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O divórcio potestativo: a velha família e o novo Direito

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7. Separação judicial como garantia constitucional decorrente ou implícita.

Parcela importante e respeitável da doutrina chegou a sustentar, com algum fundamento, que o instituto da separação judicial não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, vez que o novel texto, ao instituir o divórcio potestativo, absolutamente independente de qualquer termo ou condição, extinguiu a separação judicial como requisito prévio para o divórcio conversão. E, de fato, não há mais falar em separação como requisito ou pré-condição ao divórcio.

Para amparar esta corrente de pensamento, milita o fato de que o divórcio potestativo é muito mais amplo e eficaz que a antiga separação judicial, prejudicando um tanto a utilidade prática dessa última. Também, ao que consta, a idéia animou o projeto de emenda era justamente extinguir a separação judicial, deixando restar apenas o divórcio no ordenamento jurídico.

Ocorre que a separação judicial sempre teve outra função, além de mera estação de parada e descanso, à caminho divórcio.

Aqueles cujas convicções religiosas não admitiam o rompimento do casamento e aqueles que, por afeição remanescente, respeito aos costumes ou qualquer outro motivo, desejavam preservar o casamento formal sempre preferiram intentar a separação judicial, ao invés do divórcio. E tal manejo ainda é plenamente possível.

Com efeito, o instituto não é, de forma alguma, desarmônico com a nova ordem constitucional. Não houve revogação expressa, nem tácita, vez que a separação não é, nem nunca foi, incompatível com o divórcio.

Pelo contrário, enquanto o divórcio potestativo é a explicitação singela do comando fundamental pelo qual "ninguém pode ser compelido a permanecer associado" (art. 5º, XX, da CF), a separação judicial assumiu duplo papel. Além de garantir o citado direito de desassociação, passou a ter a função de especialização da liberdade de crença e de exercício de culto e respectivas liturgias (art. 5º, VI, da CF).

Para aquele que não pode se divorciar por razões religiosas, a Constituição Federal também deve acolher remédio apto a garantir a desassociação. É justamente aqui que entra a separação judicial, que sobrevive escorada na interpretação lógica do liame jurídico remanescente à modificação constitucional.

Vê-se que, muito mais que simplesmente recepcionada pela Constituição Federal, a separação judicial adentrou a própria Carta Magna como garantia fundamental ao exercício dos dois mandamentos básicos citados. Trata-se de garantia fundamental chamada decorrente ou implícita, prevista no § 2º do art. 5º da CF, porquanto deflui dos princípios e do regime de liberdades constitucionais.

Como se vê, sua força subjacente, oriunda do contexto da mudança constitucional, elevou o instituto da separação judicial a outro patamar jurídico mais elevado, embora, ao que parece, não tenha sido esta a idéia inicial do projetista da emenda.

Mantém-se, portanto, íntegra a redação do art.1.571, III, c/c § 1º, do Código Civil, que prevê a separação judicial como forma de encerramento da sociedade conjugal, mas não do casamento.

Não foram recepcionadas todas as limitações, formas e penalidades atinentes à separação (arts. 1.572, 1573,1574, 1.575, p. único do art. 1576 e 1578), em função da interpretação lógica em relação ao novo divórcio potestativo; quem pode o mais, pode o menos, pelos mesmos meios. Assim não teria sentido condicionar ou onerar a separação, quando o divórcio é puramente potestativo.

Ou seja, (1) a separação passou também a ser declaração unilateral de vontade e perdeu o caráter técnico processual de ação, tal e qual ocorreu com o divórcio; (2) a separação continua a por termo apenas aos deveres do casamento, fidelidade recíproca e regime de bens (art. 1.576, caput, do CC), sendo (3) lícito aos cônjuges restabelecer a mesma sociedade conjugal a qualquer tempo, mediante ato judicial (art. 1.577, do mesmo diploma).

À evidência, o remédio jurídico deve ser facultado a todos, como opção menos radical ao divórcio, independentemente de apresentação dos motivos da preferência (orientação religiosa, afeição remanescente, razões familiares, etc).


