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Inelegibilidade: análise do caso Ciro Gomes

23/09/2010 às 09:31
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Introdução

No início do presente ano, circulou em alguns meios de comunicação, notadamente a internet2, que um dos motivos da mudança de domicilio eleitoral do deputado federal Ciro Gomes do Estado do Ceará para o Estado de São Paulo foi a inelegibilidade que o deputado teria se quisesse se candidatar ao cargo de Presidente da República, aja vista que seu irmão, Cid Gomes, é o atual Governador do Estado do Ceará.

Os que sustentam tal inelegibilidade dizem que o fazem conforme o §7º do art. 14 da Constituição Federal.

Trata-se de assunto que não foi amplamente discutido nos meios jurídicos, mas que algumas vozes reverberaram como sendo uma verdadeira interpretação de norma constitucional.

Concessa venia, não é esse o sentido da norma em questão, conforme análise a seguir.


Sobre as inelegibilidades

Inicialmente consta observar que os direitos políticos são considerados como direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, os quais permitem ao indivíduo, através de direitos públicos subjetivos, exercer sua cidadania, participando de forma ativa dos negócios políticos do Estado.

No escólio de José Afonso da Silva, são "direitos fundamentais do homem-cidadão, (...), chamados também direitos democráticos ou direitos de participação política"3.

Os direitos políticos podem ser divididos em duas classes distintas: direitos políticos positivos e negativos. Os direitos de natureza positiva são assim denominados posto que "consistem no conjunto de normas que asseguram o direito subjetivo de participação no processo político(...)"4, assim, a capacidade eleitoral ativa (direito de voto) e passiva (de ser votado).

Quanto aos direitos políticos negativos, José Afonso define como "àquelas determinações constitucionais que, de uma forma ou de outra, importem em privar o cidadão do direito de participação no processo político e nos órgãos governamentais"5.

Aqui é o campo que encontram-se as inelegibilidades.

São portanto, regras que negam ao cidadão o direito constitucionalmente garantido de participar da vida política de sua nação.

Tais normas fazem parte do arcabouço jurídico de todos os Estados democráticos, já que tais são erigidos sobre a alternância do poder, diferenciando-se dos Estados absolutistas, onde o poder ficava emainado em um número restrito de pessoas, que se utilizam de quaisquer meios para continuar no poder.

Ao tratar do objeto das inelegibilidades diz José Afonso que,

As inelegibilidades possuem, assim, um fundamento ético evidente, tornando-se ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político ou para assegurarem o domínio do poder por um grupo que o venha detendo, como ocorreu no sistema constitucional revogado. Demais, seu sentido ético correlaciona-se com a democracia, nao podendo ser entendido como um moralismo desgarrado da base democrática do regime que se instaure.6

Dessa forma, afim de proteger essa descontinuidade no poder e, nos próprios termos da Lei Maior, da probidade administrativa, da moralidade para o exercício do mandato, da normalidade e legitimidade das eleições, a Constituição Federal traz em seu art. 14 os príncipios basilares das inelegibilidades, notadamente em seus parágrafos 5º ao 9º.

Entretanto, conforme o caso fático acima introduzido, trataremos da norma esculpida no parágrafo 7º do art. 14, já que é este que cuida das causas de inelegibilidades motivadas pelo parentesco.


Inelegibidades pelo parentesco

Assim é o teor do §7º do art. 14 da Constituição Federal:

"São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição."

Numa leitura inicial, prevê o §7º do art. 14 da Constituição Federal limitações aplicáveis aos ligados às Chefias do Poder Executivo ou a quem ocupou o cargo nos últimos seis meses de mandato, visando preservar a lisura da eleição, para que a máquina não seja utilizada em favor do próximo ao Poder .

Neste sentido, diz serem inelegíveis, no território do titular, o cônjuge e os parentes, consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção.

Portanto, o "artigo 14, § 7º, da Constituição do Brasil, deve ser interpretado de maneira a dar eficácia e efetividade aos postulados republicanos e democráticos da Constituição, evitando-se a perpetuidade ou alongada presença de familiares no poder."7


Leitura do caso do caso concreto

Dizem os defensores da tese de inelegibilidade que, se o Deputado Ciro Gomes continuasse com o domicílio eleitoral no Estado do Ceará, não poderia ser candidato à Presidência da República já que seu irmão era (e ainda é) o Governador do Estado.

Referindo-se à inelegibilidade constitucional do art. 14, § 7º, da Lei Magna de 1988, anota Manoel Gonçalves Ferreira Filho:  

"Essa inelegibilidade já vem do direito anterior. É necessária para impedir o nepotismo, ou a perpetuação no poder através de interposta pessoa. A solução, aqui, é de bom senso. A inelegibilidade é ‘no território de jurisdição do titular’. Note-se que, em face desse dispositivo, o cônjuge, o parente consangüíneo ou afim do Presidente da República são absolutamente inelegíveis"8

Data venia, consta observar que o termo utilizado pelo legislador é equivocado, posto que o termo "jurisdição" deriva do latim jus (direito) dictionis (ação de dizer), ou seja, dizer o direito, portanto, termo afeto ao Judiciário; quando trata-se de vínculo político-eleitoral, o termo correto é circunscrição.

