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O divórcio potestativo: a velha família e o novo Direito

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Perderam o sentido as alegações sobre tempo de separação de fato, abandono de lar e culpa pelo rompimento da vida comum, que envolviam aspectos íntimos e desgastantes da vida familiar.

Sumário: 1. Um sábio conselho; 2. À espera de regulamentação futura e improvável; 3. A "ação" judicial de divórcio e a escritura de divórcio; 3.1. O divórcio judicial; 3.2. O divórcio extrajudicial; 4. A importância e a função jurídica remanescente dos chamados deveres do casamento; 5. Ação de anulação de casamento ; 6. Ação de separação de corpos; 7. Separação judicial como garantia constitucional decorrente ou implícita; 8. Os processos em andamento e a cumulação de pedidos; 9. Guarda, regulamento de visitas e alimentos aos filhos menores; 10. Alimentos entre os cônjuges; 11. O patrimônio do casal; 12. A velha família e o novo direito; 13. Conclusões; 14. Síntese.


1. Um sábio conselho

– Saiam do quarto dos outros !

Este foi o brado dos livres-pensadores franceses em oposição à postura dos padres na segunda metade do século XIX. O clamor anticlerical, que também ecoou na cúpula da Igreja, visava afastar as situações inconvenientes e perigosas criadas pela ingerência dos confessores católicos na privacidade do casal, exigindo das esposas a revelação das intimidades amorosas e determinando quais as condutas "adequadas" para a mulher, quando no leito do marital (Alain Corbin. A relação íntima ou os prazeres da troca, in História da Vida Privada, vol. 4, São Paulo: Cia das Letras. 2.003, p. 509 e ss).

Algo semelhante ocorreu com a edição da Emenda Constitucional 66/2010, que, modificando a redação do § 6º do art. 226 da Constituição Federal, criou o divórcio potestativo, absolutamente desvinculado de qualquer termo ou condição.

Imediatamente, no contexto do descasamento, perderam o sentido as alegações sobre o tempo de separação de fato, abandono de lar e especialmente sobre a culpa pelo rompimento da vida comum, que reciprocamente trocavam os divorciandos e que amiúde envolviam aspectos mui íntimos e desgastantes da vida familiar, com exposição, inclusive, dos filhos.

– Afastem-se dos debates conjugais !

Esta é a formula do espírito que iluminou o nosso constituinte reformador. Tanto quanto possível, deve o Estado-juiz se afastar dos embates íntimos, que sempre trazem considerável prejuízo para a prole e amargam o relacionamento dos divorciandos, impedindo o equacionamento e a solução, muitas vezes simples, das questões jurídico-afetivas que envolvem a família.

Para melhor perceber a extensão do comando e a conseqüente mudança no mundo do Direito, é preciso voltar um pouco no tempo.

Até 13 de julho e 2.010, data em que entrou em vigor a referida emenda constitucional, o ordenamento jurídico brasileiro abrigava dois institutos semelhantes com o poder de encerrar a sociedade conjugal; um mais amplo (divórcio), rompendo qualquer vínculo conjugal, e outro mais restrito (separação judicial), pondo fim apenas aos deveres conjugais e ao regime de bens, mas mantendo o vínculo matrimonial formal.

A separação judicial dividia-se em consensual ou contenciosa. A primeira somente poderia ser requerida em conjunto pelos cônjuges após um ano de casamento (art. 1574 do Código Civil), sendo necessária a descrição dos bens do casal, a disposição sobre a guarda e a manutenção dos filhos menores, alimentos e sobre a manutenção ou não dos nomes de casado dos cônjuges após a separação. A partilha de bens excepcionalmente poderia ser postergada para outra ocasião (art. 1.121 p. único do CPC). Já a separação judicial contenciosa tinha cabimento em três hipóteses. A separação sanção fundava-se na grave violação dos deveres do casamento, que tornasse insuportável a vida em comum. Poderia ser proposta a qualquer tempo. O cônjuge culpado, em princípio, perdia o direito de continuar usando o patronímico do esposo, eventualmente acrescido ao seu. A separação falência tinha por base a prova do rompimento da vida em comum por mais de um ano, sem possibilidade de reconstituição. Finalmente, a separação remédio tinha lugar nos casos de doença mental grave, manifestada após o casamento, de cura improvável e de duração superior a dois anos (art. 1.584, p. único do CC).