8. Os processos em andamento e a cumulação de pedidos

Tendo em vista a dimensão da alteração constitucional e a criação de tercius genius, absolutamente novo nos efeitos e na natureza jurídica e, ainda, considerando que o tema é constitucional e se prende à dignidade da pessoa humana, com aplicação imediata, é salutar que os autores de processos de divórcio e separação sejam intimados para que adaptem o pedido à nova regência, explicitando formalmente sua vontade. O mesmo se diga das iniciais futuras propostas com base nos procedimentos superados.

Definida a vontade, o divórcio ou a separação devem ser reconhecidos de plano, com a intimação ou notificação da "parte" contrária, prosseguindo-se o feito apenas em relação às eventuais questões cumuladas.

Tudo recomenda que os temas propriamente familiares sejam solucionados englobadamente, definindo logo a situação jurídica dos integrantes daquela família. Mas, nada há na legislação que imponha a cumulação, podendo cada um dos assuntos figurar em processos diferentes.


9. Guarda, regulamento de visitas e alimentos aos filhos menores

O ponto que pode, aparentemente, causar alguma preocupação é referente à situação jurídica dos filhos menores do casal divorciado ou separado que, por qualquer motivo, preferiu não definir por acordo ou ação a guarda, o regulamento de visitas e os alimentos aos filhos menores.

O deslinde é simples. A situação mantém-se exatamente a mesma que existia antes do descasamento dos genitores. A guarda é compartilhada e não há falar em direito de visitas nessa modalidade de guarda.

Independentemente da guarda e da convivência sob o mesmo teto, os alimentos podem ser reclamados sempre que houver deles necessidade.


10. Alimentos entre os cônjuges

Mesmo entre cônjuges divorciados ou separados podem ser reclamados alimentos. Tal obrigação, entretanto, cessa com o casamento, união estável ou concubinato do alimentado ou se este tiver procedimento indigno em relação ao alimentante.

Como não se discute mais culpa em tema de divórcio e separação, as regras gerais dos arts. 1704, caput, 1708 e parágrafo único, do Código Civil, regerão a grande maioria dos casos.

Não obstante, como já mencionado alhures, a culpa marital, ou seja, a violação dos deveres do casamento, podem ser objeto de exceção ou defesa em ação de alimentos promovida pelo cônjuge culpado contra o inocente, para excluir ou diminuir o valor, nos termos do parágrafo único do art. 1.704 do Código Civil.

Nesta hipótese, como se trata de ação mista, declaratória da culpa e constitutiva da obrigação, tudo recomenda a adoção do rito ordinário, em lugar do procedimento especial de alimentos.


11. O patrimônio do casal

Assim como nas duas modalidades existentes anteriormente (divórcio direto e divórcio conversão), o divórcio potestativo não depende de divisão dos bens comuns do casal. Neste terreno, não se nota mudança significativa.

Até o instante do divórcio, a disciplina dos bens do casal é a do regime de bens do casamento. Mesmo após o divórcio, a divisão do patrimônio comum obedece às mesmas regras. Entretanto, instala-se ali imediatamente um condomínio e assim o patrimônio responde perante terceiros. Cada qual deve contribuir com as despesas de conservação e suportar os ônus respectivos, na proporção de sua parte.

O quinhão de cada um responde por suas dívidas individuais. Quando a divida for contraída pelos dois condôminos, sem discriminar a parte da cada um na obrigação, nem solidariedade, tem-se que cada qual se obrigou na proporção de seu quinhão (art. 1317 do CC). A dívida contraída por um dos divorciados, em proveito da comunhão, obrigam aquele contratante, mas com ação de regresso contra o outro (art. 1318 do CC).

É direito dos divorciados, a qualquer tempo, promover desmotivadamente a divisão da coisa comum ou partilha de bens.


12. A velha família e o novo direito

Aquilo que hoje parece estranho no mundo do Direito é, na verdade, fruto de um longo desenvolvimento da sociedade humana.

Os movimentos de luta pela emancipação feminina, nos meados do século XX, foram lentamente produzindo vitórias formais e parciais, como o direito de voto feminino, a plena capacidade civil da mulher casada, a igualdade de direitos e a divisão de responsabilidades na gerência da entidade familiar, etc.

