentemente daquela prevista para despedida arbitrária (inciso I do art. 7º da CF/88. Melhor solução, no entanto, parece-nos ser considerar nula a despedida, já que ilícita a despedida (abusiva), gerando direito à reintegração, com pagamento das vantagens vencidas e de eventual indenização, inclusive pelos danos morais, pelo ato abusivo em si, se ele acarretar outros prejuízos ao empregado" (MEIRELES, 2002, p. 202).

A jurisprudência, de maneira uníssona, e parte da doutrina, defendem que se trata de direito potestativo do empregador a faculdade de despedir sem justa causa o empregado, isso é, podem abusar no exercício desse direito.

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Sobre a potestividade do direito de despedir, preciosa é a lição do saudoso e querido Antônio Carlos de Araújo Oliveira quando afirma que "o ato resilitivo unilateral injusto do patrão não é senão um ilícito trabalhista, segundo uma perspectiva lógico-jurídica" (OLIVEIRA, 1994, p. 48), sendo, no seu entendimento, "um contrasenso encarar um ato qualificado de "injusto" ou "arbitrário" como um direito" (OLIVEIRA, 1994, p. 50).

Esse é o mesmo entendimento de Meireles analisando o art. 7º, I, da CRFB/1988:

[...] desse preceito, a primeira lição que se extrai é que é direito do trabalhador a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. Logo, se a lei busca proteger o trabalhador contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, assegurando-lhe esse direito social, constitucional e fundamental, é porque ela não tem como jurídica a despedida imotivada. A despedida injusta, arbitrária ou sem justa causa, portanto, ao menos a partir da Constituição Federal de 1988, passou a ser ato antijurídico, não protegido pela nossa legislação" (MEIRELES, 2005, p. 198) (Grifo nosso).

Concluindo que:

A despedida arbitrária ou sem justa causa, portanto, não se constitui em direito potestativo do empregador. É um ilícito. E se o empregador não tem direito a despedir arbitrariamente, logo ele não pode abusar do direito (que não tem) de despedir (MEIRELES, 2005, p. 199).

Válido registrar que todas essas considerações visando estabelecer um limite ao direito de despedir nada mais são do que uma nuança do princípio de proteção, conforme entoa Hector Hugo Barbagelata, ao fazer a seguinte afirmação:

Este principio incluye el derecho al trabajo, el derecho a trabajar y a la libre elección del trabajo, com las garantías correspondientes, especialmente em favor de quienes actúan dentro de uma relación de trabajo" [06] (BARBAGELATA, 1977, p. 85).

Por tudo quanto foi analisado, a correta compreensão do art. 7º, I, seria de que o empregado está protegido contra a despedida arbitrária ou sem justa causa desde a vigência do texto constitucional de 1988, possibilitando o direito de ação em face do empregador, sem viver aterrorizado moralmente, amedrontado, lesado corriqueiramente, sentindo-se coagido com seu próprio emprego.

Não será feita uma análise dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, de forma mais detida, nesse tópico, tampouco será disciplinada de forma minuciosa as formas de despedida e respectivas conseqüências nos próximos pontos.

O objetivo é mais singelo e destina-se apenas a fazer uma reflexão sobre a importância e o tratamento da proteção no emprego, fazendo-se chegar ao seu devido patamar, mudando o foco da compreensão sobre o assunto, incutindo na mente dos julgadores que a despedida tem que ser por motivo socialmente justificável e a que não for deve ser repudiada e trazer conseqüências gravosas ao empregador.

Nesse desidarato serão estudados, nos próximos tópicos, algumas formas já contidas no direito positivo brasileiro em favor do julgador para seja efetivada a proposta elaborada.

3.2. ABUSO DO DIREITO

Analisar-se-á nesse momento a teoria do abuso do direito que permeia todo o ordenamento jurídico, de forma a embasar a sugestão proposta. Serão comentadas, de forma seletiva, as questões necessárias à finalidade alvitrada.

Não se pode falar na existência de direitos absolutos, surgindo, desse pensamento, a teoria do abuso do direito.

Observa-se uma crescente referência legislativa no Brasil sobre o abuso do direito. Praticamente todos os ramos do saber jurídico prevêem essa teoria, contendo dispositivos que combatem o abuso.

A Constituição Federal protege o ser humano contra o abuso de poder em seu art. 5º, XXXIV a LXVIII e LXIX, irradiando a proteção contra o abuso.

Um dos princípios do Novo Código Civil é o da sociabilidade, adequando-se perfeitamente essa teoria às diretrizes traçadas por esse diploma legal.

