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Um olhar sobre o novo Código de Processo Civil (PLS nº 166/2010) na perspectiva das prerrogativas da magistratura nacional (especialmente na Justiça do Trabalho)

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III. O ANTEPROJETO DE CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: PONTOS CRÍTICOS

Na linha do quanto exposto em tópico anterior, encontram-se desconformidades formais e materiais, na perspectiva das prerrogativas da Magistratura nacional, em raros preceitos do texto sob tramitação legislativa. Nada obstante, ainda que poucas, lá estão presentes. Por isso, será útil repará-las antes de eventual promulgação do diploma. Dois dispositivos do Anteprojeto de Código de Processo Civil (atual Projeto de Lei n. 166/2010, do Senado Federal) chamam a atenção, em particular, pela referida desconformidade. São eles:

▪ Artigo 10:

O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício.

▪ Artigo 192:

Qualquer das partes ou o Ministério Público poderá representar ao presidente do tribunal de justiça contra o juiz que excedeu os prazos previstos em lei.

§ 1º. Distribuída a representação ao órgão competente, será instaurado procedimento para apuração da responsabilidade.

§ 2º. O presidente do tribunal, conforme as circunstâncias, poderá avocar os autos em que ocorreu excesso de prazo, remetendo-os ao substituto legal do juiz contra o qual se representou, sem prejuízo das providências administrativas.

No que diz respeito ao artigo 10, impende registrar que, a despeito de suas excelentes intenções (na esteira do artigo 5º, LV, da CRFB), termina consumando um retrocesso no plano da aplicação judiciária da norma jurídica, notadamente quando se trata de preceito de ordem pública (de que se invariavelmente se revestem as chamadas "objeções processuais", às quais se reporta o artigo 10). É da tradição do processo ─ em especial no âmbito do processo penal e dos mecanismos processuais de tutela de direitos fundamentais ─ a parêmia latina "iura novit curia", a significar que o juiz pode aplicar o Direito em conformidade com a configuração factual que se lhe apresenta, desde que nisso não desborde dos limites objetivos e subjetivos da lide (a que DINAMARCO denomina princípio da correlação entre a demanda e a sentença); ao desbordar ─ aí sim ─ seria imprescindível a imediata dilação adversarial para efeito de contraditório (como se dá, no processo penal, com a chamada "mutatio libelli" ─ art. 384 do CPP). Com mesma ou maior razão, não há necessidade de se limitar o poder decisório do juiz, quando à mercê de objeções processuais, a um procedimento contraditório prévio. O princípio do contraditório (artigo 5º, LV, CRFB) já estará atendido com a inarredável possibilidade de revisão do "decisum", em sede de recurso, caso uma das partes se entenda "surpreendida" ou contrariada com a subsunção jurídica que o magistrado imprimiu a determinado fato ou circunstância (decadência, coisa julgada, litispendência, carência de ação, etc.). Desse modo, obrigar o juiz a abrir contraditório sempre que pretenda decidir com base em normatividade cogente e cognoscível "ex officio" é limitar a extensão do seu poder de direção processual, circunscrevendo-o a limites que hoje não se impõem e que, inexistentes, nem por isso têm suscitado discussões de fulcro constitucional; e, num certo sentido, é comprometer o próprio princípio da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB).

Não bastasse, a própria sistemática do novo CPC parece transigir com a saudável e necessária possibilidade de decisão imediata com base em matéria de ordem pública, sem prejuízo de eventual contraditório diferido. Vejam-se, por exemplo, os casos do artigo 241, par. único (quanto às nulidades absolutas, cognoscíveis de ofício), do artigo 249, par. único (quanto à decisão de mandar anotar "ex officio" quaisquer intervenções de terceiros), do artigo 258, caput (quanto à determinação "ex officio" de produção de quaisquer provas que julgar necessárias para o julgamento da lide), do artigo 278, par. único (quanto à substituição das medidas acautelatórias por prestação de caução ou outra garantia menos gravosa para o requerido) e, por fim, do artigo 284 (quanto às medidas urgentes de ofício). Ao que se lê nas redações desses preceitos — que sempre preordenam, em alguma medida, «decisão» judicial nos autos —, poderá o magistrado, em qualquer daqueles casos, decidir de ofício (para declarar a nulidade, anotar a intervenção, produzir a prova, substituir ou conceder a medida de urgência, etc.), independentemente de oitiva do "ex adverso". Ou acaso se sustentará que, por força do artigo 10, deverá o juiz, em todos esses casos, ouvir antecipadamente a(s) parte(s)? A ser assim, a hermenêutica sacrificaria amiúde a duração razoável do processo. Em alguns casos, o contraditório prévio seria inclusive contraproducente, quando não impeditivo dos efeitos pretendidos (assim, e.g., nas hipóteses do artigo 284, 1ª parte — excepcionalidade da urgência — ou do artigo 258, caput). Ora, se é dado ao juiz, ao menos nessas situações específicas, decidir "inaudita altera parte", por que não poderá fazê-lo quando estiverem presentes as mesmas razões que aqui justificarão o diferimento do contraditório (a saber, a defesa da ordem pública e/ou a preservação da utilidade e da celeridade do processo)? «Ubi eadem ratio ibi idem ius ».