Paralelamente, a brutal morte pela Polícia do estudante Benno Ohnesorg, em 2 de junho de 1.967, em Berlim Ocidental, durante uma passeata pacífica e desarmada, desencadeou um movimento de protesto popular contra o autoritarismo, que se espalhou pela Alemanha Ocidental e se irradiou para o resto do mundo, adentrando as Constituições e culminando com o reconhecimento real e evolutivo da individualidade e da necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana.

Este apuro de consciência foi sendo traduzido por sucessivos diplomas legislativos brasileiros. Os crimes de adultério, sedução e rapto consensual foram retirados das páginas do Código Penal. A mulher casada tem direito e dever de voto e nem se discute mais a sua plena capacidade civil. Foram reconhecidos os direitos dos companheiros não casados, após heróica construção jurisprudencial, depois adotada pelo legislador. O divórcio ganhou foros de direito constitucional. Foi estabelecida a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal e reconhecida a entidade familiar, mesmo sem casamento, nas hipóteses de união estável e de ausência de um dos pais.

Na vida comezinha, ninguém cogita de considerar extinta ou inexistente a família quando um dos pais estiver ausente ou quando falte a formalização do casamento. Em inúmeros rincões nunca houve juiz de paz, cartório ou padre e nem por isto deixou de existir a família.

Também, não se pode ignorar mais a importância crescente da patchworkfamilie, ou família reconstituída, e dos saldos ou frações familiares multirrelacionadas com outros saldos ou frações. Hoje, na Alemanha, estima-se que um terço dos recém-nascidos originam-se de pais não casados. Também não é desprezível o número de filhos cujos pais se divorciaram depois. Evidente que os novos problemas legais decorrentes desta família remendada tem assombrado os doutos. Mas as preocupações jurídicas não atingem a vida real, porquanto o fundamento da patchworkfamilie é exatamente igual a de qualquer outra. Basta o vínculo afetivo e o parentesco para cimentar a célula social humana.

A família é muito anterior ao casamento, aos juizes, aos cartórios e aos padres.

Não há lei que possa regular a afeição entre um homem e uma mulher ou entre pais e filhos; não conseguirá nunca o homem impor limites àquilo que Deus criou ilimitado.

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Com bem disse Fustel de Coulanges, "Quando a cidade principiou a escrever suas leis, achou esse direito já estabelecido, vivendo, enraizado nos costumes, fortalecido pelo unânime consenso dos povos"...

"O antigo direito não é obra do legislador; o direito, pelo contrário, impôs-se ao legislador" (A Cidade Antiga.São Paulo: Martins Fontes, 1.995, p. 89).

É o que está a ocorrer agora, quando o constituinte repete a vida e afirma que o única amarra do casamento é a vontade de ficar junto.


13. Conclusões

I. A Emenda Constitucional 66/2010 modificou a redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, criando o divórcio potestativo, absolutamente desvinculado de qualquer termo ou condição.

II. O espírito que animou o Constituinte reformador foi afastar o Estado-juiz dos debates matrimoniais, tanto quanto possível. A atual modificação é fruto de um longo desenvolvimento da sociedade humana.

III. No contexto do descasamento, perderam o sentido as alegações sobre o tempo de separação de fato, abandono de lar e especialmente sobre a culpa pelo rompimento da vida comum. Portanto, desapareceram do ordenamento jurídico as figuras do divórcio direto e do divórcio conversão, já que o novo texto tratou de modo diverso a matéria. Assim também a separação sanção, separação remédio e separação falência.

IV. A natureza jurídica do Novo Divórcio Potestativo é de declaração unilateral de vontade, cujo único requisito é, justamente, a declaração unilateral de vontade.

V. O divórcio perdeu o caráter técnico deação judicial, porquanto não há falar em pretensão resistida e em ex adverso. Falece ao autor o interesse de agir.

VI. Assim, o divórcio judicial tramita no amplo foro da jurisdição voluntária, onde não há propriamente contraditório, nem partes. Trata-se, na verdade, de atividade administrativa, embora desenvolvida pelo juiz.

