3. A LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A Constituição Federal e a lei da ação civil pública impõem ao Ministério Público o dever de atuar na defesa dos interesses da sociedade, refletindo assim o cerne do órgão, qual seja, a promoção do estado democrático de direito e a luta contra violações aos direitos dos cidadãos por parte do Estado. De fato, a legitimação conferida ao Ministério Público para a propositura de ação civil pública encontra diversas vantagens, dentre as quais a sua estrutura de abrangência nacional e o compromisso da instituição com o interessa da comunidade, haja vista a sua missão de defender o interesse social. [58]
Por seu turno, o art. 6º do Código Processo Civil estabelece que a ninguém é dado pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.
Nelson Nery Júnior, em seu curso de direito processual civil, assevera que os "legitimados ao processo são os sujeitos da lide, isto é, os titulares dos interesses em conflito. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão." [59]
Vê-se portanto que ao parquet foi conferida legitimidade por força de lei, para propor ação judicial visando defender interesses metaindiviuais.
Trata-se de legitimação extraordinária, exercida mediante o "comparecimento em juízo de pessoa que, atuando em nome próprio, pleiteia direito alheio, legalmente autorizado". [60]
A legitimação extraordinária é caracterizada pela ausência de coincidência entre o legitimado e a titularidade da relação jurídica de direito material, a atribuição da ação a quem não detém titularidade do direito material, a atuação em nome de outrem, a defesa de direito material alheio e a dependência de autorização legal. [61]
O legislador, ao confeccionar os moldes legais da ação civil pública, permitiu a órgãos estatais a defesa de interesses referentes a toda uma coletividade, e, no caso do Ministério Público, lhe cominou legitimação ordinária para a promoção da defesa dos interesses metaindividuais, tratando-se de exercício de função atribuída de forma expressa e inequívoca pelo legislador constituinte.
Acerca da matéria, Hugo Nigro Mazzilli entende se tratar de caso de legitimação extraordinária, cujo sistema fora "concebido justamente para permitir que indivíduos, fragmentariamente lesados pela violação de direitos, sejam substituídos no pólo ativo de um único processo coletivo por um legitimado ativo" [62].
3.1. Status constitucional da legitimação
A Constituição Federal de 1988, tida como a "Constituição Cidadã", insculpiu em seu art. 127 o perfil constitucional do Ministério Público, lhe conferindo status de instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, atribuindo-lhe o dever de promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
A atuação do parquet no âmbito cível se dá enquanto órgão interveniente na qualidade de custos legis ou órgão agente, caso da ação civil pública visando defender interesses transindividuais.
A par do princípio dispositivo, as características inerentes ao órgão ministerial tornam aplicáveis os princípios da taxatividade e da indisponibilidade da sua atuação, quando verificadas lesões ou ameaças a direitos e interesses da coletividade, devendo a legitimação constitucional ser interpretada de maneira ampla. Apesar do disposto no art. 129, inciso II, da Constituição, não há legitimidade exclusiva do parquet para a propositura da ação civil pública, mas há a necessidade de que o órgão atue como interveniente.
Com base nas verificações indicadas, pode-se advogar a tese segundo a qual a Constituição conferiu ampla liberdade de atuação para o Ministério Público na defesa do patrimônio público e da ordem jurídica, de forma que interesses e direitos metaindividuais, sejam difusos e coletivos ou individuais homogêneos, são plausíveis de serem tutelados mediante legitimação extraordinária para defender interesses individuais homogêneos disponíveis nas estritas hipóteses de expressão e relevância social afetas às atribuições constitucionais lhe cominadas.
Examinando a legitimação para agir sob o ponto de vista do direito público, Piero Calamandrei aponta o dever de ofício decorrente da legitimação conferida pelo Estado por intermédio do texto constitucional:
como entre os poderes de disposição está compreendido também o poder de invocar a garantia jurisdicional, a distinção entre direito privado e direito público no campo substancial se projeta no processo através da legitimação para agir: e, se tem, em consequencia, ação privada quando o poder de provocar o exercício da jurisdição está reservado de um modo exclusivo ao titular do interesse individual que a norma jurídica protege, e ação pública quando tal poder é confiado pelo Estado a um órgão público especial, que age, independente de qualquer estímulo privado, por dever de ofício. [63]
Nestas condições, a função ministerial de promover a defesa dos interesses da coletividade, da ordem jurídica, da ordem econômica e dos interesses difusos indisponíveis, cria uma amplitude de atuação, de modo que as medidas tributárias, inseridos no macrossistema da ordem econômica e financeira, formam linhas que jamais podem ser vistas como paralelas. Em outras palavras, o direito ou interesse afeto à seara tributária atinge de forma imediata o contribuinte – titular do direito –, mas afeta também, de forma mediata, toda a sociedade de forma indistinta, haja vista que o sistema tributário se anela intimamente ao sistema financeiro.
Os princípios – a partir da nova ordem constitucional pós-positiva –, tem como papel resguardar os direitos individuais e coletivos lhe inerentes, insculpidos até mesmo na defesa da ordem econômica (art. 170 da Constituição da República). Por tal motivo, o nível constitucional dado à legitimidade ministerial encontra respaldo no próprio interesse social envolvido na defesa dos direitos fundamentais, base maior de toda a legislação infraconstitucional.
4. A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Repisando, a regra constitucional preconiza que compete ao Ministério Público a garantia da ordem social, consagrando assim o campo de atuação do Ministério Público. O interesse público é, portanto, o norte da atuação ministerial. No exercício deste mister, diversas vezes esteve o parquet a instaurar ações civis públicas cujo objeto versa acerca de tributos, seja para proteger direitos transindividuais atinentes à cobrança de impostos ou taxas ilegais, seja no que diz respeito ou mesmo na defesa do patrimônio público afetado por termos de acordo de regime especial de tributação, dentre outras situações analisadas no tópico subsequente.