Está claro que, a depender do caso concreto, poderá o juiz entremear o contraditório, com proporção e utilidade, entre a identificação de objeções processuais incidentes e a sua decisão a respeito. É o que se dá, aliás, com as próprias nulidades absolutas; e, nada obstante, o novo codex autorizará o seu decreto de ofício (artigo 241, par. único), aparentemente sem necessidade de prévia manifestação das partes (a não ser, insista-se, que se pretenda aplicar o artigo 10 à hipótese do artigo 241, par. único; mas, sendo assim, haveremos de aplicá-lo também às hipóteses dos artigos 258 e 284, ainda que isso prejudique a finalidade da norma?). Vê-se, pois, que a melhor sistemática será sempre deixar a critério do magistrado, na direção do processo em cada caso concreto, decidir sobre a necessidade (no aspecto técnico-jurídico, i.e., quanto à constitucionalidade/legalidade de eventual mitigação ou diferimento) e também sobre a conveniência (aspecto político-processual) do contraditório prévio. É, aliás, o que naturalmente decorreria da excelente norma inserta no artigo 107, V, quanto à adequação das fases e dos atos processuais às especificações do conflito, de modo a "conferir maior efetividade à tutela do bem jurídico". Daí porque, ao que nos parece, melhor será eliminar do projeto o seu atual artigo 10, a bem da preservação dos poderes de direção do juiz no processo e do seu próprio livre convencimento motivado.

Deve-se, ademais, debelar os preconceitos que ainda existem quanto à figura do contraditório mitigado ou diferido. Fiel às lições do grande OVÍDIO BAPTISTA [11], é mister reconhecer que a dignidade e a urgência do bem da vida perseguido (i.e., do "direito material") não apenas justifica como muitas vezes impõe um procedimento contraditório diferenciado, sem que isso represente qualquer violência à cláusula constitucional vazada no artigo 5º, LV, da CRFB). Desse modo, pode bem o juiz, deparando-se com objeções processuais ou outras matérias de que deva conhecer "ex officio", decidi-las de plano, mercê do princípio do livre convencimento motivado, quando for essa a melhor solução para a preservação da utilidade do processo e/ou para a sua duração razoável (mais: a depender do bem da vida em jogo e das circunstâncias do caso, terá de fazê-lo). E o fará sem prejuízo do contraditório, que todavia será diferido (mas nem por isso mitigado: mesmo no processo do trabalho, mais infenso a incidentes processuais, a parte insatisfeita poderá registrar seus protestos, na audiência ou no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos, com vistas à ulterior impugnação em sede de recurso ordinário [12]; e, no processo civil — mesmo neste que agora se anuncia —, haverá sempre a possibilidade dos agravos [13]).

Podem-se, ademais, antecipar possíveis gargalos de interpretação com outros preceitos do anteprojeto que reproduzem ou revisitam essas mesmas idéias de «audição prévia e necessária das partes» antes de qualquer ato judicial decisório, mesmo naquilo que o juiz tenha de conhecer de ofício (como, p.ex., o artigo 110, par. único). Entretanto, a bem de uma abordagem sintética e com o propósito de não comprometer o foco da crítica ─ que deve mesmo privilegiar as questões principais (supra) ─, encerramos aqui esta incursão.

