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Os entraves constitucionais à aplicação do princípio da liberdade no sistema sindical brasileiro

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O sistema sindical de Vargas gerou graves consequências, como a unicidade sindical, a divisão dos trabalhadores em categorias, o poder normativo da Justiça do Trabalho e a contribuição sindical compulsória.

RESUMO

A organização sindical brasileira, considerada de cunho autoritário mesmo após a Constituição de 1988, teve suas raízes fundadas na filosofia corporativista de Getúlio Vargas; assim, enquanto no restante do mundo, principalmente nos países de orientação capitalista liberal, o sindicalismo desenvolvia-se sob o primado da liberdade, no Brasil, o sindicato sofreu forte influência autocrática. Este sistema sindical implantado na era Vargas gerou graves consequências ao sindicalismo brasileiro, como a manutenção da unicidade sindical, da divisão dos trabalhadores em categorias, do poder normativo da Justiça do Trabalho e da contribuição sindical compulsória. A unicidade sindical constitui afronta ao princípio da liberdade sindical, pois somente permite a criação de um único sindicato representante de categoria em determinado território, impedindo o Brasil de ratificar a Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A divisão dos trabalhadores em categorias favorece o sistema de unicidade, pois é o que delimita a abrangência subjetiva da representação sindical, descabendo esta classificação em um cenário de liberdade sindical. Por sua vez, o poder normativo da Justiça do Trabalho, nascido da vontade do Estado corporativista de eliminar qualquer conflito de classes, é também prejudicial à liberdade sindical, pois restringe a negociação coletiva, entrando em aparente conflito com a Convenção nº 98 da OIT. Por fim, a contribuição sindical obrigatória, condição para a existência da unicidade sindical, retira do sindicato a responsabilidade de contrapartida diante dos seus representados, uma vez que independe destes para existir. Todos esses elementos contrariam o espírito democrático intencionado pela Constituição de 1988, porém permanecem em pleno vigor no cenário jurídico nacional.


INTRODUÇÃO

O presente artigo é um estudo sobre os principais institutos remanescentes da época da implantação das bases jurídicas do sindicalismo no Brasil, os quais atravancam a atuação do princípio da liberdade sindical, consagrado em convenções internacionais adotadas pela maioria dos países democráticos.

Neste contexto, é de fundamental importância a análise das razões de manutenção do atual sistema jurídico de sindicalismo adotado no País, perpassando pelo desenvolvimento do sindicato no contexto internacional e, obrigatoriamente, pela filosofia corporativista que inspirava o Estado Novo de Vargas, o qual normatizou e fundou as bases do sindicato brasileiro. Verificam-se, no mesmo diapasão, algumas conveniências históricas que justificaram o desinteresse dos governos ulteriores a Vargas em modificar o modelo de sindicato implantado por este.

Buscou-se, após, demonstrar que o monismo ou a unicidade sindical, sistema vigente no Brasil, considerado incompatível com o princípio da liberdade, sobreviveu à onda democrática impingida pela Constituição da República de 1988, e quais as repercussões que este fenômeno gera nas classes laborativas profissionais.

Ainda dentro do contexto da unicidade sindical, procurou-se evidenciar como o modelo de categorias, seguindo a proposta corporativista da era Vargas, ao compartimentar as classes de trabalhadores em balizamentos preestabelecidos, favoreceu a existência do sistema monista de sindicalismo.

Em continuidade, a pesquisa pretendeu demonstrar que subsiste no Judiciário Trabalhista brasileiro o instituto do poder normativo, que obstaculiza a negociação coletiva ao substituir a vontade das partes por uma decisão que cria direitos, malgrado a imensa importância dada pela Organização Internacional do Trabalho à livre negociação coletiva, como uma das condições para a plena liberdade sindical. Introduz-se, neste ponto, a intenção do legislador constituinte derivado de mitigar este instituto, ao trazer ao mundo jurídico o requisito do "comum acordo" para o ajuizamento de dissídios coletivos de natureza econômica, através da Emenda Constitucional n. 45/2004.

Em seu crepúsculo, o trabalho expõe a contribuição sindical obrigatória, principal fonte de receita das entidades sindicais, outro instituto símbolo do corporativismo da era Vargas, que permaneceu no universo jurídico pátrio por dicção expressa da Carta Magna de 1988. Demonstra-se como a referida contribuição, por ser compulsória, é interdependente para com a unicidade sindical, e, além de tornar questionável a legitimidade da representação sindical, retira do dirigente dos sindicatos a responsabilidade sobre os rumos da entidade diante dos membros da categoria.