Destacando o interesse público que deve revestir a ação civil pública, Edis Milaré conceitua-na como "o direito expresso em lei de fazer atuar, na esfera cível, em nome do interesse público, a função jurisdicional. [64]
Não obstante a imperatividade das normas constitucionais, a atuação do parquet nas questões envolvendo tributos tem sido controvertida, sendo notório que há oscilação na jurisprudência e que ainda não foi plenamente assimilado o teor do art. 1º, parágrafo único, da lei da ação civil pública (introduzido por intermédio de uma medida provisória).
A este propósito, em que pese o desenvolvimento das instituições sociais e do Estado Democrático de Direito, Ada Pelegrini Grinover destaca como "nota dissonante, nesse cenário, a atitude do governo, que tem utilizado Medias Provisórias para inverter a situação, com investidas contra a Ação Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia, limitar o acesso à justiça, frustrar o momento associativo, reduzir o papel do Poder Judiciário. [65]
Como asseverado alhures, o Ministério Público tem conferida a legitimidade ativa na tutela dos direitos e interesses coletivos – aí incluídos os direitos individuais homogêneos – sempre que houver interesses materiais discutidos que tornem a questão socialmente relevante.
A despeito disto, as discussões acerca da questão quase que inevitavelmente passam pelo tema da defesa dos interesses dos contribuintes enquanto coletividade. Conforme já explanado, o fato de ser divisível e individualizável o interesse do contribuinte tem levado muitos à conclusão de que inexiste legitimidade ativa do Ministério Público para discutir questões afetas aos contribuintes. O caráter patrimonial do ônus tributário e a sua disponibilidade tem sido apontados como fatores impeditivos da atuação ministerial.
Como já ressaltado, o fato de a ampliação do âmbito de alcance da ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos encontrar-se inserta no Código de Defesa do Consumidor, é também utilizado como argumento para flexibilizar a atuação do parquet nesta esfera, posto que "a relação jurídico-tributária não constitui relação de consumo, de modo a permitir a utilização dos mecanismos de defesa do consumidor para se questionar a constitucionalidade de tributo" [66].
Corroborando este entendimento restritivo, o Supremo Tribunal Federal, no ano de 1999, chegou mesmo a exarar entendimento segundo o qual a defesa dos interesses supraindividuais dos contribuintes não se amolda às categorias de interesses difusos, coletivos, nem mesmo aos individuais homogêneos.
A ação fora proposta pelo Ministério Público do Estado do Paraná, visando impugnar a cobrança e restituir valores indevidamente cobrados a título de Imposto de Propriedade Territorial Urbana no município de Umuarama. Ao final, a egrégia Corte Constitucional entendeu pela ilegitimidade do órgão. É o que se infere da ementa que abaixo se reproduz:
CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPOSTOS: IPTU. MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE.
Lei 7.374, de 1985, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078, de 1990 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25. C.F., artigos 127 e 129, III.
I. - A ação civil pública presta-se a defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25.
II. - Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III.
III. - O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto - no caso o IPTU - pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei 7.374/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25, IV; C.F., art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com "interesses sociais e individuais indisponíveis." (C.F., art. 127, caput).
IV. - R.E. não conhecido. [67]
Quando do julgamento do aludido Recurso Extraordinário, o eminente Ministro Marco Aurélio de Mello externou sua discordância para com a decisão acima. Em suma, a decisão considera que não cabe a defesa de interesses individuais homogêneos por meio de ação civil pública, posto inexistir relação de consumo entre sujeito ativo e passivo de tributo.
No entendimento de Marco Aurélio de Mello, a interpretação sistemática da Constituição Federal e da Lei Complementar nº 75/93 induzem à idéia de que não há fundamentação plausível para não se considerar que a cobrança irregular de tributo não tenha pertinência a direitos supraindividuais.
O teor de seu brilhante voto possui a seguinte fundamentação:
Senhor Presidente, faço uma outra leitura do disposto no inciso III do artigo 129 da Constituição Federal:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
Essa cláusula final, sob a minha óptica, revela que o preceito não é taxativo, não é numerus clausus. Além da proteção ao patrimônio publico, social e, também, ao meio ambiente, podemos ter outros interesses alcançados, desde que difusos e coletivos. Por outro lado, o artigo 127, ao dispor sobre a atuação do Ministério Publico na defesa dos direitos e interesses sociais e individuais indisponíveis, alberga os homogêneos.
O código de Defesa do Consumidor acabou por explicitar uma espécie de interesses compreendida no gênero coletivo. Refiro-me aos interesses individuais homogêneos. Ora, na espécie dos autos, trata-se de interesses individual homogêneo? A resposta, para mim, é desenganadamente positiva, porque a ação foi intentada objetivando beneficiar todos os contribuintes de um município. O interesses social salta aos olhos, considerada a globalidade dos que residem no município, valendo notar a natureza publica da relação jurídica tributaria.
Na espécie, tem-se o interesse social, um predicado que direciona à conclusão do envolvimento de interesses individuais homogêneos, que é justamente o aspecto social.
Estou lembrado de uma hipótese, que não diria mais ou menos favorável do que a retratada nestes autos, na qual o Plenário concluiu no sentido de reconhecer a legitimidade do Ministério Publico. Aludo ao problema das mensalidades escolares. Caminhamos nesse sentido, dando uma interpretação, portanto, teleológica ao inciso III do artigo 129 da Constituição Federal, considerada a repercussão no tecido social, ou seja, o interesse abrangente dos cidadãos.
O Ministro Ilmar Galvão menciona a inibição – eu diria a acomodação – dos contribuintes quanto ao acesso ao Judiciário para reclamar, relativamente a tributo, lesão ou ameaça de lesão a direito. Isso é uma constante, porque o cidadão geralmente aquilata os aspectos negativos e positivos da ação, considerados os aborrecimentos que tem e as despesas, no que precisa contratar um profissional da advocacia. Esperar-se que cada qual, residente no Município de Umuarama, ajuíze a ação para impugnar a majoração do tributo tida como ilegal é simplesmente assentar-se que não teremos tal ajuizamento.