No que diz com o novel artigo 192 e com a «responsabilidade» disciplinar dos magistrados pelos excessos de prazo, o problema é ainda mais gritante. Como é de sabença geral, o regime disciplinar da Magistratura não pode ser objeto de lei ordinária federal (como deverá ser, se a final aprovado, o PLS n. 166/2010). As normas de conduta da Magistratura nacional e o respectivo regime disciplinar são — e devem ser — objeto do Estatuto da Magistratura, que hoje tem corpo na Lei Complementar n. 35/79 (LOMAN). E, não bastasse a questão do quórum especial (artigo 69 da CRFB), é certo que, para tanto disciplinar, a iniciativa legislativa jamais poderia ser de um senador da República. Haveria de ser do Supremo Tribunal Federal. É o que dita o próprio artigo 93, caput, da Constituição Federal:

Lei complementar

, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios […] (g.n.).

Nessa alheta, está claro que haverão de ser flagrantemente inconstitucionais (= inconstitucionalidade formal, por vícios de espécie e de iniciativa) as normas vazadas no artigo 192 do anteprojeto, tencionando regular a responsabilidade disciplinar do magistrado pelo excesso dos prazos legais, inclusive com um arremedo de rito para essa específica finalidade (distribuição ao órgão competente, instauração do procedimento disciplinar sem prévia oitiva do acusado, avocação discricionária dos autos em que se der o atraso para efeito de remessa a substituto legal — o que põe em xeque, teoricamente, a própria garantia do juiz natural [14] —, etc.). Com efeito, os deveres dos magistrados estão atualmente dispostos no artigo 35 da LOMAN (sendo certo que o excesso de prazos está contemplado já no inciso segundo, mas com a modulação necessária do advérbio "injustificadamente", que sequer aparece no artigo 192 do PLS n. 166/2010). Por sua vez, a responsabilidade disciplinar do juiz pela inobservância desse dever está regulada entre os artigos 40 e 48 da mesma LOMAN, sendo certo que, para o caso em testilha — que importa em "negligência no cumprimento dos deveres do cargo" (desde que os excessos sejam injustificados) —, a lei prevê penas de advertência (nas situações isoladas) e de censura (no caso de reiteração), quando aos juízes de primeiro grau (ut artigos 42, par. único, 43 e 44), sendo discutível a natureza da sanção quando se tratar de juízes de segundo grau (vez que, por um lado, não se justificaria aplicar-lhes pena mais grave que a reservada para juízes de 1º grau; mas, por outro, tampouco seria juridicamente aceitável que estivessem ao abrigo de qualquer responsabilidade disciplinar em semelhantes casos).

Ademais, o rito para a aplicação de sanções disciplinares a magistrados está igualmente esboçado pela lei em vigor, ao menos para os casos mais graves, nos termos de seus artigos 27 c.c. 46 da LOMAN (recepcionada que foi, às sabenças, como lei complementar). Não poderia a lei ordinária federal fazê-lo, ainda que residualmente, para os casos mais singelos, até porque a delegação legislativa, nesse particular, foi feita aos regimentos internos dos tribunais (artigo 48). Por conseguinte, não pode ser outra a conclusão, senão a de que a tentativa de regular matéria disciplinar afeta à Magistratura nacional no Anteprojeto de Código de Processo Civil — que perfará lei ordinária federal — não resiste ao mais comezinho exame de constitucionalidade.

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Nesse diapasão, e em casos muito semelhantes, pronunciou-se outrora o Excelso Pretório, em variegadas ocasiões (nalgumas, inclusive, por provocação de associações de magistrados, como a Associação dos Magistrados do Brasil e a própria Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho). Vejam-se, por amostragem, as seguintes ementas (de três casos distintos, envolvendo a criação ou o regramento de infrações disciplinares fora do Estatuto da Magistratura, o regramento dos consequentes procedimentos e a competência legalmente delegada aos regimentos internos):