Como a separação judicial não extinguia o vínculo conjugal, tal meio era utilizado pelas partes quando, por imposição religiosa, afeição remanescente, preferência pessoal, ou qualquer outro motivo, existia interesse em preservar o casamento formal. A separação judicial também era manejada como ato preparatório para o divórcio, como veremos adiante. Note-se que ao separados que se reconciliassem poderiam a qualquer tempo, mediante simples petição, alcançar o restabelecimento judicial da mesma sociedade conjugal.

Ao contrário, o divórcio rompia definitivamente o vínculo conjugal. Desaparecia a possibilidade de restituição do mesmo casamento, ainda que houvesse reconciliação. Nesta hipótese, deveriam os divorciados travar novo casamento.

O divórcio tinha duas modalidades. O divórcio direto consensual ou litigioso, fundava-se na separação de fato do casal por mais de dois anos. Em princípio, não se discutia a culpa dos cônjuges. Já o divórcio conversão poderia ser pleiteado após um ano da separação judicial.

Aos poucos, firmou-se o entendimento que, afora o cumprimento do lapso (um ano da separação judicial ou dois da separação de fato), nada mais poderia ser exigido no divórcio, por se tratar de direito constitucional, cujo único requisito era o tempo. O descumprimento das obrigações assumidas na separação judicial, o não pagamento de alimentos, a divisão de bens e outros temas correlatos, se não houvesse acordo entre os divorciandos, deveriam ser objeto de ação própria.

A partir de 2.007, passou a existir a opção de formalizar a separação e o divórcio por escritura pública, desde que não houvesse filhos menores ou incapazes e os cônjuges estivessem de acordo. Nesse mister, há previsão de gratuidade da escritura e dos atos notariais respectivos aos que se declarem pobres (art. 1.124-A do CPC), sem condições de arcar com os emolumentos, ainda que estejam assistidos por advogado constituído (art. 7º da Resolução nº 35/2.007 do CNJ).

Vê-se que, desde 1.988, o Constituinte e, depois, o Legislador Ordinário vinham sinalizando no sentido de que os debates conjugais deveriam ser expungidos do divórcio.

O ciclo histórico se completa agora com o Novo Divórcio Potestativo, cujo único requisito é a vontade do cônjuge interessado.

Neste passo e diante da nova configuração do instituto, cumpre enfrentar as questões derivadas, que imediatamente se colocam.

Devemos esperar a chegada de legislação infraconstitucional reguladora do novo divórcio potestativo ? Existe ainda ação de divórcio? Qual a função jurídica dos chamados deveres do casamento ? Há ainda serventia para as ações de anulação de casamento e de separação de corpos ? Sobrevive a possibilidade de separação judicial ? Qual o destino adequado para os processos em andamento? Como ficam a guarda dos filhos menores, as visitas, os alimentos e os nomes dos cônjuges?


2. À espera de regulamentação futura e improvável

Em 1953, o dramaturgo Samuel Beckett causou perplexidade ao encenar em Paris sua peça "Esperando Godot" (En attendant Godot), onde dois personagens mundanos travam um curioso diálogo, enquanto esperam um tal de Godot, que nunca aparece.

A situação dos personagens de Beckett serve de mote para o enfretamento da questão acerca da viabilidade de uma regulamentação legal futura ou de uma complementação constitucional que melhor explique a dinâmica do novo divórcio potestativo.

A lógica indica resposta negativa.

O reconhecimento do direito de divórcio potestativo, sem termo ou condição, constitui direito fundamental, porquanto amolda-se perfeitamente ao disposto no art. 5º, XX, da Constituição Federal (ninguém pode ser compelido a permanecer associado a outrem) e tem por espeque o princípio da dignidade da pessoa humana. Desta forma, o texto em exame é intangível, não podendo ser objeto de emenda extintiva (art. 60, § 4º, IV, da CF).

Como não existe possibilidade de edição de lei infraconstitucional que, de qualquer forma, restrinja ou condicione o direito ao divórcio, a espera de legislação reguladora posterior mostra-se improdutiva.

De outra banda, verifica-se que a norma em estudo é daquelas que tem aplicabilidade plena, não necessitando de regulamentação.

Em síntese, o solitário texto constitucional específico ("O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.") é o único instrumento disponível para aplicação do direito.


3. A "ação" judicial de divórcio e a escritura de divórcio.

Como ressaltado, o Constituinte vinculou o divórcio potestativo exclusivamente à vontade do interessado, sem a necessidade do preenchimento de qualquer outra condição ou prazo.

Mesmo quando houver culpa evidente do requerente, o outro cônjuge for incapaz ou não concordar com a dissolução do casamento, o divórcio não poderá ser obstado.

Como se trata de mandamento constitucional, as normas de nível inferior não podem impor qualquer espécie de restrição a este direito puramente de vontade. Ou seja, todas as eventuais restrições ao divórcio existentes na legislação anterior não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional.