Chegou ao meu conhecimento, certa vez, discutindo-se a constitucionalidade ou não de um diploma que majorava ou introduzia tributo, indagou-se a percentagem, e seria essa a expressão, "a percentagem de inconstitucionalidade", a qual estaria norteada não pelo teor da norma em cotejo com a Carta da República, mas pelo numero de cidadãos que, de regra, vêem no acesso ao Judiciário, o exercício de um direito inerente à cidadania e formalizam a irresignação para vê-la aplicada pelo Judiciário.
Senhor Presidente, conforme parecer da Procuradoria-Geral da República – pelo menos não estou sozinho nessa óptica, estou com um fiscal da lei -, Hugo Nigro Mazzilli, ao discorrer sobre essa mesma matéria, a legitimidade do Ministério Público, asseverou:
No caso de ajuizamento visando a obter a devolução de tributos ilegalmente retidos ou recolhidos de milhares ou milhões de contribuintes (...), negar o interesse da sociedade como um todo na solução deste litígios e exigir que cada lesado comparecesse a juízo em defesa de seus interesses individuais, seria negar os fundamento e os objetivos da ação coletiva ou da ação civil publica. (op. Cit., p.80).
Acrescentaria: isto para não se falar em verdadeira reserva de mercado.
Há outro aspecto a respaldar a conclusão sobre a legitimidade em foco. Viabiliza a desburocratização do Judiciário, concentrando pretensões em um único processo, alem de implicar freio à fúria arrecadadora do Estado. Sob o ângulo negativo, não vejo qualquer inconveniente na iniciativa do Ministério Publico.
Por ultimo, atente-se para a Lei Complementar regedora da atividade do Ministério Publico – Lei Complementar nº 75/93. O artigo 5º, inciso II, impõe-lhe zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos ao sistema tributário e entre eles estão as limitações ao poder de tributar. Cumpre ao Judiciário agasalhar as iniciativas voltadas ao restabelecimento da paz social, ao equilíbrio das relações Estado-cidadão, viabilizando, até mesmo, o melhor funcionamento da grande máquina que encerra.
Peço vênia àqueles que entendem de forma diversa para conhecer do recurso e dar-lhe provimento, na forma em que colocado, endossando, portanto, a manifestação do Ministério Publico Federal.
É o meu voto.
No mesmo ano, o órgão Pleno do mesmo Supremo Tribunal Federal veio a externar entendimento segundo o qual o Ministério Público deteria legitimidade para defender interesses difusos, mas não aqueles "de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva". [68]
Verifica-se, portanto, que mesmo tendo a própria Constituição assegurado o direito ao acesso coletivo à jurisdição, inclusive por meio de ação civil pública para a defesa de quaisquer interesses transindividuais, parte dos estudiosos passou a entender alguns que as lesões a contribuintes "não poderiam ser objeto de discussão em ação civil pública, por não envolverem consumidores, como se, após a integração da Lei da Ação Civil Pública e do Código de Defesa do Consumidor, já não tivesse ficado claro que o sistema de tutela coletiva abrange a defesa de quaisquer interesses transindividuais, e não apenas aqueles ligados à relação de consumo". [69]
Os contornos constitucionais da legitimidade atribuída ao órgão ministerial não permitem que tal interpretação restritiva seja unânime na doutrina e na jurisprudência, e, ainda que assim se considerasse, há que se ter em mente que a ação civil pública envolvendo tributos não necessariamente estará a tratar de defesa coletiva de contribuintes individualizáveis, vez que, frise-se, há uma vasta gama de interesses e direitos inerentes ao sistema tributário, que, em última análise, encontram-se interligados à economia e às finanças, a implicar na inexorável conclusão de que medidas em matéria tributária constantemente afetam interesses difusos.
O sistema de ações coletivas estabelecido na legislação pátria, pelo qual alguns co-legitimados podem, em uma única ação de índole coletiva, obter a decisão sobre a existência ou não de um direito pertinente a todo um grupo de pessoa, foi elaborado com o propósito de evitar que inúmeras ações individuais viessem a abarrotar os órgãos do Poder Judiciário, demorando décadas para serem julgadas e recebendo decisões divergentes, o que culminaria com o desprestígio da Justiça e mesmo o abandono do direito. [70]
Em defesa da aplicação irrestrita da norma constitucional, a despeito da disponibilidade ou não dos direitos discutidos, Walter Nunes da Silva Junior assevera:
Não importa se o direito é disponível, ou não. Basta que ele seja difuso, coletivo ou individual homogêneo. Não procede, penso, o entendimento, preservado por parte da doutrina, segundo o qual o Ministério Público não teria legitimidade para defender direitos individuais homogêneos disponíveis, uma vez que a Constituição, no art. 127, caput, restringiu a atuação do Ministério Público à defesa dos direitos ali especificados, sendo vedado ao legislador infraconstitucional ampliar as hipóteses.
Ora, a norma insculpida no caput do art. 127 da Carta Política preceitua garantia de ordem social, devendo, por conseguinte, de acordo com regra de hermenêutica adotada em nossa ordem jurídica, ser interpretada de forma extensiva, cabendo ao exegeta entender que se trata de campo de atuação mínima do Ministério Público, sendo permitido ao legislador subconstitucional, desde que não caracterize desvirtuamento dos fins institucionais do órgão estatal em referência, estender a sua área de ação em defesa de interesses da sociedade. [71]
A repercussão das questões tributárias na ordem econômica são apontadas por Walter Barral como elemento ensejador da atuação ministerial, posto ser "
perceptível, na configuração sócio-institucional contemporânea, a mescla de interesses entre o Ministério Público e a população local. Inconcebível, a partir daí, imaginar-se que poderia seu representante permanecer inerte face à violação de interesses de toda a comunidade. Interesses que, embora, fluidos, se substanciam numa ordem econômica estável. [72]
Conforme leciona Paulo de Barros Carvalho, as questões de ordem pública e privada se mesclam na seara econômico-financeiro-tributária, vez que são conglobantes as linhas mestras dos sistemas componentes destas esferas de atuação estatal:
surpreendido no seu significado de base, o sistema aparece como o objeto formado de porções que se vinculam debaixo de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de sistema. [73]
Assim, evidencia-se que as questões envolvendo tributos ganham relevo, em especial devido ao fato de que os princípios gerais do sistema tributário nacional interferem diretamente nos interesses sociais de compleição supraindividual.
