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Rescisão de sentença que viola literal disposição de lei constitucional: cabimento e competência

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3. RESCINDIBILIDADE DE SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS

3.1. Cabimento de ação rescisória com fundamento no inciso V para fazer prevalecer interprepação da Suprema Corte a respeito de normas constitucionais

O enunciado 343 da súmula do STF não deve ser aplicado quando a norma violada tiver caráter constitucional, mas apenas quando a violação for à lei infraconstitucional. A ofensa a um dispositivo constitucional, base do sistema normativo, é extremamente mais grave do que a violação de norma infraconstitucional.

Demais disso, uma vez que cumpre ao STF preservar a força normativa da Constituição, sua interpretação deve ser obrigatoriamente acompanhada pelos demais tribunais. Assim, existindo precedente dessa Corte sobre determinada matéria, ainda que posterior ao trânsito em julgado da sentença, tenha ele origem em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, a ação rescisória pode ser manejada com o intuito de preservar o Princípio da isonomia e da máxima efetividade das normas constitucionais.

O Superior Tribunal de Justiça alterou seu posicionamento quanto à aplicação da súmula 343 do STF em matéria constitucional. Inicialmente, a citada corte foi pela aplicação do verbete sumular. Posteriormente a jurisprudência do STJ passou a negar aplicação da súmula 343 em matéria constitucional:

1. O prevalecimento de obrigação tributária cuja fonte legal foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal constitui injúria à lógica jurídica, ofendendo os princípios da legalidade e igualdade tributárias. 2. A Súmula n" 343/STF 'nada mais é do que a repercussão, na esfera da ação rescisória, da Súmula n" 400 - que não se aplica a texto constitucional no âmbito do recurso extraordinário' (RTJ 101/214). 'Se a lei é conforme a Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória, ainda que na época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão aplica a lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declare inconstitucional' (REsp 128.239/RJ - Rel. Min. Ari Pargendler). 3. Multiplicidade de precedentes. 4. Recurso não provido" (STJ, 1999, REsp 155.751) (grifo nosso).

A não aplicação da súmula 343 destaca-se por duas razões. Uma, a preservação da Constituição, lei fundamental de todo o sistema normativo jurídico, e, duas, a posição do STF como o órgão a quem foi outorgada a função precípua de velar pela máxima efetividade das normas constitucionais e enunciá-las em última instância.

Não se pode negar o cabimento da ação rescisória para o fim de rescindir coisa julgada incompatível com decisão da Corte Suprema. Quando o STF fixa uma interpretação constitucional, está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição.

A ação rescisória é, sem dúvida, instrumento de realização do Princípio da Isonomia. A Constituição Federal não pode atingir a vida dos jurisdicionados de maneira desigual. Se existe um único tribunal competente para dizer, em definitivo, a interpretação de uma norma constitucional, não é razoável que os tribunais inferiores apliquem diferentemente do Supremo Tribunal Federal determinado dispositivo da Constituição.

O Ministro Gilmar Mendes assinalou em brilhante voto que,

Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade maior, pois representa uma violação a um referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema. Isso não é, certamente, algo equiparável a uma aplicação divergente da legislação infraconstitucional. Certamente já não é fácil explicar a um cidadão porque ele teve um tratamento judicial desfavorável enquanto seu colega de trabalho alcançou uma decisão favorável, considerado o mesmo quadro normativo infraconstitucional. (STF, 2002, p.42)

Em síntese, a pretexto de garantir a segurança das relações jurídicas admitiram-se restrições à rescisória plasmadas na Súmula 343 do STF. Em amparo à força normativa da constituição, todavia, essa perspectiva não é mais admissível quando se trata de controvérsia constitucional, estando fora de dúvida o cabimento de ação rescisória em tais casos. O referencial normativo neste caso é a Lei Maior do país, é a Constituição, o pressuposto que dá sustentação a qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial, não se tolerando restrições a essa autoridade.

Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal decidiu que a Súmula 343 somente se aplica à interpretação controvertida da lei infraconstitucional. A interpretação constitucional, pela sua supremacia jurídica, não pode se sujeitar a mitigações indevidas.

Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei, a eficácia da decisão do STF volta-se ao passado para fazer prevalecer seu entendimento em relação aos litígios solucionados pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

Em regra, anos após as questões terem sido decididas pelos tribunais ordinários é que o Supremo Tribunal Federal vem a apreciá-las, fato que não pode prejudicar o jurisdicionado. Não há uma imediata nulidade das sentenças inconstitucionais, mas está a parte prejudicada autorizada a ajuizar uma ação rescisória, desde que ainda exista prazo para tanto, visando rescindir o julgado que afronta a CRFB.

Negar essa possibilidade, prestigiando soluções contraditórias sobre o mesmo tema, implica em desconsiderar o próprio conteúdo da decisão do STF, último intérprete do texto constitucional, fragilizando a força normativa da Constituição. Decisão paradigmática proferida pelo Supremo dá sustentação à tese ora defendida:

EMENTA: embargos de declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória. (STF, 2008, p. 748)

Em julgamento de Embargos Declaratórios no Recurso Extraordinário nº 328812 (ementa transcrita acima), o Ministro Gilmar Mendes defendeu que

A interpretação restritiva, considerado esse modelo em que as questões constitucionais chegam ao Supremo tardiamente, cria uma inversão no exercício da interpretação constitucional. A interpretação dos demais tribunais e dos juízes de primeira instância acaba por assumir um significado muito mais relevante que o pronunciamento desta Corte. Não posso aceitar isso. Isto não é, por evidente, uma rejeição ao modelo difuso. O que quero enfatizar é que estamos aqui diante de uma distorção do modelo que merece ser corrigida. A rescisória, tal como se coloca no presente caso, serve justamente para permitir essa correção. A exegese restritiva, que na verdade assume um caráter excessivamente defensivo, acaba por privilegiar a interpretação controvertida, para a mantença de julgado desenvolvido contra a orientação desta Corte, significa afrontar a efetividade da Constituição. Isso não me parece aceitável, com a devida vênia.

Defende-se que a única orientação compatível com o postulado da força normativa concretizadora da Constituição e com o Princípio da Isonomia é a que admite a ação rescisória, independentemente da existência de controvérsia sobre a matéria nos tribunais, para rescindir sentenças contrárias a precedentes do STF, sejam eles anteriores ou posteriores ao julgado rescindendo, tenham origem em controle concentrado de constitucionalidade ou difuso.

A coisa julgada não é um valor absoluto. Trata-se, na verdade, de um princípio, e como tal sujeito à relativização, de modo a possibilitar sua convivência harmônica com os demais princípios de igual hierarquia existentes no sistema.

Aplicando-se a regra da ponderação de interesses, o Princípio da Isonomia, in casu, não pode sucumbir em preservação da coisa julgada. Esta, quando em conflito com jurisprudência do STF, apresenta-se frágil, sem fundamento jurídico capaz de mantê-la imutável e indiscutível.

Então, se já existe decisão da Corte Suprema, a eventual dissidência dos tribunais ordinários se mostra irrelevante, pois que cabe ao STF zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, devendo seu posicionamento prevalecer.

O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki, com a clareza que lhe é peculiar ensina:

O que se que afirma, por isso mesmo, é que, em se tratando de ação rescisória em matéria constitucional, concorre decisivamente, para um tratamento diferenciado do que seja "violação literal" a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele, associado ao princípio da supremacia, que é justificativa, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 (negativo porque indica que, sendo controvertida a matéria nos tribunais, não há violação literal a preceito normativo a ensejar rescisão), por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do Supremo. (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174). (g.n.).

Mister ressaltar que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória permanece sendo de 02 (dois) anos, a contar do transito em julgado da demanda. A interpretação contrária proferida pelo Supremo não faz renascer o prazo, que é decadencial.

Também se faz oportuno esclarecer que a decisão do STF não precisa ser proferida no controle concentrado de constitucionalidade, mormente em tempos de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.

Conclui-se, portanto, que, quando há decisão do STF definindo o alcance do dispositivo constitucional, inexiste interpretação divergente, ainda que a decisão seja proferida no controle casuístico ou que seja posterior ao trânsito em julgado da lide.

3.2. Na ausência de precedente do Supremo Tribunal Federal, o acórdão que julgar a ação rescisória é passível de Recurso Extraordinário

A problemática real surge quando não existe manifestação do Supremo sobre a questão.

