CAPÍTULO II
A UNICIDADE SINDICAL BRASILEIRA
A liberdade sindical é um princípio fundamental para o Direito Coletivo do Trabalho, tendo sido objeto, inclusive, da Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho. A referida Convenção, em seu artigo 2º, dispõe que "Trabalhadores e empregadores, sem distinção de qualquer espécie, terão o direito de constituir, sem prévia autorização, organizações de sua própria escolha e, sob a única condição de observar seus estatutos, a elas se filiarem".
A Convenção nº 87 da OIT foi criada no longínquo ano de 1948; e, como se pode supor, nunca foi ratificada pelo Brasil.
As razões para o absenteísmo do Brasil frente a este diploma internacional, acolhido pela imensa maioria dos países democráticos, é cristalina: desde a época de Vargas, o sindicalismo brasileiro vive sob o signo da unicidade sindical, isto é, a proibição de existência de mais de um sindicato representativo de determinada categoria em um certo território.
Correlacionando a liberdade sindical em contraposição à unicidade, escreveu Mozart Victor Russomano (RUSSOMANO, 1998, p. 65-66):
Não se pode falar em liberdade sindical absoluta sem se admitir que exista, em determinado sistema jurídico, sindicalização livre, autonomia sindical e – em nosso juízo – pluralidade sindical. Por outras palavras: a liberdade sindical pressupõe a sindicalização livre, contra a sindicalização obrigatória; a autonomia sindical, contra o dirigismo sindical; a pluralidade sindical, contra a unicidade sindical. (...) Se tomarmos a liberdade sindical no seu conceito mais amplo, necessariamente encontraremos, no fundo deste instituto, aquelas três ideias básicas, sem as quais não existe liberdade plena, nem para o sindicato, nem para os trabalhadores que nele encontram os pulmões da sua vida profissional.
Assim, importa verificar a presença no sindicalismo brasileiro do triplo aspecto do princípio da liberdade sindical, colocado pelo mestre Russomano.
Quanto à sindicalização livre, considerada como o direito do indivíduo de filiar-se, permanecer e retirar-se da entidade sindical, tem-se que, bem ou mal, sempre foi garantida no sistema brasileiro, desde a época de Vargas, muito embora claro fosse o incentivo à sindicalização por parte do Estado, ao estabelecer certos privilégios aos trabalhadores filiados (vide art. 544 da CLT). Contudo, repita-se, a filiação nunca foi obrigatória. Hodiernamente, a Constituição de 1988 garante a liberdade de associação (art. 5º, XX) e, tratando especificamente sobre o tema, dispõe que "ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato" (art. 8º, V).
Quanto à autonomia sindical, considerada como o direito do sindicato de ser "o senhor único de suas deliberações, não podendo ficar submetido ao dirigismo exercido por forças externas ou poderes estranhos à sua organização interna" (RUSSOMANO, 1998, p. 70), tem-se que sua supressão foi uma das grandes marcas do sindicalismo varguista. Conforme já dito supra, a filosofia corporativista implicava em submeter o sindicato ao controle – ainda que indireto – do Estado, como forma de transformá-lo em um braço dentre as lideranças laborativas. Sobre como a autonomia sindical é tanto fundamental quanto natural à existência de um sindicato livre, ensina o doutrinador italiano Giuliano Mazzoni (MAZZONI, 1972, p. 66):
Expressão deste particular direito de autodeterminação, originário do sindicato, é o modo de organização interna do grupo profissional que, no ato de constituição, estabelece antes sua esfera de ação profissional e territorial; e, sobre essa base, determina no estatuto os fins e os órgãos internos (cuja competência e atribuições são então reguladas), fixando, ademais, as normas imprescindíveis a uma vida associativa eficaz. E que este direito de autoconstituição e autodeterminação do sindicato seja um direito natural e insuprimível (tanto dos indivíduos como dos grupos), prova-o a história do sindicalismo, rica em exemplos e ensinamentos que demonstram como a proibição mesmo rigorosa, por parte de normas cogentes do Estado, resulta inútil e perigosa, quando em choque com necessidades espontâneas e evidentes do homem e do corpo social.