Dada a complexidade do sistema econômico-tributário, mesmo as violações sensíveis aos preceitos tributários, acabam por interferir na esfera econômica dos demais entes federativos, transpassando a esfera dos interesses individuais disponíveis e divisíveis.
Ainda à luz do magistério de Paulo de Barros Carvalho, ao compor o estrato da Constituição, infere-se que "o subsistema constitucional tributário realiza as funções do todo, dispondo sobre os poderes capitais do Estado, no campo da tributação, ao lado de medidas que asseguram as garantias imprescindíveis à liberdade das pessoas, diante daqueles poderes".
Assim sendo, à luz do amplíssimo plexo de atribuições constitucionais, conclui-se que a Constituição Federal estabeleceu propriamente um subsistema constitucional tributário, em cuja essência encontram-se protegidos interesses transindividuais fundamentais de índole social, afetos a toda coletividade, servindo se barreira para a livre atuação do Estado.
4.1. Exegese do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85
Com o advento da conversão da Medida Provisória n° 2.180-35/01em lei, restou manifesto o intuito do Estado no sentido de evitar que discussões acerca de tributos fossem levadas ao Judiciário no bojo de uma ação civil pública. De fato, a situação econômica da época em que editada era propícia para que Estado se resguardasse de meios que lhe impedissem de sofrer as consequencias processuais típicas das ações civis públicas.
De acordo com o aludido parágrafo único, "não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".
Como bem asseverou Hugo Nigro Mazzilli, inobstante a clara dicção constitucional "que assegura que a tutela coletiva é um direito fundamental, e caberá em quaisquer interesses difusos e coletivos, lato sensu, o governo federal não teve pejo em, mais uma vez, abusando da edição de medidas provisórias, buscar evitar ou impedir exatamente o acesso coletivo à jurisdição, em matérias que poderiam voltar-se contra o interesse público secundário (visto pelo ângulo da Administração)." [74]
Forte neste entendimento, Cínthia Theresinha Mua destaca que a intersubjetividade do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana restou afetado pela medida restritiva advinda de uma Medida Provisória.
De acordo com seu entendimento,
barrar a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública, instrumento ordinário da atuação ministerial na provocação do Estado-Juiz, é ignorar a intersubjetividade da dignidade da pessoa humana, inibindo que desalinhos sejam coibidos eficientemente, e não apenas nos limites de múltiplas ações individuais, a produzir mudos efeitos, desproporcionalmente acanhados para colmatar lesões provenientes de acidentes de coletivização, que imputam reverberações no tecido social muito mais amplas que a mera afetação da órbita singular dos diretamente envolvidos, que, aliás, sequer são conhecidos, e por isso são tratados como coletividade abstrata, só cognoscíveis subjetivamente na executio. Impor a pulverização de ações em hipóteses tais é assegurar apenas formalmente o acesso à jurisdição, pressupondo que todos os titulares das pretensões individuais estejam em condições de superar as barreiras e lutar por seus direitos. [75]
Ainda de acordo com Hugo Nigro Mazzilli, ao ilustrar a atitude tomada pelo governante, a medida é semelhante à do pai que entrega com uma mão para tirar com a a outra, pois como a Constituição e as leis instituíram um sistema de defesa de direitos e interesses metaindividuais, e tal sistema pode ser usado contra o governo, criou-se mecanismo para impedir o seu funcionamento. [76]
De fato, o novel texto legal atingiu no âmago a defesa coletiva dos interesses da coletividade, tornando a situação mais confortável para o Estado, posto que o cidadão ou contribuinte se veria às voltas com problema que, embora afeto a todo o seu grupo de indivíduos, haveria de ser resolvido mediante ingresso em juízo com a contratação de advogado, com todos os consectários desgastantes decorrentes de tal medida.
Contudo, o teor normativo do parágrafo único do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública, além de permitir dúbias interpretações, encontra-se dissonante e limitativo do texto constitucional que lhe informa.
Primeiramente, ao dispor que não se pode discutir matéria relativa a tributos, esteve a norma a criar limitação extremamente ampla, o que se distancia das normas superiores já analisadas à exaustão. Isto pelo fato de que, se a intenção do legislador era – como de fato é – de golpear a facilitação da defesa do contribuinte em juízo, este esteve por outro lado a possibilitar discussões acerca da legitimidade para discutir danos aos demais interesses expostos na Lei nº 7.347/85 quando estes envolvam tributos, posto que a amplitude da dicção "envolver tributos" pode abranger universo não almejado pela lei.
Ainda, verifica-se que houve uma tentativa de delimitar tal dicção normativa, a ponto de se considerar que não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvem tributos "cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".(grifamos)
Contudo, tal como explanado alhures, os beneficiários de decisões proferidas em sede de ação civil pública envolvendo tributos, em verdade, são no mais das vezes indetermináveis e indivisíveis, dado o já mencionado caráter sistêmico-conglobante das esferas econômica, financeira e tributária.
Tal alteração legislativa não corresponde com o entendimento que até então se exarava no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Até o surgimento da Medida Provisória nº 2.180-35/01, o entendimento consolidado na Segunda Turma da Corte Cidadã era no sentido de admitir que "a soma dos interesses múltiplos dos contribuintes constitui o interesse transindividual, que possui dimensão coletiva, tornando-se público e indisponível, apto a legitimar o Parquet a velá-lo em juízo". [77]
Asseveram doutrinadores do quilate de Welber Barral e Hugo Mazzilli que tal entendimento encontra-se consonante com a Lei Maior, não senso plausível admitir sua revogação a pretexto de se atender a uma lei ordinária federal, especial por ter sido editada em contexto que torna escancarado o seu objetivo escuso sob o ponto de vista da ordem jurídica constitucionalmente estabelecida.