Se for proposta ação rescisória em matéria constitucional controvertida sem que o STF tenha se posicionado, pode-se levar a uma esquizofrenia do sistema. Isto porque, qualquer juízo poderia dizer sobre a interpretação da norma constitucional, e, ante a falta de precedente da Corte Suprema, a matéria seria considerada controvertida. Numa análise assistemática, poderia se aplicar a súmula 343, e o resultado seria uma usurpação pelos demais órgãos do Judiciário do papel do Supremo Tribunal Federal de guardião da Constituição.

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Um outro raciocínio seria o de que, proposta rescisória em matéria constitucional na qual o STF não tenha se manifestado, pelo só fato de ser discutida matéria constitucional a súmula 343 seria mitigada e se permitiria a ação rescisória. Todavia, proposta a ação nessas circunstâncias, a decisão final do tribunal só poderia ser questionada via recurso especial, para o STJ, a fim de se questionar matéria infraconstitucional, qual seja, os pressupostos da rescisória.

O raciocínio levado a efeito acima tem como base a jurisprudência assente no Pretório Excelso de que o recurso extraordinário, interposto em ação rescisória, deve dirigir-se aos pressupostos desta e não aos fundamentos da sentença rescindenda.

No sentido da orientação acima citada, o ilustre professor José Carlos Barbosa Moreira:

Se a norma constitucional foi ou não violada, decide-o soberanamente o órgão julgador da rescisória, em apreciação insuscetível de controle pelo Supremo Tribunal Federal. Os pressupostos do recurso especial e os do extraordinário, como os dos embargos infringentes, devem compor-se em relação ao acórdão proferido na rescisória, não em relação à sentença rescindenda, pois é aquele, e não esta, que se estará impugnando. Suponhamos, v.g., que o pedido de rescisão se haja fundado na suposta violação de certa norma constitucional (art. 485, n° V), mas que o tribunal, no iudicium rescindem, não reconhecendo na decisão rescindenda o vício alegado, julgue improcedente o pedido. Ainda que lá, na verdade, houvesse ocorrido a ofensa à Constituição, o Autor da rescisória em vão recorrerá extraordinariamente com base no art. 102, n° III, letra a, da Carta da República: o erro do Tribunal na solução da questão não torna o seu acórdão ofensivo à norma constitucional. Haveria violação não do texto da Lei Maior, mas do próprio art. 485, n° V, se o tribunal, reconhecendo embora o vício de sentença anterior, contudo rejeitasse o pedido de rescisão: aí, satisfeitos os demais pressupostos, o acórdão seria impugnável por meio de recurso especial, com fundamento no art. 105, n° m, letra a. (MOREIRA, 1998, p. 213-214).

A persistir tal linha de idéias, o STJ, a pretexto de identificar os pressupostos para a ação rescisória do art. 485, inciso V, CPC, decidiria se houve ou não a violação a literal disposição constitucional.

Em suma, afirmada a tese de que o recurso deve dirigir seu foco aos pressupostos da ação e jamais aos fundamentos adotados no julgado rescindendo, a conseqüência necessária é a de que, havendo ação rescisória, será do Superior Tribunal de Justiça, e não do Supremo Tribunal Federal, a palavra definitiva sobre a existência ou não de violação da Constituição (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174).

A conclusão a que se chega acima é hoje inadmissível, seja porque a Constituição Federal atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Carta, seja porque o sistema normativo não comporta tais situações irrazoáveis, sob pena de quebra da ordem interna e fragilização de suas bases.

Neste ponto, concorda-se mais uma vez com o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki, quando este afirma que deve se admitir recurso extraordinário sobre a matéria constitucional tratada no julgado rescindendo.

Sob essa perspectiva, é possível afirmar que, ainda que o STF não tenha se manifestado sobre determinada matéria constitucional, seria possível ação rescisória, com mitigação da súmula 343, STF. No entanto, o acórdão que lhe julgar o mérito, afirmando a existência ou não de violação à Constituição, estará sujeito a controle pela Suprema Corte, mediante recurso extraordinário.

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Sobre a autora
Mariana Wolfenson Coutinho Brandão

Procuradora Federal e pós-graduada em Direito Civil, Empresarial e Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Mariana Wolfenson Coutinho. Rescisão de sentença que viola literal disposição de lei constitucional: cabimento e competência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2646, 29 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17514. Acesso em: 19 abr. 2024.

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