Assim, quando a Constituição diz que, "são inelegíveis, no território de jurisdição do titular," refere-se ao local onde o titular do mandato eletivo tem efetivo exercício.

Da mesma forma é o entendimento do doutrinador Celso Ribeiro Bastos, para quem,

"território de jurisdição deve entender-se o espaço dentro do qual o parente exerce suas funções. No caso do prefeito, por exemplo, a sua esposa, ou os seus descendentes ou ascendentes são inelegíveis para os cargos municipais. Mas já serão plenamente elegíveis para os cargos estaduais e federais."9

Não obstante o entendimento de tão eminentes doutrinadores, o TSE, na Resolução nº 15.284, de 30.5.1989, entendeu que "o objetivo da norma (art. 14, § 7º, da Constituição de 1988) é evitar que o parente se beneficie da influência do titular de mandato eletivo para a obtenção de vantagens eleitorais",no território de sua jurisdição. Reiterou-se, de outra parte, na Resolução nº 15.284 referida, o que já se continha nas Resoluções nºs 13.779 e 14.493, do TSE: "A jurisdição do Governador abrange todo o Estado". E só.

Portanto, deve-se entender que o parente de Governador é inelegivel para os cargos referentes àquele Estado, ou seja, cuja representação se encontre no próprio Estado, salvo, se candidato à reeleição de cargo conquistado anteriormente à eleição do titular.

Também é nesse sentido o entendimento de Alexandre de Moraes, para quem,

"(...)a expressão constitucional no território da jurisdição significa que o cônjuge, parentes e afins até segundo grau do prefeito municipal não poderão candidatar-se a vereador e/ou prefeito do mesmo município; o mesmo ocorrendo no caso do cônjuge, parentes ou afins até segundo grau do Governador; que não poderão candidatar-se a qualquer cargo no Estado (vereador ou prefeito de qualquer município do respectivo Estado; deputado estadual e Governador do mesmo Estado; e ainda, deputado federal e senador nas vagas do próprio Estado, (...); por sua vez, o cônjuge, parentes e afins até segundo grau do Presidente, não poderão candidatar-se a qualquer cargo no país. Aplicando-se as mesmas regras àqueles que os tenham substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito."10

Se considerarmos as razões dos defensores da inelegibilidade, analogicamente, é o mesmo que considerar que o esposo de uma prefeita de capital não poderia ser candidato ao governo do Estado se tivesse o domícilio eleitoral na capital onde sua esposa era prefeita, ou mesmo que, um cidadão não poderia ser candidato à Presidência da República se seu filho fosse prefeito da cidade onde tem o domícilio eleitoral.

Entretanto, em 1999 Esperidião Amin se tornou Governador do Estado de Santa Catarina enquanto sua esposa, Ângela Amin, era então prefeita da capital Florianopólis, eleita em 1997.

Para firmar o entendimento, pode-se dizer que o contrário não poderia ocorrer, já que, se Esperidião Amin já fosse Governador em 1997 (ou seja, eleito em 1994), sua esposa não poderia ser prefeita de nenhum munícipio do Estado, já que a "jurisdição do titular" (representação) é exercida em todo o Estado.

Dessa forma, didaticamente falando, a candidatura a um cargo de maior representação influencia a inelegibilidade de seus parentes aos cargos de menor representação, não o contrário.


Outras análises possíveis

Outrossim, diz a Constituição que é condição de elegibilidade o domícilio eleitoral na circunscrição (Art. 14, §3º, IV), o que numa leitura conjunta com o inciso V do art. 11 da lei 9.504/97 (Lei das eleições), corrobora no entendimento de que no caso de seu parente ser Governador do Estado, em nada atrapalha a candidatura à Presidência da República. Vejamos:

(Constituição Federal) Art. 14. (...)

§3º. São condições de elegibilidade, na forma da lei:

(...)

IV – o domícilio eleitoral na circunscrição.

(Lei das eleições) Art. 11. (...)

§1º. O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos:

(...)

V- cópia do título eleitoral ou certidão, fornecida pelo cartório eleitoral, de que o candidato é eleitor na circunscrição ou requereu sua inscrição ou transferência de domícilio no prazo previsto no artigo 9º.

Podemos entender, portanto, que a Constituição lastreou a legislação infraconstitucional ao definir como condição de elegibilidade o domícilio eleitoral na circunscrição (local) onde poderá ser eleito; ou seja, quando a lei requer a "cópia de título eleitoral ou certidão (...) de que o candidato é eleitor na circunscrição", afirma que o candidato deve demonstrar ter o domicílio eleitoral no local onde quer se eleger, já que não é possível ter o domicílio eleitoral em uma circunscrição e votar (ou ser votado) em outro, diferenciando-se do domicílio civil, onde pode haver mais de um.