Assim, à luz das regras constitucionais norteadoras, exsurge o entendimento segundo o qual a legitimidade do parquet não se circunscreve apenas aos direitos individuais homogêneos expressos na legislação, como acontece no Estatuto do Idoso, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor, na defesa dos investidores do mercado de valores imobiliários (Lei nº 7.913/89) ou dos credores de instituições financeiras em regime de liquidação extrajudicial (Lei nº 6.024/74).
Exarando juízo pelo qual entende que se encontra afetada por inconstitucionalidade a aludida norma, Cínthia Theresinha Mua assevera que
manietar a ação do Órgão a este viés – autorização da legislação infraconstitucional – subverte a ordem axiológica do sistema e esbarra na sua conhecida e intrínseca incompletude. É a casuística, e não os iluminados, que fará colorir a legitimidade do Parquet ora telada, sua matriz estará sempre correlacionada ao precípuo papel que lhe confiou o Constituinte originário --- guardião da democracia substancial. Por isso, a fonte da legitimidade é mais altiva e independe da benevolência do legislador ordinário.
(...)
Não é razoável conferir interpretação restritiva à dicção abrangente do Constituinte originário, manietando o Órgão-Agente de seu mister, ceifando garantias constitucionais211 ao pleno exercício da cidadania, com escopo na maior aproximação possível do Estado histórico ao Estado idealizado no Documento Maior, que pressupõe e almeja a concreção da democracia substancial. [78]
A restrição encontra eco na doutrina no que atine à impossibilidade de se utilizar a ação civil pública como via oblíqua para o controle de constitucionalidade da norma em seara tributária.
Ainda de acordo com o magistério de Cínthia Theresinha Mua,
No seio do Colendo Superior Tribunal de Justiça a questão apresentava-se dicotomizada. Num primeiro flanco, o entendimento de que mesmo consolidada a lesão aos interesses individuais homogêneos em matéria tributária, a ação civil pública não poderá cotejar o exame da inconstitucionalidade da lei instituidora, sequer incidentalmente, porquanto tal prática representaria via obliqua de controle concentrado de constitucionalidade (REsp 169602/SP, 2ª Turma, Relator Ministro Francisco Peçanha Martins, j. 16/08/2001, DJU 08/10/2001, p. 191).
No pólo oposto, a consagração do remédio como idôneo para tal fim, entendendo "(...)lícita a argüição incidental de inconstitucionalidade de norma tributária em sede de Ação Civil Pública, porquanto nesses casos a questão da ofensa à Carta Federal tem natureza "prejudicial", sobre a qual não repousa o manto da coisa julgada" (REsp 478944/SP, 1ª Turma, Relator Ministro Luiz Fux, j. 02-09-2003, DJ 29-09-2003, p. 153, unânime).
Assim, defende a autora que nada impede que a ação civil pública tenha por base uma inconstitucionalidade, a ser argüida pela via difusa. Conquanto tenha a ação civil pública o objetivo peculiar de defender direitos constitucionalmente tutelados, enquanto a declaração de inconstitucionalidade por via de ação é a retirada da lei do ordenamento jurídico, dada a sua eficácia erga omnes, a inconstitucionalidade de uma norma, quando reconhecida no bojo de uma ação civil pública, torna impossível a sua produção de efeitos, mas não a sua retirada do mundo jurídico. [79]
Partindo-se de uma análise sistêmica das normas legais e constitucionais, pode-se argumentar que questões tributárias cuja propagação de efeitos irradiam por todas as entranhas sociais, não encontram efetivo óbice legal para que sejam discutidas no âmbito de uma ação civil pública, frustram as funções institucionais do parquet.
Neste sentido leciona Antonio Souza Prudente:
De ver-se, assim, que, em matéria tributária, os interesses individuais homogêneos, legalmente definidos, como aqueles decorrentes de origem comum, uma vez agredidos, coletivamente, em seu núcleo originário (hipótese de incidência tributária e conseqüente fato gerador, de natureza homogênea, a gestar obrigações tributárias e resultantes interesses individuais também homogêneos), sofrem, por força do impacto agressor, o fenômeno da atomização processual, em defesa de interesse coletivo e social, relevantes a legitimar a pronta atuação do Ministério Público, na linha de determinação institucional dos arts. 127, caput e 129, III, da Constituição da República, traduzidos nas disposições dos arts. 5º, II, a e 6º, incisos VII, a e d e XII, da Lei Complementar n.º 75/93, mediante as garantias instrumentais da Ação Civil Pública, evitando, assim, a pulverização dos litígios, com o conseqüente acúmulo de feitos judiciais, nos Tribunais do País, nessa seara histórica de abusos tributários, onde o contribuinte, individualmente considerado, sem recursos e órfão da assistência judiciária do Estado, queda-se inerte e vitimado, sem qualquer defesa, ante a brutal arrogância do Fisco.
(...)
Com o devido respeito às opiniões contrárias, entendo que a única interpretação válida, nesse contexto, é aquela que brota do tecido constitucional e se mantém fiel e conforme a Constituição, no corpo da normativa legal, a ponto de não frustrar a vocação institucional do Ministério Público, essencial à função jurisdicional do Estado, feito guardião da ordem jurídica, do regime democrático, do sistema tributário nacional e dos interesses individuais homogêneos, coletivos e sociais, no espaço tributário. A hermenêutica gestada nas entranhas da legislação ordinária, sem força bastante para alcançar os comandos constitucionais em referência, afigura-se insuficiente à garantia plena dos direitos do contribuinte e da Justiça tributária, no Estado democrático de direito. [80]
Nesta toada, reconhecida a legitimidade do Ministério Público para a defesa mediata dos interesses individuais homogêneos em matéria tributária, e a discussão acerca de possível ofensa ao texto constitucional perpetrada pela dicção do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347/85, certo é que não necessariamente se estará a falar em defesa de determinado grupo de contribuintes e de seus respectivos direitos e interesses individuais disponíveis, posto ser inderrogável que o interesse público que alimenta a atuação do órgão ministerial, visando o interesse difuso da preservação e da "consolidação da liberdade negativa de quaisquer dos cidadãos da República, estejam eles agrupados em feixes identificáveis ou não, também poderá municiar ações ministeriais na busca de recursos legítimos que, por omissão de dados agentes públicos, não estejam aportando ao Erário, prejudicando o financiamento das políticas públicas que colorirão de eficácia os direitos prestacionais". [81]
4.2. A jurisprudência dos Tribunais Superiores
A acirrada discussão acerca da matéria não encontra unanimidade nos Tribunais pátrios. Como dito alhures, a menção genérica à vedação de questões que "envolvam tributos", levou o Recurso Extraordinário nº 576.155/DF, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, a ganhar status de repercussão geral. No aludido recurso excepcional, o ponto central de discussão reside na legitimidade do Ministério Público do Distrito Federal para a propositura de ação civil pública, objetivando a cassação de termo firmado entre o Governo do Distrito Federal e empresas beneficiárias de redução fiscal.