Nessa quadra, o Código Civil de 2002 consagrou o abuso do direito no seu artigo 187, ao dispor que "comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Ademais, o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que ao aplicar a lei, o juiz atenderá os fins sociais a que ela se destina, além das exigências do bem comum.

Na visão de Maria Helena Diniz (2001, p. 161) o fim social "é o objetivo de uma sociedade, encerrado na somatória de atos que constituirão a razão de sua composição", enquanto o bem comum seria uma noção bastante complexa, com conceito variável, dependendo de inúmeros fatores, como liberdade, paz, segurança, e utilidade social. Nessa senda, "o juiz, ao aplicar a lei, entregar-se-á a uma delicada operação de harmonização desses elementos, em face das circunstâncias reais do caso concreto" (DINIZ, 2001, p. 165).

Meireles (2005, p. 33) tem o posicionamento consubstanciado exatamente nessa "fuga" à função social, preconizando que "abusa quando são excedidos os limites que decorrem dos fins econômicos, sociais, da boa-fé e dos bons costumes. Será abusivo, ainda, o ato meramente emulativo, isto é, aquele exercitado sem qualquer utilidade para seu titular".

Nesse mesma melodia, o artigo 122 do Código Civil coíbe o abuso de direito ao dispor que é nula a condição que sujeitar um dos contratantes ao puro arbítrio de uma das partes.

Esse é o mesmo pensamento de Wandelli:

As ações abusivas são ações prima facie permitidas, porque subsumíveis a uma regra permissiva, mas que, consideradas todas essas coisas, resultam proibidas, seja porque a regra permissiva inclui casos mais amplos que o exigido pelos princípios que determinam seu alcance justificado (supra inclusão) ou outro princípio que, não concretizado em regra específica tenha, em colisão com aquele, um maior peso. Esse afastamento da regra permissiva funciona precisamente como uma forma de salvaguardas a coerência do sistema diante das características não antecipadas na edição da lei. A diferença entre abuso do direito e fraude à lei decorreria basicamente do fato de que, nesta, a regra regulativa permite o uso de uma regra constitutiva que confere um poder para produzir um dado resultado jurídico no qual decorre um dano injustificado (WANDELLI, 2004, p. 280/281).

Aproximando-se da lição trazida à baila por Wandelli, Meireles (2005, p. 32) determina que são os requisitos do abuso do direito: a) a prática de um ato permitido pelo direito; b) decorrer de um ato comissivo ou omissivo; c) ultrapassar os limites normais do exercício regular de um direito.

Partindo-se especificamente para apreciação do direito do trabalho, constata-se que a maior parte dos escritos sobre o abuso do direito nas relações de emprego cinge-se à casuística no direito de greve, entretanto, o abuso do direito é uma ampla teoria, com aplicabilidade em todos os ramos do direito, norteando a teoria do ato jurídico e servindo de aplicabilidade para a proteção no emprego, contorno mais importante do princípio de proteção.

É cediço que as partes celebrantes do contrato de emprego não estão no mesmo patamar, sendo o pólo do empregador mais forte que o do obreiro, daí surgem os abusos do direito e toda uma teoria ao redor.

Existe na Declaração Sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e Abuso de Poder, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução n. 40/34, de 29/11/1985 uma definição das vítimas de abuso de poder, qual seja:

[...] las personas que, individual o colectivamente, hayan sufrido daños, inclusive lesiones físicas o mentales, sufrimiento emocional, perdida financiera o menoscabo sustancial de sus derechos fundamentales, como consecuencia de acciones u omissiones que no lleguen a constituir violaciones del derecho penal nacional, pero violle normas internacionalmente reconocidas relativas a los derechos humanos [07] (WANDELLI, 2004, p. 33).

Tomando por base o artigo 187 do Código Civil, Meireles (2005, p. 22) traz uma definição de abuso do direito como "o exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos na lei, pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes, decorrente de ato comissivo ou omissivo".

Com efeito, entendo que o empregador, que detém o poder hierárquico, não pode exercer qualquer direito em desfavor do obreiro de forma irrazoável/desproporcional, conforme acima demonstrado, havendo seus atos limites no abuso do direito, malgrado exista direito subjetivo, potestativo ou poderes inerentes. O sujeito é punido por exceder os limites do exercício regular (ou função social) do direito.

Existe uma corrente doutrinária (minoritária) que não compreende o ato abusivo como ato ilícito, mas sim como uma categoria diversa de ato antijurídico, todavia, tal pensamento não encontra respaldo em nossa legislação, à medida que o Código Civil determina ser ato ilícito.