Definitivamente, para o divórcio, agora basta a vontade do interessado.

Com isso, a natureza jurídica do divórcio assume a forma de declaração unilateral de vontade, cujos requisitos de validade são exclusivamente aqueles gerais de qualquer ato jurídico ordinário. A conclusão inevitável é que a opinião e a posição eventualmente adotada pelo outro cônjuge são despidas de qualquer relevância jurídica para efeito do novo divórcio.

Ou, por outra, não há possibilidade de contestação.

Ora, sabe-se que, para a proposta de ação judicial, é preciso demonstrar a existência de interesse na providência desejada. É o chamado interesse de agir, que se materializa na demonstração, pelo menos em linhas gerais, de que tal providência judicial é realmente necessária. Não há interesse de agir; não há interesse de se fazer movimentar a máquina judiciária, se a coisa pode ser obtida normalmente, sem interferência do juiz. Para se abrir a janela da própria casa, por exemplo, não há necessidade de processo, salvo demonstração em contrário.

Falecendo interesse de agir, exceto a ocorrência de circunstância anormal, as declarações unilaterais de vontade, como o testamento e, agora, o divórcio, à rigor, dispensam a provocação do Judiciário.

Por conta disso, os pedidos de homologação de divórcio passaram a ser conhecidos pelo Judiciário na brandura do amplo foro da jurisdição voluntária, em homenagem ao direito constitucional fundamental de liberdade de se desassociar.

Assim, na prática, o divórcio potestativo pode ser formalizado judicialmente, por requerimento de apenas um cônjuge (divórcio judicial unilateral)ou dos dois em conjunto (divórcio judicial consensual), e também de forma extrajudicial, por escritura pública, lavrada pelo tabelião. Para esta última modalidade, está expressamente prevista na lei apenas a forma consensual (divórcio extrajudicial consensual), mas como se verá, não é absurdo admitir a modalidade unilateral (divórcio extrajudicial unilateral).

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3.1. O divórcio judicial

Como já dito, o procedimento judicial é de jurisdição voluntária, sem contraditório, não existindo partes, mas apenas interessados.

Sendo odivórcio judicial unilateral, o outro cônjuge é intimado para, querendo, se manifestar no prazo assinalado pelo juiz (arts. 177 do CPC). Como a vontade de um dos cônjuges é suficiente para sustentar o divórcio, não é possível oferecer propriamente uma contestação, nem haverá discussão acerca da culpa pelo rompimento. Essa intimação cumpre apenas o papel da notificação ao outro interessado, exigida, de modo geral, em toda resilição unilateral de contrato (art. 473 do CC).

Lembre-se que o casamento tem natureza de contrato especial, sui generis, de direito de família, onde prevalecem normas de caráter público e onde a função social é de relevância incomum, mas sempre é um contrato.

Sendo o divórcio judicial consensual, basta a formalização da vontade de ambos para a homologação. Após, a decisão deve ser averbada no registro do casamento e no registro de imóveis, se junto houve partilha de imóveis.

O pedido judicial de homologação do divórcio pode ser cumulado com outras demandas próprias do Direito de Família, como guarda dos filhos menores ou incapazes, alimentos, divisão de bens e disposições acerca do uso do nome adotado no casamento. Com relação a estes pedidos conexos, o procedimento será de jurisdição voluntária ou contenciosa, conforme haja ou não consenso.

3.2. O divórcio extrajudicial

O divórcio por escritura publica se dá nos termos do art. 1.124-A do CPC. Há previsão expressa apenas para a modalidade consensual e desde que não haja filhos menores ou incapazes. Porém, a nova redação introduzida pela EC nº 66/2010 ao § 6º do art. 226 da CF não condiciona o divórcio potestativo a qualquer termo ou condição. Destarte, como se trata de mandamento constitucional, que não pode ser limitado por legislação infraconstitucional, é razoável admitir o divórcio por escritura pública ainda quando unilateral e ainda quando houver filhos menores ou incapazes.

Sendo o divórcio unilateral, o outro cônjuge deverá ser notificado do ato, nos termos do art. 473 do CC. As eventuais questões referentes aos filhos menores e incapazes (guarda, visitas, etc) são excluídas da escritura e devem ser solucionadas por via judicial.

Adotando a forma consensual, podem constar da escritura a descrição e a partilha dos bens comuns, o acordo sobre a pensão alimentícia e sobre o nome dos divorciandos. Em todo caso, é necessária a assistência de advogado.