No recurso extraordinário, em trâmite, a discussão cinge-se a decidir se o Ministério Público detém legitimidade para propor ação civil pública visando anular Termo de Acordo de Regime Especial - TARE firmado entre o Distrito Federal e empresas beneficiárias de redução fiscal, ao argumento de que a Secretaria de Fazenda do Distrito Federal teria desrespeitado os ditames de um Decreto regulamentar, determinando percentuais de crédito fixos para diversos produtos, reduzindo assim a arrecadação de ICMS do ente federativo. Em suma, o Termo de Acordo teria causado prejuízo mensal ao ente variável entre 2,5% a 4%, nas saídas interestaduais, e de 1% a 4,5%, nas saídas internas.
A questão posta, quando analisada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, foi no sentido de inadmitir a possibilidade de veiculação de matéria atinente a tributos em sede de ação civil pública com base na determinação trazida pela Medida Provisória 2.180-35/01, o que se denota da análise da ementa infra:
EMENTA: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ANULAÇÃO DE TERMO DE ACORDO DE REGIME ESPECIAL - TARE FIRMADO PELO GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL E CONTRIBUINTE. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. RESTAURAÇÃO DA SENTENÇA.
(...)
O tema controverso é, particularmente, de natureza essencialmente tributária. A apuração de eventual irregularidade no acordo fiscal ajustado pelo Distrito Federal com a empresa contribuinte, seja no aspecto de autorização legal, seja no atinente aos benefícios ou prejuízos sociais produzidos, remete ao necessário exame da estrutura e da política tributária empreendida pela Fazenda Pública local, em face, inclusive, de outras unidades da Federação, por se tratar de ICMS.
3. É caso de conflito legal de natureza tributária, situação que, na espécie, torna manifesta a ilegitimidade ativa do Ministério Público para a causa, conforme estabelecido no art. 1º da Lei nº 7.347/85.
(REsp 701.913/DF, Rel. Min. José Delgado, DJU de 27.08.2007)
(grifamos)
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, verifica-se divergência de posicionamentos. O Relator do recurso, Ministro Ricardo Lewandowski, deu provimento ao recurso do parquet do Distrito Federal, entendendo que a questão posta, embora envolva tributos, remete à defesa do patrimônio público, havendo portanto a veiculação de interesses metaindividuais aptos a ensejar a proposição de ação civil pública pelo órgão ministerial, o que se infere do teor exposto no Informativo de jurisprudência nº 545, de 04 a 08 de maio de 2009, do Supremo Tribunal Federal, cujo teor se transcreve abaixo:
Preliminarmente, o Tribunal indeferiu o pedido de adiamento do julgamento. Quanto ao mérito, o Min. Ricardo Lewandowski, relator, deu provimento ao recurso. Entendeu que a ação civil pública ajuizada contra o citado TARE não estaria limitada à proteção de interesse individual, mas abrangeria interesses metaindividuais, pois o referido acordo, ao beneficiar uma empresa privada e garantir-lhe o regime especial de apuração do ICMS, poderia, em tese, implicar lesão ao patrimônio público, fato que, por si só, legitimaria a atuação do parquet, tendo em conta, sobretudo, as condições nas quais foi celebrado ou executado esse acordo (CF, art. 129, III). Reportou-se, em seguida, à orientação firmada pela Corte em diversos precedentes no sentido da legitimidade do Ministério Público para ajuizar ações civis públicas em defesa de interesses metaindividuais, do erário e do patrimônio público. Asseverou não ser possível aplicar, ao caso, o parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/85, que veda que o Ministério Público proponha ações civis públicas para veicular pretensões relativas a matérias tributárias individualizáveis, visto que a ação civil pública, na espécie, não teria sido ajuizada para proteger direito de determinado contribuinte, mas para defender o interesse mais amplo de todos os cidadãos do Distrito Federal, no que respeita à integridade do erário e à higidez do processo de arrecadação tributária, o qual apresenta natureza manifestamente metaindividual. No ponto, ressaltou que, ao veicular, em juízo, a ilegalidade do acordo que concede regime tributário especial à certa empresa, bem como a omissão do Subsecretário da Receita do DF no que respeita à apuração do imposto devido, a partir do exame da escrituração do contribuinte beneficiado, o parquet teria agido em defesa do patrimônio público.