Embora execrada pelo regime de Vargas, a autonomia sindical foi garantida pela Carta Magna de 1988, a qual proíbe à lei a exigência de autorização do Estado para a criação de sindicato, bem como veda ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical (art. 8º, I).
No que concerne à obrigatoriedade do registro da entidade sindical, já é cediço que este atualmente não é elemento de intervenção estatal, mas sim se presta à instrumentalização do monismo sindical – uma vez registrado certo sindicato, nos moldes legais, outra entidade ulterior não poderá sofrer o registro no mesmo território e no âmbito da mesma categoria do primeiro; daí a relevância deste cadastro, regulado pelo Ministério do Trabalho.
Finalmente, quanto ao terceiro aspecto da liberdade sindical, a pluralidade sindical, tem-se que este nunca existiu de fato no contexto brasileiro. A unicidade quase sempre se fez presente no ordenamento jurídico pátrio, a se observar a exceção da Constituição de 1934, a qual garantia a pluralidade sindical. Contudo, logo após, primeiro com o estado de sítio de 1935 e, definitivamente, através da Carta de 1937, a pluralidade foi abolida, vigendo, desde então, a unicidade sindical.
Foi dito anteriormente que o princípio da unicidade sindical era de fundamental importância para o sistema de sindicalismo pretendido por Getúlio Vargas, na medida em que possibilitaria o controle do Estado e limitaria a atuação independente de grupos de trabalhadores eventualmente dissidentes da política praticada pela entidade sindical.
Por razões já explanadas no Capítulo anterior, a unicidade sindical foi mantida pela Constituição de 1988 (art. 8º, II). Somente um sistema assim poderia garantir a permanência no poder – e sobrevivência em um regime democrático – das velhas "oligarquias" sindicais. De fato, mantendo-se a estrutura antiga e arraigada, é virtualmente impossível deixar de impingir no trabalhador a impressão de "mais do mesmo".
A unicidade ou monismo sindical é fruto da vontade despótica do Estado corporativista, que insiste em regular os movimentos sociais trabalhistas e fiscalizar as negociações coletivas. A decisão de formar ou não um sindicato único em certo território deve partir dos grupos interessados, sendo incoerente com um regime democrático tal determinação partir do Poder Público. Sobre isso, diz Alcione Niederauer Corrêa (CORRÊA, 1983, p. 121):
É falsa a opinião, contrária à liberdade sindical, de que ela deve surgir de uma vontade heterônoma à própria classe ou profissão. As conquistas sociais se fazem autênticas quando brotadas das legítimas aspirações dos grupos sociais, não apenas como produto artificial do Estado. A nosso ver, inexiste liberdade sem direito de livre associação, permitindo que as diversas tendências, ocorrentes dentro da categoria profissional, possam, inicialmente, agrupar-se, num movimento determinado pela afinidade de princípios e interesses comuns. Não há liberdade quando se entrega ao trabalhador uma opção restrita de ou sindicalizar-se, participando de uma organização que não corresponde aos princípios que ele adota, ou ficar alheio ao movimento sindical.
De fato, o monismo (ou unicidade) gera o grande risco de alijar trabalhadores do movimento sindical, pois estabelece modelos rígidos de sindicatos preexistes, restando ao obreiro aliar-se a este modelo ou não; em fazendo a segunda escolha, estará praticamente excluído do sistema sindical.
A Constituição de 1988, chamada "Cidadã", assegurou o direito de livre associação (art. 5º, XVII – "é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar"), subtendendo-se nesta garantia a liberdade não apenas de ingressar ou sair de entidades pré-constituídas, mas também de criar novas associações para fins pacíficos, presente a comunhão de interesses de seus participantes.