Entretanto, essa discussão se mostra inócua, conforme se depreende do pensamento de Meireles, o qual entendo ser, novamente, o mais acertado:

O que vale destacar, ainda, é que a verdadeira intenção do legislador ao conceituar o abuso do direito como ato ilícito (ato antijurídico) foi a de lhe dar o mesmo tratamento quanto às conseqüências. Assim, numa e noutra hipótese, se do ato (ilícito ou abusivo) decorrer dano a outrem, fica seu responsável obrigado a reparar o mal. Foi, pois, procurando dar o mesmo tratamento jurídico quanto às conseqüências que o legislador configurou o abuso do direito como ato ilícito. Ato ilícito, entendido aqui em seu sentido amplo, isto é, como ato antijurídico de todas as espécies e formas (MEIRELES, 2005, p. 27).

Três são as teorias que tentam explicar a caracterização do abuso do direito.

Pela corrente subjetiva, há abuso do direito quando o sujeito tem a intenção de prejudicar terceiros no uso do direito. É necessário o dolo ou culpa do agente.

Já para a corrente objetivista, existe o abuso do direito mesmo que não exista a intenção de prejudicar outrem. A aferição objetiva das circunstâncias já leva à caracterização do abuso do direito. É conhecida também como a teoria finalista.

Existe ainda uma teoria mista que mistura os critérios objetivos e subjetivos (MEIRELES, 2005).

À guisa do artigo 187 do Código Civil, sem dúvida alguma, o legislador nacional adotou a teoria objetiva.

Nesse aspecto deve-se registrar que na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, realizado em setembro de 2002, restou consignado no Enunciado 37 que "A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico" (LACERDA, 2004, p. 27/28).

Com relação aos critérios para definição de ato abusivo, são eles: desproporcionalidade, violação da boa-fé, função social, função econômica e bons costumes. (MEIRELES, 2005, p. 48).

Nos próximos tópicos serão estudados esses critérios para verificação da abusividade de um ato jurídico, registrando-se que, no nosso modesto entender, a boa-fé, principalmente a objetiva, a função social e econômica, os bons costumes e proporcionalidade são elementos que devem nortear todas as relações sociais, influenciando o legislador, o julgador, os administradores e toda a sociedade.

3.3 BOA-FÉ E FUNÇÃO SOCIAL

Sem titubeações, pode-se afirmar que a boa-fé "é rica de hipóteses de limitação ao direito potestativo de resolução. No direito alemão, Karl Larenz já ressaltara a importância do princípio da boa-fé na limitação de direitos potestativos" (WANDELLI, 2004, p. 336).

A boa-fé, especialmente a objetiva, serve como novo vetor de racionalidade para todo o ordenamento jurídico, inclusive o direito do trabalho.

Américo Plá Rodriguez, em sua clássica obra, já dedicava um capítulo ao princípio da boa-fé, conceituando a boa fé lealdade - a qual, a seu ver, é a que deve vigorar no direito do trabalho - da seguinte forma:

A boa-fé lealdade se refere à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu dever. Pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico, porquanto contém implícita a plena consciência de não enganar, não prejudicar, nem causar danos. Mais ainda: implica a convicção de que as transações são cumpridas normalmente, sem trapaças, sem abusos, nem desvirtuamentos (PLÁ RODRIGUEZ, 1996, p. 273)

"A boa fé, portanto, configura um elemento intrínseco ao contrato de emprego, na medida em que, limitando a autonomia da vontade das partes, resgata o conteúdo ético da relação empregatícia" (SILVA, 2004, p. 21).

Relacionando a boa-fé com o abuso do direito Meireles (2005, p. 54) discorre:

[...] em todos os atos apontados como de abuso de direito, está presente uma violação do dever de agir de acordo com a boa-fé: quando se escolhe com o propósito de prejudicar o modo de exercício do direito que é mais danoso para a contraparte é manifesta a violação do dever de agir com moderação, imposto pela boa-fé.

A melhor doutrina afirma existir a boa-fé objetiva e uma boa-fé subjetiva, sendo um consenso que a boa-fé objetiva possui três funções distintas numa relação jurídica contratual, são elas: "a) como instrumento hermenêutico-integrativo do contrato; b) como norma de criação de deveres jurídicos; e, c) como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos" (MEIRELES, 2005, p. 57).

A boa-fé objetiva foi positivada primeiramente no Código Civil Português, propugnando a "adoção desse princípio como o postulado geral de todo o sistema positivo do Direito" (GOMES, p. 50, 1986 b).

Salienta Orlando Gomes (p. 52, 1986 b) que "a regra de que os contratos se subordinam ao princípio da boa fé não se aplica apenas na fase em que demandam interpretação, mas igualmente nas de conclusão e execução".

A boa-fé objetiva, portanto, é princípio que orienta a formação, interpretação e execução dos contratos.