RE 576155/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.5.2009. (RE-576155). [82]
Por seu turno, o saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes Direito entendeu que os beneficiários da medida são individualmente determinados, de forma que veicular pretensões envolvendo tributos esbarraria na proibição prevista no parágrafo único do art. 1º da lei de ação civil pública, no que foi acompanhado pelos Ministros Eros Grau e Cármen Lúcia. É o que se denota da reprodução infra:
Em divergência, o Min. Menezes Direito desproveu o recurso, no que foi acompanhado pelos Ministros Cármen Lúcia e Eros Grau. Inicialmente, rejeitou a preliminar argüida pela defesa da empresa recorrida no que concerne ao conhecimento do recurso extraordinário, por tratar-se de matéria eminentemente infraconstitucional, ou seja, em torno da legitimação ativa do Ministério Público em face do disposto na Lei 7.347/85. Frisou ter sido tal alegação superada quando do julgamento da questão de ordem em que se dera a repercussão geral, dado que se entendera que a matéria comportaria, por ser de direito, o exame do STF. No mérito, considerou incidir, na espécie, o aludido parágrafo único do art. 1º da Lei 7.347/85, haja vista ser a ação civil pública analisada uma dentre mais de 700 ações que combatem, especificamente, termos de ajustes no que tange ao regime tributário especial de apuração do ICMS, salientando que os beneficiários podem ser, inclusive, individualmente determinados. Salientou, ademais, que essa ação teria como fundamento a articulação de inconstitucionalidade de lei distrital no que diz respeito à instituição desse regime tributário especial de apuração de ICMS, e que a ação civil pública não poderia ter essa serventia. Por fim, afirmou ser necessário levar em conta que, como os beneficiários podem ser individualmente determinados, evidentemente de direito metaindividual não se cuidaria, porque o direito metaindividual, neste caso, estaria substituído pelo tópico específico em que as ações são postas e o ataque é feito. Por outro lado, aduziu que a instituição de regimes especiais tributários seria uma questão de política tributária, a qual estaria ao alcance dos Estados federados, seria editada por lei e, portanto, obedeceria ao sistema de oportunidade e conveniência, concluindo que, se porventura essa legislação que cria o regime especial tributário fosse inconstitucional, certamente caberia contra ela o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade. Após, pediu vista dos autos o Min. Joaquim Barbosa.
RE 576155/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 6.5.2009. (RE-576155) [83]
Percebe-se que neste caso em específico, a questão envolvendo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, embora afetasse de forma imediata uma pessoa jurídica de direito privado e um ente federativo, implica em prejuízo ao patrimônio público, evidenciando-se assim a necessidade de se examinar com mais profundidade o já aludido caráter sistêmico que envolve as searas financeira e tributária.
A despeito da questão posta no recurso extraordinário acima aduzido, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, mesmo considerando os arts. 127 e 129, inciso III, da Constituição Federal, já decidiu no sentido de inexistir legitimidade do parquet para propor ação civil pública objetivando a impugnação e a restituição de tributos. Isto com base no entendimento segundo o qual não há relação de consumo entre sujeito ativo e sujeito passivo tributário, a ensejar a defesa dos interesses individuais homogêneos envolvidos. Ademais, prevaleceu entendimento pelo qual tais interesses seriam disponíveis.
É o que se infere da análise das ementas infra reproduzidas:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA: MINISTÉRIO PÚBLICO: TRIBUTOS: LEGITIMIDADE. Lei 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25 . C.F., artigos 127 e 129, III.
I. - O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança de tributos ou para pleitear a sua restituição. É que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) relação de consumo, nem seria possível identificar o direito do contribuinte com "interesses sociais e individuais indisponíveis". (C.F., art. 127).
II. - Precedentes do STF: RE 195.056-PR, Ministro Carlos Velloso, Plenário, 09.12.99; RE 213.631-MG, Ministro Ilmar Galvão, Plenário, 09.12.99, RTJ 173/288.
III. - RE conhecido e provido. Agravo não provido.
(RE 248.191-SP. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Rel. Min. Carlos Velloso. 2º Turma. Unânime. Julgamento em 01.10.2002. DJ 25.10.2002)
EMENTA: Agravo regimental em Agravo de Instrumento. 2. Recurso Extraordinário. Ação Rescisória. 3. Ilegitimidade ativa de associação de defesa do consumidor para propor Ação Civil Pública na defesa de direitos individuais homogêneos. Matéria devidamente prequestionada. Questão relativa às condições da ação não pode ser conhecida de ofício. 4. Empréstimo compulsório sobre a aquisição de combustíveis. Qualificação dos substituídos como contribuintes. 5. Inexistência de relação de consumo entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte). 6. Precedentes do STF no sentido de que o Ministério Público não possui legitimidade para propor ação civil pública com o objetivo de impugnar a cobrança de tributos. 7. Da mesma forma, a associação de defesa do consumidor não tem legitimidade para propor ação civil pública na defesa de contribuintes. 8. Agravo regimental provido e, desde logo, provido o recurso extraordinário, para julgar procedente a ação rescisória
(AI 382.298-RS. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Rel. Min. Gilmar Mendes. 2ª Turma. Unânime. Julgamento em 04.05.2004. DJ 28.05.2004)
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, ao ser analisada questão envolvendo a atuação ministerial com o objetivo de resguardar interesses sociais amplos, em especial o erário, entendeu-se que o Ministério Público não tem legitimidade para postular a restituição de valores pagos indevidamente pela União, posto que tal atuação configuraria a representação judicial de entidades públicas, o que, no caso, incumbiria à Advocacia Geral da União.
Neste sentido é a ementa abaixo reproduzida:
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA –RESSARCIMENTO À UNIÃO DE VALORES INDEVIDAMENTE RECEBIDOS DO FUNDO DE INDENIZAÇÃO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO AVULSO (FITP) – REPETIÇÃO DO INDÉBITO – CONFLITO DE CARÁTER TRIBUTÁRIO – INTERESSE SECUNDÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO – ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
1. Se o provimento é completo, hígido e robustamente fundamentado, a oposição de embargos declaratórios revela tentativa vã de obter a revisão do julgado, em desrespeito aos limites estreitos traçados no permissivo legal.
2. O Ministério Público Federal não ostenta legitimidade ativa ad causam para ajuizar ação civil pública objetivando o ressarcimento, em favor da União, de valor indevidamente recebido por trabalhador portuário avulso, oriundo do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, porquanto a sua atuação, in casu, não denota defesa do erário, ao revés, revela repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública, em nome da União, que, inclusive, dispõe de Procuradoria para fazê-lo. Precedente da Primeira Turma no REsp 799.883/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 04/06/2007.
3. No caso em tela, conforme bem observou o Tribunal de Apelação, o órgão ministerial pretende substituir-se às prerrogativas da Advocacia da União na defesa de interesse eminentemente fazendário.