No que tange a esta liberdade de formar sindicato único, em contraposição à obrigatoriedade disto, por imposição do Estado, comenta Mozart Victor Russomano (RUSSOMANO, 1998, p. 74-75):
No regime de pluralidade sindical, ao contrário, o trabalhador tem o privilégio de escolher, entre diferentes sindicatos, aquele que melhor afine com suas ideias e aspirações, bem como, se for o caso, de dissentir dos sindicatos existentes e fundar outros sindicatos, amparado na minoria dissidente, uma vez preenchidos os requisitos da lei local. Pode ocorrer que, no regime da pluralidade sindical, os interessados convenham em que é necessária a existência de um só sindicato. No primeiro caso, o sindicato único – oficial ou oficializado – se torna presa fácil das pressões estranhas ao sindicalismo ou dos grupos políticos. Pode, inclusive, ser deturpado pelo malabarismo partidário. No segundo caso, a unidade sindical resulta, como fenômeno natural, do movimento espontâneo das opiniões trabalhistas. E isso lhe dá extraordinária força de ação e reação.
Assim, é incoerente e discrepante para com o espírito da Lei Maior a manutenção da unicidade sindical. Sua existência não se justifica ante aos objetivos democráticos da Constituição; apenas se explica seu ingresso na Carta pela força dos grupos interessados na perpetuação do status quo do deficiente sistema de organização sindical brasileiro.
De fato, a própria norma que proíbe a intervenção do Estado nos sindicatos (art. 8º, I) é dissonante da regra que estabelece o monismo sindical (art. 8º, II). Ora, enquanto a primeira propõe a ideia de liberdade sindical, a norma seguinte tolhe esta proposição, em uma contradição absurda. Esta incongruência foi percebida por Eduardo Gabriel Saad logo na aurora da vigência da atual Constituição (SAAD, 1989, p. 177):
Em seus primórdios, o sindicato único, se era dotado de direitos e prerrogativas excepcionais, de outro lado estava o Poder Público armado de poderes para coibir qualquer abuso que ele praticasse. Havia uma certa lógica nesse sistema de pesos e contrapesos. (...) Mantendo o unitarismo sindical e despojando o Poder Público da faculdade legal de reprimir possíveis excessos de uma entidade sindical ou política, o legislador não houve com bom senso. Conservando o unitarismo sindical, deveria preservar os controles legais de suas atividades, embora abrandando-os aqui e acolá. Haveria mais lógica na sua conduta se abrisse as portas ao pluralismo sindical e suprimisse, por completo, a ação fiscalizadora ou inibidora, por parte do Estado, das atividades das organizações sindicais.
O que demonstra o insigne doutrinador é que unicidade sindical sempre se encontra de braços dados com intervenção estatal e vice-versa, eis que a própria unicidade já é uma forma brutal de intervenção. Daí a incongruência: não há que se falar em monismo sindical em Estado não-intervencionista, como ocorre no sistema brasileiro. E, por consequência, como demonstrado, nunca existirá plena liberdade sindical enquanto este quadro persistir.
2.1 – CATEGORIAS PROFISSIONAIS: SISTEMA DE FAVORECIMENTO À UNICIDADE SINDICAL
Conforme dito acima, a unicidade sindical é resquício do Estado corporativista; assim também é a divisão dos trabalhadores em categorias.
A CLT, texto-mor da filosofia varguista, considera membros de uma mesma categoria profissional aqueles trabalhadores ligados pela similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas (art. 511).
O conceito corporativista de categoria surge novamente da sanha daquele modelo estatal de controlar e regular os mais comezinhos movimentos sociais, compartimentando-os e classificando-os.