A escritura e os demais atos notariais são gratuitos para os que se declarem pobres (art. 1124-A, § 3º, do CPC). A escritura não depende de homologação judicial e deve ser averbada no registro do casamento. É título hábil também para o registro de imóveis, no caso de partilha de bens imóveis.


4. A importância e a função jurídica remanescente dos chamados deveres do casamento

O art. 1.566 do Código Civil aponta quais são os deveres do matrimônio: I – fidelidade recíproca, II – vida em comum, no domicílio conjugal, III – mútua assistência, IV – sustento, guarda e educação dos filhos e V – respeito e consideração recíprocos.

Até a chegada da Emenda 66/2010, o tema tinha enorme importância, porquanto a grave violação dos deveres do casamento, que tornasse insuportável a vida em comum, poderia sustentar pedido de separação sanção, que, depois, poderia dar ensejo ao divórcio conversão.

Agora, como a Emenda Constitucional criou o divórcio puramente potestativo, a violação em tela perdeu o seu antigo encanto jurídico, mas imediatamente passou a desempenhar plenamente um novo papel, que timidamente já se anunciava no Direito de Família.

O descumprimento das obrigações maritais, considerado isoladamente, pela imensa carga emotiva que contém, sustenta inúmeros pedidos de reparação por dano moral.

O tema ganhou relevância própria, independentemente do eventual divórcio.

Dano moral, em sentido próprio, significa abalo nos sentimentos de uma pessoa, provocando-lhe dor, tristeza, desgosto, depressão, perda da alegria de viver, etc.

Talvez nenhuma outra transgressão tenha tamanho potencial para provocar abalo nos sentimentos. A falta aos deveres do casamento é propriamente um rompimento do quase-sagrado compromisso de vida travado entre os nubentes.

Claro, tal dano comporta uma satisfação ou compensação.

Daí a nova feição jurídica que assumiu, sem demora, a violação dos deveres matrimoniais.

Sem embargo destes novos aspectos e da circunstância de que as disposições legais restritivas ao divórcio e à separação judicial não terem sido recepcionadas pela nova ordem constitucional, o fato é que o art. 1.578 do Código Civil cuida, na verdade, de situação de inadimplemento contratual e continua plenamente operante em desfavor do cônjuge que não cumpriu sua parte na avença matrimonial. Ou, por outra, o transgressor perde o direito de usar o patronímico do esposo acrescido ao seu, com as exceções dos incisos I a III do mesmo artigo.

Mas, esta é uma questão independente, agora desvinculada do divórcio e da separação.

Conclui-se que, mesmo entre casados pode haver ação para abandono do nome do esposo, se caracterizado grave descumprimento dos deveres do casamento. Esta possibilidade sempre existiu em tese, com supedâneo no art. 5º da LICC, mas agora ganhou um destaque especial.

O mesmo se diga da possibilidade de o cônjuge inocente renunciar ao direito de usar o sobrenome do outro (art. 1578, §§ 1º e 2º, do Código Civil).

Em síntese, a grave violação dos deveres do casamento presta-se para sustentar pedido de reparação por dano moral e para excluir o nome do cônjuge eventualmente adotado por ocasião do casamento.

A violação dos deveres do casamento também se presta como matéria de exceção ou defesa em eventual ação de alimentos proposta pelo cônjuge culpado, nos termos do parágrafo único do art. 1.704 do Código Civil.

A verba, nestas condições, somente é devida em caráter supletivo, se não houver parentes que possam prestá-la e nem aptidão para o trabalho, sendo que o valor é apenas o indispensável para a sobrevivência.


5. Ação de anulação de casamento

A ação de anulação de casamento sempre teve a histórica feição de substituta imperfeita da ação de separação e da ação de divórcio. Tal ferramenta foi bastante manejada quando ainda nem existia divórcio, como único meio de possibilitar um "novo" casamento, especialmente quando as convicções religiosas do interessado impediam a segunda união.

Como mera substituta legal imperfeita, a ação de anulação perdeu quase toda a relevância (resta íntegro o amparo aos motivos de cunho religioso e afetivo), pois o divórcio potestativo é muito mais rápido e simples, independendo da produção de provas especiais.

Mas, no entanto, a ação de anulação continua eficiente para desconstituir o regime de bens, para corrigir defeito formal, vício de consentimento e também para aplicar penalidades ao culpado, consistentes na perda de todas as vantagens havidas do cônjuge inocente e na obrigação de cumprir as promessas que fez ao inocente no contrato antenupcial (art. 1564 do Código Civil).