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO Nº 8, DE 25.09.01, DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 20ª REGIÃO. SENTENÇA ANULADA PELO TRT. NOVA DECISÃO A QUO QUE REPRODUZ OS MESMOS FUNDAMENTOS QUE MOTIVARAM A ANULAÇÃO DA SENTENÇA ANTERIOR. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DO TRIBUNAL. MATÉRIA RELATIVA AOS DEVERES FUNCIONAIS DO JUIZ. ESTATUTO DA MAGISTRATURA. ART. 93, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. A decisão do Tribunal que dá provimento ao recurso para anular a decisão impugnada não substitui o ato recorrido, mas se restringe a cassá-lo, por ilegalidade, após reconhecer a existência de vício de atividade ou error in procedendo. 2. Se, por um lado, o magistrado é livre para reapreciar o mérito da causa, podendo, até mesmo, chegar a veredicto coincidente àquele emitido anteriormente (momento em que se estará dando plena aplicabilidade ao princípio da independência do magistrado na apreciação da lide), por outro, de acordo com sistemática processual vigente, a ele é vedado alterar, modificar ou anular decisões tomadas pelo órgão superior por lhe faltar competência funcional para tanto. A ele cabe cumprir a decisão da Corte ad quem, sob pena de ofensa à sistemática constitucional da repartição de competência dos órgãos do Poder Judiciário. Fenômeno da preclusão consumativa pro iudicato. 3. Longe de configurar uma mera explicitação ou uma recomendação reforçativa da obrigação do magistrado de obediência às disposições legais, recortou o ato impugnado determinada conduta do universo das ações que traduzem violação àquele dever, atribuindo a esta autônoma infração grave e exclusiva valoração negativa que se destaca do comando genérico do dever de respeito à lei, dirigido a todos os juízes. 4. Ao criar, mediante Provimento, infração nova e destacada, com conseqüências obviamente disciplinares, incorreu a Corte requerida em inconstitucionalidade formal, tendo em vista o disposto no art. 93, caput da Carta Magna. 5. Ação direta cujo pedido se julga procedente.

[15]

PROVIMENTO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE PROÍBE OS JUÍZES DE SE AUSENTAREM DAS COMARCAS, SOB PENA DE PERDA DE SUBSÍDIOS: MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA PARA DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DO PROVIMENTO IMPUGNADO. O

Tribunal, por unanimidade, julgou procedente a ação e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º do Provimento nº 001, de 31 de julho de 2003, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. [16]

CONSTITUCIONAL. MAGISTRADO: PENAS DISCIPLINARES. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL. C.F., art. 93, X, art. 96, I, a. Lei Complementar 35, de 1979 - LOMAN - arts. 40, 42, parág. único, 46 e 48. I. Aos Tribunais compete, privativamente, elaborar seus regimentos internos, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. C.F., art. 96, I, a. A competência e o funcionamento do Conselho Superior da Magistratura devem ser estabelecidas pelo Tribunal de Justiça, em regimento interno. II. As penas de advertência e de censura são aplicáveis aos juízes de 1º grau, pelo Tribunal, pelo voto da maioria absoluta de seus membros. C.F., art. 93, X. III. - Recepção, pela CF/88, da LOMAN, Lei Orgânica da Magistratura: C.F., art. 93. IV. Os regimentos internos dos Tribunais estabelecerão o procedimento para a apuração de faltas puníveis com advertência ou censura. LOMAN, art. 48. V. Regimento Interno, artigos 37 e 40: inconstitucionais em face do art. 96, I, a, da Constituição Federal (maioria). Voto do Relator: empresta-se interpretação conforme a Constituição para estabelecer que citados artigos 37 e 40 dizem respeito apenas às penas de advertência e censura. VI. ADIn não conhecida em parte e, na parte conhecida, julgada procedente.

[17]

Não restam dúvidas, pois, de que o texto do artigo 192 do Anteprojeto de CPC não pode subsistir.

Revistas essas disposições — nomeadamente a última (artigo 192), que se nos afigura a mais perniciosa —, para o restante bastarão, amiúde, algumas singelas adaptações. Vejamos.

Do ponto de vista estritamente hermenêutico — dizendo, pois, menos com as prerrogativas da Magistratura nacional e mais com a própria atividade judicante diuturna do juiz do Trabalho —, o artigo 14 do PLS n. 166/2010 deverá causar alguma perplexidade, abalando talvez o próprio edifício jurisprudencial que ao longo dos anos se construiu, na Justiça do Trabalho, em torno do artigo 769 da CLT. Por isso mesmo, convirá desde logo adaptá-lo para que, no futuro, sua redação não justifique arroubos de interpretação incoerentes com a sistemática e a principiologia da Consolidação das Leis do Trabalho (ou do diploma legislativo que venha a substituí-la no plano processual), aptos a causar, nos jurisdicionados, polêmica e assombro — e, por essa via, mais demandas em corregedorias.

É que o artigo 14 está assim vazado:

Na ausência de normas que regulem processos penais, eleitorais, administrativos ou trabalhistas, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivamente (g.n.).