O estudo do tema e das questões analisadas em torno deste justifica-se pelo fato de que o modelo jurídico sindical brasileiro, tido como retrógrado pela quase unanimidade dos doutrinadores, poderia garantir mais e melhores direitos trabalhistas aos seus titulares caso se livrasse de sua tradição autocrática – com inspiração corporativista –, coadunando-se com o princípio da liberdade sindical na organização das entidades de representação profissional e patronal. Outrossim, destaca-se a flagrante necessidade de se incutir no ordenamento jurídico pátrio a noção de responsabilidade das direções classistas, hodiernamente suprimida pelos mecanismos jurídicos autoritário-corporativistas remanescentes na Carta de 1988. Afinal, a inserção no cenário jurídico brasileiro do princípio da liberdade sindical, tal como previsto nas Convenções nos 87 e 98 da Organização Internacional do Trabalho, traria imensos avanços democráticos aos titulares de direitos trabalhistas, bem como estaria em convergência com os demais princípios constitucionais, assegurando uma maior homogeneidade da Carta Magna e, consequentemente do sistema jurídico brasileiro.

A pesquisa que precedeu este trabalho teve como ponto de partida o pressuposto de que a configuração jurídica atual do sistema de organização sindical brasileiro, tendo mantido a mesma estrutura básica da época de sua criação, está em contradição com os princípios constitucionais democráticos, bem como impediu que o Brasil ratificasse as principais Convenções internacionais sobre liberdade sindical.

Visando um trabalho objetivo, cujo objeto de estudo seja bem delineado, o presente artigo dedica-se, especificamente, ao conjunto de regramentos e princípios do Direito do Trabalho e Sindical brasileiros e do próprio modelo de organização do sistema sindical adotado no País, e sua contradição diante do espírito democrático da Constituição da República de 1988. Sobre tal tema há vasta manifestação doutrinária, contando-se ainda com as normas jurídicas que regulamentam e dão forma ao modelo sindical brasileiro, e as Convenções internacionais que o Brasil se viu impedido de ratificar ante este modelo.


CAPÍTULO I

RAZÕES DE MANUTENÇÃO DA ATUAL ORGANIZAÇÃO SINDICAL BRASILEIRA

É consenso que a organização sindical brasileira é considerada de cunho autoritário e sob forte influência estatal, mesmo após a promulgação da Carta Magna de 1988. Com toda a certeza, o advento da Constituição Cidadã significou imenso avanço no processo de democratização do sindicato no Brasil. Contudo, as associações coletivas de trabalho brasileiras ainda trazem em si o ranço do corporativismo.

É de suma importância analisar a manutenção do sistema de organização sindical brasileiro, que se manteve extremamente próximo de suas origens, até a Constituição de 1988, e, após, como dito, ainda manteve alguns traços autoritários.

Para tanto, cumpre estudar, ainda que muito superficialmente, as origens do sindicalismo no mundo e como este fenômeno se desenvolveu no Brasil.

Pode-se dizer com segurança que a associação de trabalhadores para a defesa de interesses coletivos surgiu com a consolidação do capitalismo, acompanhado de seu baseamento ideológico, o liberalismo. De fato, o surgimento do sindicato, tal como concebido hodiernamente, está fixado na Inglaterra, no contexto de desenvolvimento da revolução industrial e da sociedade capitalista, daí espalhando-se para o restante da Europa Ocidental, norte dos Estados Unidos e, tempos depois, para outras partes do mundo (DELGADO, 2007).

O corolário do liberalismo era a autodeterminação individual, podendo o homem dispor completamente de sua vontade para estabelecer praticamente qualquer forma de contratação, sendo vedada a interferência estatal no conteúdo da avença entre particulares.

Aproveitando-se desta filosofia, a classe burguesa industrial estabelecia condições precárias de trabalho, baixíssima remuneração, jornadas excessivas, em ambientes muitas vezes insalubres e/ou perigosos, sem descanso semanal regular nem diferenciação entre o trabalho masculino, feminino e infantil, tudo contando com a plena "concordância" da outra parte do contrato, somando-se a leniência do aparato Estatal.

É que, de seu lado, o trabalhador não tinha muita opção a não ser aceitar as condições extremamente desfavoráveis impostas pelo patronato, pois a necessidade de obter o pão-de-cada-dia ainda era premente. Era se submeter à exploração desumana ou recorrer à mendicância, à prostituição, ao crime.

Tudo isso, relembre-se, baseado em uma propalada (e demagógica, diga-se de passagem) liberdade individual de contratação, sagrada conquista das revoluções burguesas. Os que se libertaram do jugo absolutista não se davam conta – ou não queriam admitir abertamente – que submetiam aqueles que laboravam para o incremento de sua riqueza à mesma humilhação que sofreram seus ancestrais.