6. Ação de separação de corpos

A separação de corpos é uma ação de índole cautelar, prevista como preparatória de ação de nulidade ou anulação de casamento, de separação judicial, de divórcio direto ou de dissolução de união estável.

A medida tem lugar quando caracterizada situação grave, geralmente consistente na possibilidade concreta de agressão física ou moral, onde o perigo justifica o afastamento de um dos conviventes do lar conjugal.

Vinha sendo utilizada amiúde também para estabelecer o termo inicial do prazo de separação de fato justificador de posterior pedido de divórcio direto ou de separação falência.

A instituição do célere divórcio potestativo constitucional, que perdeu o caráter técnico de ação, para assumir a natureza de declaração unilateral de vontade, extinguiu a possibilidade deste uso. Como não há mais necessidade de demonstração do tempo de separação de fato, não se concebe mais o manejo desta ferramenta para tal fim.

Não obstante, permanece íntegra a primeira e principal serventia da separação de corpos, nas referidas situações de perigo.

No início da vigência do Código Buzaid (CPC), a ação cautelar de separação de corpos era tida como ação acessória, tal como toda cautelar, cuja eficácia depende da proposta da ação principal, que, no caso, poderia ser de nulidade ou anulação de casamento, de separação judicial, de divórcio direto ou de dissolução de união estável.

Ao longo do tempo, parte da doutrina, com alguma razão, começou a encarar a separação de corpos como que portadora de alguma independência. Impossível não citar aqui a precisão do pioneiro Galeno Lacerda: "No direito de família e no amparo ao menor e ao incapaz, o bom senso repele a caducidade. Se o juiz, cautelarmente, decretou a separação de corpos, a prestação de alimentos à mulher e ao filho abandonados, o resguardo do menor contra o castigo imoderado ou contra a guarda nociva, a regulamentação do direito de visitas, a destituição provisória de pátrio poder ou de tutor ou curador, é de evidência mediana que o não ingresso da ação principal no prazo de trinta dias não pode importar, respectivamente, na reunião de corpos que se odeiam, no desamparo e na fome da mulher e da criança, na eliminação da visita, no retorno do indigno ao pátrio poder, à tutela ou curatela. Façamos justiça ao art. 806, que jamais visou objetivos odiosos e nefandos. Interpretemo-lo com inteligência e com bom senso" (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 8, t. 1, p. 380).

Neste tom, mesmo que não proposta a ação principal no prazo legal de 30 dias, a cautelar sobreviveria, enquanto não cessado o perigo (o chamado "mal maior") ensejador do provimento judicial. Como admitir, por questões meramente processuais, o reajuntamento sob o mesmo teto de pessoas com personalidades reciprocamente insuportáveis? Como possibilitar a convivência da vítima com seu agressor?

Esta tendência chegou a ser sumulada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (súmula 10: "O deferimento do pedido de separação de corpos não tem sua eficácia submetida ao prazo do art. 806 do CPC"). Também a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) parece ter prestigiado o entendimento autonomista.

Agora, com o desaparecimento da ação formal de divórcio, o caráter de independência da cautelar de separação de corpos ficou muito realçado.

A interpretação lógica do atual momento jurídico indica que a separação de corpos no matrimônio passou a definitivamente não se sujeitar ao prazo do art. 806 do CPC. Isto é, o provimento liminar e a sentença lançados em separação de corpos, embora de cunho mandamental e provisório, não sofrem os efeitos da caducidade, mesmo quando não proposta a "ação principal" (que não mais existe), em 30 dias.

Tal fenômeno já era reconhecido em tema de união estável, instituto de natureza essencialmente informal, cuja dissolução se dá por vontade pura, sem necessidade de qualquer intervenção do Judiciário. Ali, também, não há verdadeiramente uma "ação principal" a ser proposta.

Vê-se que, neste ponto, como em vários outros, o Constituinte acabou aproximando muito o casamento da união estável, trazendo um acréscimo de qualidade na técnica jurídica e na humanização das instituições.

Em síntese, como não existe ação principal possível sobre o tema, a cautelar assume plenamente sua independência.

Não se pode olvidar, porém, que o provimento judicial na separação de corpos mantém sempre o caráter emergencial, provisório, à espera de solução definitiva que, eventualmente, pode se materializar numa ação de divisão de bens comuns, de extinção de condomínio, de propriedade (reivindicatórias, imissão de posse, etc) e até mesmo de uma possessória pura. O provimento definitivo rescinde o provisório.

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Sobre o autor
Maximiliano Roberto Ernesto Führer

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. O divórcio potestativo: a velha família e o novo Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2655, 8 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17578. Acesso em: 29 mar. 2024.

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