4. Recurso especial não provido.
(REsp 1.126.242-RS. Rel. Min. Eliana Calmon. 2ª Turma. Unânime. Julgamento em 05.11.2009. DJ 20.11.2009)
(grifamos)
Em um precedente mais remoto emanado da Corte Cidadã, em época em que inexistia o parágrafo único do art. 1º na Lei da Ação Civil Pública, entendia-se que a discussão acerca da exigibilidade de taxas de iluminação pública, dado o seu caráter metaindividual, tornava apta a utilização da ação civil pública pelo parquet. Confira-se a ementa:
Processual Civil. Ação Civil Pública para defesa de interesses e direitos individuais homogêneos. Taxa de iluminação pública. Possibilidade.
A Lei n. 7.345, de 1985, é de natureza essencialmente processual, limitando-se a disciplinar o procedimento da ação coletiva e não se entremostra incompatível com qualquer norma inserida no titulo III do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).
É princípio de hermenêutica que, quando uma lei faz remissão a dispositivos de outra lei de mesma hierarquia, estes se incluem na compreensão daquela, passando a constituir parte integrante do seu contexto. O artigo 21 da Lei n. 7.345, de 1985 (inserido pelo artigo 117 da Lei n. 8.078/90) estendeu, de forma expressa, o alcance da ação civil pública a defesa dos interesses e "direitos individuais homogêneos", legitimando o Ministério Público, extraordinariamente e como substituto processual, para exercitá-la (artigo 81, parágrafo único, III, da Lei 8.078/90).
Os interesses individuais, "in casu", (suspensão do indevido pagamento de taxa de iluminação pública), embora pertinentes a pessoas naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcendem a esfera de interesses puramente individuais e passam a constituir interesses da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento processual único e de eficácia imediata - "a ação coletiva". O incabimento da ação direta de declaração de inconstitucionalidade, eis que, as Leis Municipais nos. 25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado, justifica, também, o uso da ação civil pública, para evitar as inumeráveis demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre idênticas questões jurídicas.
Recurso conhecido e provido para afastar a inadequação, no caso, da ação civil pública e determinar a baixa dos autos ao tribunal de origem para o julgamento do mérito da causa. Decisão unânime.
(RESP 0049272/94-RS, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, unânime, 1ª Turma., DJ de 17.10.1994, p. 27868)
(grifamos)
Em obediência ao disposto no novel parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347/85, decidiu-se no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que a concessão de benefício fiscal atinente ao ICMS atingiria interesses individuais plenamente identificados, a ensejar a ilegitimidade do parquet por força do aludido dispositivo legal.
EMENTA: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. ICMS. PORTARIA DA SECRETARIA DE FAZENDA E PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. CONCESSÃO DE BENEFÍCIO FISCAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE.
1. O art. 1º, parágrafo único, da Lei 7.347/85 não autoriza o Ministério Público a utilizar a ação civil pública com o objetivo de deduzir pretensão alusiva à matéria tributária quando os interesses individuais forem plenamente identificados. Precedentes da Primeira Seção e da Segunda Turma.
2. Recurso especial não provido.
(REsp 878.312/DF, Rel. Min. Castro Meira, DJU de 21.05.2008).
(grifamos)
Para alcançar o teor da ementa acima, onde se vislumbra o entendimento segundo o qual a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública versando sobre questão envolvendo tributos se limitaria àquelas em que presentes interesses difusos, o relator do recurso especial, Ministro Castro Meira, vencido, exarou fundamentação que, qualquer ação
A Segunda Turma desta Corte vinha decidindo que o artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.437/85 não veda o manejo de ação civil pública sobre questão de natureza tributária. Apenas não autoriza que o Ministério Público, no exercício de suas funções institucionais, defenda, por vias transversas, interesses individuais disponíveis de um grupo de contribuintes, prejudicados pela alegada inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma tributária impositiva.
Entendia-se, pois, não apenas pela legitimidade do Ministério Público, como pela adequação da ação civil pública ao fim colimado pelo autor. Contudo, em 26.09.06, a Segunda Turma deste Tribunal modificou o entendimento, ocasião em que fiquei vencido. Esse órgão colegiado passou a considerar que o artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85 proíbe que o Ministério Público utilize a ação civil pública com o objetivo de deduzir pretensão alusiva à matéria tributária quando os interesses individuais forem plenamente identificados.
(grifamos)
No que tange à ampla irradiação de efeitos na sociedade, dado o contexto em que inserido o sistema tributário, ainda que assim se tenha aduzido, a Corte Cidadã deixou de reconhecer a legitimidade ministerial, destacando ainda que este fora exatamente a mens leges nos bastidores da confecção da norma, o que se infere da transcrição infra:
(Art. 1º § único da Lei 7.347⁄85, com a redação dada pela Medida Provisória 2.180⁄2001)A premissa do pedido do Ministério Público de que a estratégia fiscal, por via oblíqua, atinge os demais contribuintes, revelando interesses transindividuais violados, é exatamente a que inspirou o legislador a vetar a legitimatio do Parquet com alteração do parágrafo único do art. 1º da Lei da Ação Civil Pública, que o deslegitima a veicular pretensões que envolvam tributos.
(REsp 691.574⁄DF, Min. Luiz Fux, DJU de 17.09.2006)
(grifamos)
Nesse diapasão, nota-se com clareza que a fonte das controvérsias acerca da matéria, não apenas no âmbito doutrinário mas também jurisprudencial, tende a residir na amplitude dos efeitos que são irradiados por medidas tomadas na área tributária, que muitas das vezes transbordam a esfera de interesse do contribuinte e do ente arrecadador, para atingir a coletividade de forma indistinta.
Ao passo que a Constituição Federal confere um amplo plexo de atuação ao Ministério Público, persistem altercações conceituais envolvendo a alteração legislativa (art. 1º, parágrafo único, da LACP) e a controvérsia dos direitos coletivos individualizáveis e disponíveis.