Ditada desta maneira, a norma termina por ignorar o clássico binômio clausular de subsidiariedade que a jurisprudência e a doutrina processual trabalhista construiu a partir do artigo 769 da CLT: para que a norma de direito processual comum (i.e., o Direito Processual Civil, ao menos pela interpretação hoje corrente [18]) possa ser aplicada ao processo do trabalho, há que ter omissão (da legislação processual trabalhista) e compatibilidade (entre a norma importada do processo comum e a própria sistemática/principiologia do processo do trabalho). Bem se vê que o artigo 14 ignora, ao menos textualmente, o segundo elemento do binômio (i.e., a compatibilidade). Dir-se-ia que a inferência é óbvia. Mas, se tão óbvia fosse, não constaria expressamente do texto celetário de 1943 ("…exceto naquilo em que for incompatível…").

Mantida nesses termos, a norma parece permitir, por exemplo, que um juiz do Trabalho admita agravo de instrumento contra decisão liquidatária de sentença (artigo 494, §7º, do PLS n. 166/2010 [19]), já que a Consolidação das Leis do Trabalho hoje é omissa a respeito dos métodos de liquidação sentencial (exceto quanto à liquidação por cálculos, "ex vi" do artigo 879, mas sem qualquer referência aos respectivos modos de impugnação). Poder-se-ia, mais, entender que, diante do silêncio da CLT, o «incidente de desconsideração da personalidade jurídica» previsto entre os artigos 62 e 64 do novo CPC seria integralmente aplicável ao processo do trabalho, inclusive quanto ao "prazo comum" de quinze dias (maior que qualquer dos prazos celetários em fase de conhecimento) para que terceiros e pessoas jurídicas manifestem-se previamente e requeiram a produção de provas, até prolação de decisão final, a desafiar agravo de instrumento (artigo 65)… Tais exegeses, se levadas a cabo na esfera do processo laboral, representariam odiosos retrocessos (notadamente nas execuções trabalhistas). Isso porque, sem sombra de dúvidas, essas interpretações — que decorreriam da mera omissão da CLT a respeito — estariam em desacordo com a principiologia do processo laboral, notadamente em razão dos princípios da celeridade processual, da concentração dos atos processuais, da oficialidade da execução e da irrecorribilidade das decisões interlocutórias (ut artigo 893, §1º, da CLT). Em outras tantas matérias, dúvidas similares poderiam ser levantadas, especialmente por aqueles que pretendessem advogar já não ser mais a compatibilidade principiológica um daqueles pressupostos de aplicação subsidiária das normas de processo comum ao processo do trabalho (o que significaria dizer, na prática, que o artigo 14 do PLS n. 166/2010 viria a derrogar a norma do artigo 769 da CLT). Em verdade, nalgumas falas públicas, o próprio presidente da Comissão de Juristas, Ministro LUIZ FUX, deixou transparecer tal pretensão, na evidente propósito de auxiliar o operador do Direito Processual do Trabalho, às voltas com um diploma legislativo que caminha para o seu septuagésimo aniversário (já inapto, pois, a atender às demandas da modernidade). Mas o fato é que, sem o indispensável pressuposto da compatibilidade principiológica, a norma do artigo 14 do vindouro CPC trará muito mais confusões do que equacionamentos, ao menos em seara processual laboral.

Para evitar semelhantes dificuldades, que no limite fariam vir abaixo todo o pórtico de intelecção jurisprudencial já erigido sobre o artigo 769 consolidado, é de toda conveniência emendar a redação do artigo 14 do anteprojeto, para que seja promulgado com o seguinte texto:

Na ausência de normas que regulem processos penais, eleitorais, administrativos ou trabalhistas, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivamente, exceto naquilo em que forem incompatíveis com os respectivos sistemas ou princípios.

Com isso, já não restarão dúvidas de que, tanto no processo do trabalho como nos demais ramos da processualística contemporânea (processo administrativo, penal, penal militar, eleitoral, etc.), a norma processual civil só poderá ser "importada" quando não conflitar com os princípios e a sistemática própria de cada um daqueles ramos. No caso específico da Justiça do Trabalho, preserva-se a jurisprudência já construída para a matéria (e, com isso, incrementa-se, num primeiro momento, a segurança jurídica, tão importante nos períodos de transição legislativa), sem prejuízo da renovação que decerto advirá dos novos princípios positivados pelo PLS n. 166 (especialmente em seu artigo 107).