Essa liberdade – no frio conceito liberalista – acabou se tornando elemento escravizador dos hipossuficientes, pois era apenas formal, distanciando-se cada vez mais da realidade. O Estado, de sua parte, abstinha-se completamente de intervir, vez que, fazer isso significava uma violação da liberdade de contratar, inadmissível pela ideologia liberal. Segundo Segadas Vianna (MARANHÃO, SÜSSEKIND, VIANNA, 1987, p. 32):

Em nome da liberdade, que não podia sofrer restrições sob o pretexto da autonomia contratual, abstinha-se, entretanto, o legislador de tomar medidas para garantir uma igualdade jurídica que desaparecia diante da desigualdade econômica. O nível de capacidade legal de agir, de contratar, em que se defrontavam operário e patrão, ambos iguais porque ambos soberanos no seu direito, cedia e se tornava ficção com a evidente inferioridade econômica do primeiro em face do segundo. Se a categoria de cidadão colocava os dois no mesmo plano de igualdade, não impedira essa igualdade, como alguém observou, que o cidadão-proletário, politicamente soberano no Estado, acabasse, economicamente, escravo na fábrica.

Na mesma linha, ensina Luis Ivani de Amorim Araújo (ARAÚJO, 1995, p. 12):

Com a liberdade de escolher o trabalho, surgiu o choque entre os que eram economicamente fortes contra os que eram débeis. E veio a fome, com o desemprego. O operário continuou a ser escravo – apesar da aparente liberdade e igualdade. Livrara-se da aristocracia de sangue para cair no jugo impiedoso da plutocracia. A opressão era a mesma, mudando apenas os opressores. Os que possuíam uma situação econômica melhor ou superior ao outro contratante, podiam impor a sua vontade, o que importava à parte economicamente mais fraca em aceitar as imposições do mais forte ou recusá-las e ficar impossibilitada de viver num mundo em que as competições e a luta pela vida eram verdadeiros dogmas.

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Assim, como se pode supor, o sindicato, antes mesmo do nascimento formal do Direito do Trabalho, advém como forma de resistência coletiva – visto que a resistência individual mostrou-se inócua – frente à massificação do mundo do trabalho nas fábricas.

A título de observação, pode-se afirmar que o Direito Coletivo do Trabalho surgiu antes mesmo do Direito Individual. É que as normas de proteção individual do contrato de trabalho e do trabalhador – aqui, excluindo-se o panorama brasileiro, por enquanto – tiveram origem nas reivindicações dos grupos de trabalhadores que, sufocados pela exploração desenfreada, pressionaram, a duras penas, a classe industrial e mesmo o Estado por melhores condições de vida e labor.

Uma vez surgidos da luta por seus direitos, os sindicatos dos países capitalistas centrais se fortaleceram através da luta e conquista de mais e mais direitos e, após um primeiro período de proibição e até mesmo de criminalização de suas atividades – tidas como "sedição" ou "conspiração" –, foram logo reconhecidos, tolerados e legitimados como associações de representação de trabalhadores. Posteriormente, em uma fase de maior afirmação sindical, traçou-se o reconhecimento do direito de coalizão e livre organização.

É claro que o desenvolvimento do sindicalismo, em termos de liberdade de atuação e autonomia organizacional, em cada país, não poderia se divorciar do desenvolvimento da respectiva sociedade em que se insere. A fim de melhor ilustrar a afirmação supra, recorre-se novamente aos ensinamentos de Maurício Delgado (DELGADO, 2007, p. 1357):

A evolução sindical nos países capitalistas centrais demonstra uma clara linha de coerência entre o processo de democratização daquelas sociedades e Estados com o reconhecimento e resguardo dos direitos e princípios da livre e autonômica associação sindical. Essa mesma linha evolutiva demonstra, porém, que as regressões políticas autoritárias eventualmente ocorridas em países europeus sempre se fizeram acompanhar do implemento de regras jurídicas inviabilizadoras ou restritivas desses princípios e direitos sindicais – o nazi-fascismo e o corporativismo são exemplar prova de tais conclusões.

Realmente, a evolução do pensamento democrático repercutiu diretamente na forma de existência dos sindicatos, sendo eventualmente reprimidos por conta de períodos autoritários de exceção, mas logo libertados com o retorno da democracia.

Assim se deu o desenvolvimento dos sindicatos nos países capitalistas centrais. No Brasil, porém, a história foi outra.

Dificultoso conceber que o sindicalismo no Brasil tenha se desenvolvido no mesmo ritmo e pujança dos países centrais, pois a história econômica daqueles é completamente divorciada da brasileira.

Enquanto a Inglaterra vivia o princípio da revolução industrial, o Brasil era colônia, com economia – atrelada ao domínio português – baseada na exploração da monocultura, com o escravismo sendo a esmagadora expressão de uma "classe trabalhadora" nacional.