VII. O divórcio extrajudicial, por escritura pública, é o caminho natural para a resilição do contrato de casamento (divórcio ou separação), já que não há necessidade de interferência do Judiciário e tendo em conta que os contratos são desfeitos pela mesma forma exigida para o contrato (art. 472 do CC), que, no caso, é justamente a escritura pública. Há previsão legal expressa para a gratuidade deste serviço notarial. Cumpre aos interessados exigi-la, provocando sua implementação prática.

VIII. A violação dos deveres do casamento não é mais causa para o divórcio e para a separação. Para descasar, não é necessário apresentar motivo. No entanto, o descumprimento das obrigações maritais pode fundamentar pedido de reparação por dano moral e de proibição do uso do nome de casado, além de prestar-se como exceção em ação de alimentos promovida pelo cônjuge culpado contra o inocente.

IX. A ação de anulação de casamento perdeu sua função de substituta imperfeita do divórcio, mas continua eficiente para desconstituir o regime de bens, para corrigir defeito formal, vício de consentimento e também para aplicar penalidades ao culpado, consistentes na perda de todas as vantagens havidas do cônjuge inocente e na obrigação de cumprir as promessas que fez ao inocente no contrato antenupcial.

X. A ação de separação de corpos perdeu sua função como preparatória para o divórcio direto ou separação judicial, mas ganhou autonomia e independência em relação à ação principal, que já não existe como ação propriamente dita.

XI. A separação foi recepcionada pela nova ordem constitucional, que a elevou para patamar jurídico superior. Agora o instituto tem papel de garantia constitucional decorrente ou implícita, possibilitando aos praticantes dos credos que não admitem o divórcio, exercer o pleno direito de se desassociar, preservando suas convicções religiosas. Tal qual o divórcio, a separação é puramente potestativa e perdeu o caráter de ação judicial propriamente dita.

XII. Nos processos em andamento, tudo recomenda que os autores sejam intimados para que adaptem o pedido à nova regência, explicitando formalmente sua vontade e opção. O mesmo se diga das iniciais propostas com base nos procedimentos superados.

XIII. Os temas propriamente familiares (guarda, partilha de bens, alimentos, etc) devem ser solucionados em conjunto, definindo logo a situação jurídica dos integrantes da família. Mas, nada há na legislação que imponha a cumulação, podendo cada um dos assuntos figurar em processos diferentes.

XIV. Não havendo provimento judicial específico, a guarda, o regulamento de visitas e os alimentos aos filhos menores de casais divorciados mantém exatamente com as mesmas características anteriores ao divórcio. A guarda permanece compartilhada e, assim, não há falar em direito de visitas. Independentemente da guarda e da convivência sob o mesmo teto, os alimentos podem ser reclamados sempre que houver deles necessidade.

XV. Os cônjuges divorciados ou separados podem reclamar reciprocamente alimentos. Tal obrigação, entretanto, cessa com o casamento, união estável ou concubinato do alimentado ou se este tiver procedimento indigno em relação ao alimentante. A culpa marital (violação dos deveres do casamento) pode ser objeto de exceção ou defesa em ação de alimentos promovida pelo cônjuge culpado contra o inocente, para excluir a obrigação ou diminuir o valor, nos termos do parágrafo único do art. 1.704 do Código Civil.

XVI. O divórcio potestativo não depende de divisão dos bens comuns do casal. Neste terreno, não se nota mudança significativa. Divorciado o casal, instala-se o condomínio comum.

XVII. A espera de regulamentação futura é improdutiva, porquanto se trata de norma de direito constitucional incontrastável e de aplicabilidade plena.


14. Síntese

O divórcio (ou separação) transformou-se em direito puro, sem condições. Depois, a família continua exatamente a mesma, até que algum dos interessados resolva promover a regulamentação pontual.

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Sobre o autor
Maximiliano Roberto Ernesto Führer

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. O divórcio potestativo: a velha família e o novo Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2655, 8 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17578. Acesso em: 23 abr. 2024.

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