Valeria ainda uma última palavra quanto à força das decisões judiciais, em especial nas hipóteses de liminares em tutelas de urgência e de evidência, no âmbito do Anteprojeto de Código de Processual Civil. Em certas passagens, o descumprimento de ordens judiciais é tratado como crime de desobediência (atualmente, o artigo 330 do Código Penal [20]). Assim ocorre com o artigo 503, §8º, do PLS n. 166/2010 (quanto ao descumprimento de providência mandamental dada em sentença de cumprimento de obrigação de fazer ou de não-fazer), como também no artigo 382, caput (quanto ao descumprimento de ordem de exibição de documento). Leiam-se:

Art. 382.

Se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a efetuar a exibição, o juiz ordenar-lhe-á que proceda ao respectivo depósito em cartório ou em outro lugar designado, no prazo de cinco dias, impondo ao requerente que o embolse das despesas que tiver; se o terceiro descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão, requisitando, se necessário, força policial, tudo sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência, pagamento de multa e outras medidas mandamentais, sub-rogatórias, indutivas e coercitivas.

Parágrafo único.

Das decisões proferidas com fundamento no art. 381 e no caput deste artigo caberá agravo de instrumento (g.n.).

Adiante:

Art. 503.

A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na sentença ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 1º A multa fixada liminarmente ou na sentença se aplica na execução provisória, devendo ser depositada em juízo, permitido o seu levantamento após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo contra decisão denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.

§ 2º O requerimento de execução da multa abrange aquelas que se vencerem ao longo do processo, enquanto não cumprida pelo réu a decisão que a cominou.

§ 3º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:

I – se tornou insuficiente ou excessiva;

II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 4º A multa periódica incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.

§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.

§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será integralmente devida ao credor.

§ 8º Sempre que o descumprimento da obrigação pelo réu puder prejudicar diretamente a saúde, a liberdade ou a vida, poderá o juiz conceder, em decisão fundamentada, providência de caráter mandamental, cujo descumprimento será considerado crime de desobediência (g.n.).

Tais normas, vazadas nesses termos, podem comprometer a própria autoridade do julgado. O crime de desobediência é delito de menor potencial ofensivo (artigo 61 da Lei n. 9.099/95, na redação da Lei n. 11.313/2006); logo, sequer admite prisão em flagrante, se o acusado assumir o compromisso de comparecer perante a autoridade judiciária penalmente competente (artigo 69, par. único, da Lei n. 9.099/95). A depender da hipótese — imagine-se, por exemplo, a recente decisão prolatada pela 2ª Vara do Trabalho de Paulínia no rumoroso caso do "Recanto dos Pássaros", impingindo gastos de grande expressão a multinacionais (SHELL e BASF) [21] —, o staff corporativo poderá até mesmo compreender ser "vantajoso" o descumprimento de uma ordem judicial exarada com efeitos imediatos, pois a consequência mais grave da desobediência seria a mera lavratura de um termo circunstanciado contra preposto da empresa (sem considerar a natural dificuldade de individualização de condutas em casos desse jaez). Por outro lado, se o órgão do Ministério Público pretender subsumir a conduta em questão a delito mais grave, poderá encontrar inusitada resistência pelo viés do princípio da estrita legalidade penal ("lex certa et stricta"), já que a lei federal posterior (i.e., o PLS n. 166/2010) terá vinculado tal conduta ao tipo penal do artigo 330 do CP, sem ressalvas.

Para evitar semelhantes subterfúgios, importa ressalvar a responsabilidade por crime mais grave, estabelecendo textualmente o caráter subsidiário do crime de desobediência. Observe-se que, ao menos no caso do artigo 382, caput, ressalvou-se expressamente o "pagamento de multa e outras medidas mandamentais, sub-rogatórias e coercitivas" (o que permite supor inclusas outras medidas de coerção penal). Já no caso do artigo 503, §8º, sequer isso se fez (conquanto a hipótese, aqui, seja potencialmente mais grave, por envolver "diretamente a saúde, a liberdade ou a vida"). Daí a sugestão de se acrescer à parte final do artigo 503, §8º, a tradicional locução "se o fato não constituir crime mais grave", tantas vezes utilizada pelo Código Penal em vigor (e.g., artigo 132, artigo 163, par. único, II, artigo 238, artigo 307, artigo 314, etc.).

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Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Um olhar sobre o novo Código de Processo Civil (PLS nº 166/2010) na perspectiva das prerrogativas da magistratura nacional (especialmente na Justiça do Trabalho). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2625, 8 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17356. Acesso em: 19 abr. 2024.

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