O modo como a divisão da classe trabalhadora em categorias profissionais favorece à unicidade sindical é clara. É a definição da categoria que delimitará a abrangência subjetiva – isto é, no que tange às pessoas componentes – do sindicato único. E assim, tal configuração possibilitou o controle estatal, sabendo o Poder Público a qual sindicato estava, literalmente, enquadrado determinado trabalhador. E foi no sentido de regular esses aspectos que se desenhou a Consolidação das Leis dos Trabalho. Segundo Carlos Alberto Chiarelli (CHIARELLI, 1990, p. 17):
Proibiu o consolidador o exercício da plena liberdade criativa, indispensável para fazer espontânea e consequentemente, mais realista a representação classista. Estabeleceu-se, por lei, a modelagem prévia, a matriz a ser usada, como paradigma, e da qual o afastar-se significaria ilegalizar a proposta sindical. Este não floresceria como resultado de vocações voluntárias, naturalmente agrupadas e coesas, de quantos sentindo necessidades comuns e aspirações similares, buscassem vincular-se, num compromisso recíproco, no campo das relações de produção e particularmente de emprego. Precisaria haver obediência a padrão que o molde imperativo da lei, há muito e de maneira estratificada, estabelecera, pela vontade do Estado, esquecido da dinâmica vibrante e múltipla, criatura e criadora, da convivência social.
Em um cenário de plena liberdade sindical, a reunião de trabalhadores em entidades sindicais ocorre pela espontaneidade de sua vontade, e não simplesmente porque preenchem requisitos autorizadores impostos por decreto estatal. Poderia até mesmo ocorrer de trabalhadores reunirem-se por conta da similitude de condições de vida, como reza a CLT, porém isso deve ser oriundo de um legítimo desejo daquele grupo, e não por previsão legal.
Aliás, o ideal seria mesmo a unidade dentro da pluralidade; ou seja, sendo assegurada a liberdade de se criar tantos quantos sindicatos quiserem, dentro da mesma base territorial, chegar-se à unidade de ações – e, portanto, a um fortalecimento no seu atuar – por conta do amadurecimento da classe, pela compreensão de que a unidade, consciente e harmonicamente obtida, oferecerá resultados mais satisfatórios. Mas não porque ordenada pelo Estado, mas "como fruto da composição espontânea de interesses, que pressupõem, antes dela, a pluralidade" (CHIARELLI, 1990, p. 26).
A discrepância do modelo de categorias é verificada facilmente, tendo em vista muitas vezes o trabalhador nem saber a que categoria pertence. Obviamente, não fora consultado quanto aos seus objetivos enquanto trabalhador; da mesma forma, não se interessou em tomar conhecimento de seu sindicato, pois este não representa sua vontade real – apenas existe porque fora fundado primeiro por um outro grupo de pessoas anos e anos atrás.
Acerca da conexão inexorável entre o monismo sindical e o sistema obrigatório de categorias, bem como a contraposição de ambos à liberdade sindical, escreveu Hugo Gueiros Bernardes (BERNARDES, 1983, p. 76):
Encontramos certa antinomia entre a necessidade de eliminar exigências de enquadramento sindical e a de obedecer a critérios de identidade, similaridade ou conexidade para definir a representatividade dos sindicatos em relação a uma hipotética ‘categoria’. Se a isto aduzirmos a proposta de plena liberdade entre a organização sindical do tipo vertical e a do tipo horizontal (atividades econômicas ou profissões), teremos que concluir que as ‘categorias’ devem surgir do próprio movimento associativo, sem nenhum condicionamento prévio da lei ou da Administração Pública, muito menos da classe patronal. Mas, se assim for, está irremediavelmente prejudicada a recomendação do monismo sindical (...), tornando-se irrecusável o pluralismo.
Destarte, a classificação em categorias é fundamental à existência do monismo sindical que, por sua vez, como já explanado, é extremamente prejudicial à formação democrática da sociedade nacional. Impede, a título de exemplo, a formação de sindicato por empresa, em que um grupo de trabalhadores reúnem-se para fazer frente a um empregador, mesmo que não exerçam atividades. Ou mesmo impede a formação de sindicato por região, isto é, a reunião de trabalhadores de certa região, independentemente das profissões e ofícios envolvidos.
Contudo, o art. 511 da CLT, nascido sob a determinação corporativista de Vargas, limita a associação apenas àqueles que exercem a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares e conexas. A contrariedade, portanto, da classificação em categorias com o princípio da liberdade sindical é evidente. Malgrado tal constatação, é de se observar que este modelo foi agasalhado pela Carta de 1988, a qual, inobstante de espírito democrático, adotou a unicidade sindical.