Com relação à limitação ao exercício de direitos subjetivos, aqui a boa-fé objetiva "tem por função o estabelecimento de normas que limita o exercício de direitos subjetivos" (MEIRELES, 2005, p. 68).

Nessa mesma direção, preciosas são as palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

Esta boa fé, com raiz histórica no Direito Romano, seria uma verdadeira regra implícita em todo negócio jurídico bilateral (o contrato, por excelência), em razão da qual as partes devem não apenas cumprir a sua obrigação principal (dar, fazer, ou não fazer), mas também observar deveres mínimos de lealdade e confiança recíproca (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, p. 343, 2003).

Ao lado da boa-fé objetiva, existe a boa-fé subjetiva, que "está vinculada à ética. Ao comportamento reto e probo da pessoa. Diferencia-se da boa fé objetiva, já que esta se vincula ao estado de confiança gerada na contraparte, tal como veremos adiante" (MEIRELES, 2005, p. 55).

Interessante é o pensamento de Karl Larenz, ainda na década de 50, sobre essas duas formas de boa-fé, quando ensinava:

La "buena fe" como norma de interpretación (§ 157) y como principio fundamental del ordenamiento contractual objetivo (§242) significa, en el fondo, lo mismo. Siempre se trata de lo que, por ser justo, se exige según el sentido del contrato y de acuerdo com la ‘buena fé’ [08](LARENZ, 1956, p. 178).

Como já pincelado, penso que a o princípio da boa-fé objetiva não está subsumido apenas a um critério para aferição do abuso de direito, caminhando lado a lado com esta teoria para coibir a despedida abusiva e ver fortificada a garantia no emprego e a efetivação do princípio protetor.

No que toca à função social, entende-se que "o ato é abusivo quando este se desvirtua do instituto jurídico que foi criado, o qual integra. Isso porque, todo e qualquer instituto jurídico tem uma destinação social" (MEIRELES, 2005, p. 77).

O mais importante fundamento positivado para a função social está no artigo 3º, I, da CRFB/1988, que determina ser objetivo fundamental da República Brasileira construir uma sociedade livre, justa e solidária, fundamento pelo qual o debate que surgiu com o Código Civil, acerca da função social, já existia desde o advento da CRFB/1988.

Pertinentes são os comentários de Eros Roberto Grau sobre esse artigo:

Sociedade livre é a sociedade sob o primado da liberdade, em todas as suas manifestações e não apenas enquanto liberdade formal, mas sobretudo, como liberdade real. Liberdade da qual, neste sentido, consignado no art. 3º, I, é titular – ou co-titular, ao menos, paralelamente ao indivíduo – a sociedade. Sociedade justa é aquela, na direção do que aponta o texto constitucional, que realiza justiça social, sobre cujo significado adiante me deterei. Solidária, a sociedade que não inimiza os homens entre si, que se realiza no retorno, tanto quanto historicamente viável, à Geselschaft – a energia que vem da densidade populacional fraternizando e não afastando os homens uns dos outros. (GRAU, 2004, p. 200)

Esse texto deve servir, a nosso ver, de núcleo para se interpretar as normas infraconstitucionais e contratos, conforme estabelecido pela Constituição Federal.

Consoante demonstrado alhures são violadores da função social os atos que ofendam direitos fundamentais, principalmente os direitos da personalidade, incluindo-se, assim, tudo que se relaciona ao homem em virtude de sua própria natureza, como integridade física e psíquica e todos os seus consectários.

Dessa forma, deve existir uma "[...] ao lado do interesse individual do contratante, é preciso satisfazer o interesse da coletividade. E tal como contrato, todo e qualquer ato, para não ser considerado abusivo, há de ser fonte de equilíbrio social" (MEIRELES, 2005, p. 79, 81/82).

Merece o presente tópico ser concluído com um exemplo que se adequa perfeitamente à sugestão proposta nesse trabalho:

[...] poder-se-ia afirmar que a despedida injusta do empregado, de forma arbitrária, por denúncia vazia, viola a função social à medida que, além de ferir direitos fundamentais (dignidade da pessoa), coloca o trabalhador na condição de desempregado (violando, também, a função econômica do contrato), sem qualquer razão ou justificativa para tanto. Diversa é a hipótese em que a despedida decorre, por exemplo, de dificuldades financeiras da empresa. Neste caso, a despedida deixa de ser arbitrária para se fundar em motivo razoável (MEIRELES, 2005, p. 82).

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Sobre o autor
Maurício Ferreira Brito

Procurador Federal. Pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Maurício Ferreira. A proibição constitucional da despedida arbitrária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2624, 7 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17347. Acesso em: 23 nov. 2024.

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