O conceito de domicílio eleitoral não se confunde, necessariamente, com o de domicílio civil; aquele, mais flexível e elástico, identifica-se com a residência e o lugar onde o interessado tem vínculos (políticos, sociais, patrimoniais, negócios).11

Assim, quando o art. 86 do Código Eleitoral diz que: "nas eleições presidenciais, a circunscrição será o País; nas eleições federais e estaduais, o Estado; e, nas municipais, o respectivo Município.", afirma que serão candidatos aos cargos eletivos aqueles que, dentre outras condições, seja domiciliado eleitoralmente em alguma dessas circunscrições.

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Dessa forma, o candidato a prefeito deve ter o domícilio eleitoral no município em que concorra à eleição; o candidato a Governador, no Estado em que concorra à eleição; e o candidato à Presidente, seja domiciliado no País, não importando onde.

Não obstante os elementos acima, um outro ponto ainda é possível para demonstrar a equivocada interpretação da norma constitucional referente à inelegibilidade pelo parentesco.

Na verdade, inelegibilidades são restrições a direitos políticos no que diz respeito à capacidade eleitoral passiva. E, assim, segundo José Afonso da Silva, as normas relativas a inelegibilidades - por constituirem restrições a direitos políticos - devem ser interpretadas restritivamente.

"O princípio que prevalece é o da plenitude do gozo dos direitos políticos positivos, de votar e ser votado. A pertinência desses direitos ao indivíduo, como vimos, é que o erige em cidadão. Sua privação ou a restrição do seu exercício configura exceção àquele princípio. Por conseguinte, a interpretação das normas constitucionais ou complementares relativas aos direitos políticos deve tender à maior compreensão do princípio, deve dirigir-se ao favorecimento do direito de votar e de ser votado, enquanto as regras de privação e restrição hão de entender-se nos limites mais estreitos de sua expressão verbal, segundo as boas regras de hermenêutica"12

Se é assim, não deve o intérprete ampliar as condições estabelecidas pelo Poder Constituinte originário para afastar a inelegibilidade, restringindo "além dos limites mais estreitos de sua expressão verbal" os direitos políticos dos cidadãos.

Parece-nos, pois, que a hermenêutica constitucional compatível com a teoria das inelegibilidades, é a que não permite interpretação extensiva - mas adota interpretação restritiva - de inelegibilidades, não especificando condições que o Constituinte não estabeleceu.

Portanto, obviamente que a norma constitucional deve ser interpretada relativamente a cada um dos titulares da "jurisdição", por exemplo, o cargo de Presidente da República, cujo território de jurisdição, para efeito da hipótese de inelegibilidade sob exame, é todo o território nacional, torna irrelevante o argumento sobre supostas restrições ligadas a circunscrições estaduais ou municipais, ou seja, não deve-se restringir seu direito de ser eleito Presidente por fato de que parente seja Governador ou Prefeito já em exercício, posto que assim não o fez o constituinte originário.


Conclusão

Conclui-se, portanto, que, seja o domicílio eleitoral do deputado Ciro Gomes no Ceará seja em São Paulo ele poderia ser candidato à Presidência da República, sem necessidade de se atentar ao fato de que seu irmão é Governador de Estado, posto que, conforme o visto, a Constituição restringiu a inelegibilidade aos casos em que os parentes estejam concorrendo à cargos sob a circunscrição eleitoral (ou jurisdição) deste, o que não é o caso em estudo, já que a circunscrição eleitoral do Governador é atinente apenas aos cargos de representatividade estadual e a circunscrição do Presidente da República é em todo o País; ademais, a melhor exêgese constitucional não permite ampliar ou mesmo criar restrição que a Constituição não dispõe, sob pena de invalidar um direito fundamental que é o direito à cidadania (eleger e ser eleito).


Notas

2. Por exemplo, o site: http://www.primeirahora.com.br/noticia.php?intNotID=19447;

3. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª Edição revista e atualizada, Malheiros Editores, São Paulo, 2007, pág. 187. Grifo original.

4. Idem, pág. 348.

5. Idem, pág. 381. Grifo original.

6. Idem, pág. 388.

7. RE 543.117-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 24-6-08, 2ª Turma, DJE de 22-8-08

8. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Ed. Saraiva, 1990, pág. 130. Grifo nosso.

9. BASTOS, Celso Ribeiro de. Comentários à Constituição do Brasil.

10. MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 2003. Pág. 251.

11. Ac.-TSE nº 16.397/2000 e 18.124/2000:

12. SILVA. Ibidem. Pág. 382. Grifo nosso.

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Sobre o autor
Rafael Machado de Souza

Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Goiás, Câmpus Cidade de Goiás.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Rafael Machado. Inelegibilidade: análise do caso Ciro Gomes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2640, 23 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17454. Acesso em: 17 nov. 2024.

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