Depois, quando se estava consolidando o capitalismo nos países centrais, e lá começavam a surgir as primeiras associações de trabalhadores, o Brasil, em que pese não ser mais colônia portuguesa, tinha as suas bases econômicas na monocultura cafeicultora, dominada por uma restrita oligarquia, e sustentada, ainda, no trabalho escravo.

Destarte, quando o sindicalismo internacional já se encontrava praticamente consolidado, no Brasil dava-se ainda os primeiros passos de seu surgimento, pois, somente no quartel final do século XIX a escravidão foi extirpada do contexto nacional. E, como se sabe, só se pode falar em associação de trabalhadores para fins de reivindicação de direitos em um cenário de trabalho livre.

Porém, da mesma forma que o cenário para a implantação do sindicalismo fora o setor industrial urbano, e considerando que no Brasil recém saído do regime imperial, a indústria era deveras incipiente, o sindicalismo pátrio era igualmente esparso. Relata Maurício Delgado (DELGADO, 2007, p. 1358) que

As primeiras associações de trabalhadores livres mas assalariados, mesmo que não se intitulando sindicatos, surgiram nas décadas finais do século XIX, ampliando-se a experiência associativa ao longo do início do século XX. Tratava-se de ligas operárias, sociedades de socorro mútuo, sociedades cooperativas de obreiros, enfim diversos tipos de entidades associativas que agregavam trabalhadores por critérios diferenciados. Na formação e desenvolvimento dessas entidades coletivas teve importância crucial a presença da imigração européia, que trouxe idéias e concepções plasmadas nas lutas operárias do velho continente.

No caso brasileiro, o desenvolvimento do sindicalismo nos moldes europeus era ainda deveras prejudicado, além do fato de a economia concentrar-se no setor rural, mas também pela imensidão do território, no qual, sem sistemas comunicação e transporte eficientes, impossibilitavam a articulação para a formação de associações de classe fortes. Comentando sobre o assunto, e fazendo referência ao Tratado de Versailles, de 1919, que criou a Organização Internacional do Trabalho, leciona Arnaldo Süssekind (SÜSSEKIND, 1995, p. 362):

Condições histórico-sociológicas explicam a fragilidade do sistema sindical de então: uma economia preponderantemente rural, que contou com o trabalho escravo até 1888, num território de dimensões continentais sem intercomunicação adequada, não poderia ensejar a organização de sindicatos poderosos, capazes de lutar, com êxito, pela aprovação de leis sociais concernentes aos princípios consagrados em Versailles. Sindicatos fortes pressupõem intenso espírito sindical e este constitui um dado sociológico que emana das grandes concentrações de trabalhadores, de difícil configuração nas atividades rurais.

Neste cenário de sindicalismo em fase de desenvolvimento, ocorreu a Revolução de 1930, sob o comando de Getúlio Vargas, fato histórico determinante para o sindicalismo no Brasil.

Adotando uma ideologia claramente fascista, que desaguou na importação do modelo corporativista italiano, Vargas, aproveitando-se da organização insipiente dos sindicatos, legitimou-os, trabalhando para que fossem verdadeiros braços do Estado em meio às lideranças obreiras.

Para um trabalhador, organizar um sindicato – associação de luta coletiva – era praticamente traçar seu destino na empresa. Vargas acabou por legitimar este direito, atrelando, porém, o sindicalista ao Estado, seu domínio. Era, forçoso dizer, a manifestação clara da cultura do favor: concessão estatal em troca da dominância institucional.

Este controle estatal se manifestava através de mecanismos legais, tais como a necessidade de concessão de carta de reconhecimento, a ser expedida pelo Ministro do Trabalho – pelo Poder Executivo, portanto –, a fim de tornar possível a atuação sindical (vide art. 520 da Consolidação das Leis do Trabalho).

Da mesma forma, foi fundamental para o domínio de Vargas a implantação da unicidade sindical, isto é, a proibição de existência de mais de um sindicato representativo de determinada categoria em um certo território. De fato, seria extremamente difícil o controle estatal sobre uma categoria se os trabalhadores daquele espaço geográfico pudessem criar livremente novos sindicatos a cada vez que se sentissem oprimidos ou titerizados pelo governo.

Na verdade, este domínio era velado. O que exsurgia dos decretos e dos discursos varguistas era o grande fortalecimento do sindicato, com a transferência para ele de prerrogativas estatais (a título de exemplo, o antigo imposto sindical). Informa o mestre Mozart Victor Russomano (RUSSOMANO, 1998, p. 32):

As estatísticas da época indicam que, promulgado o decreto em março de 1931, no mês de junho do mesmo ano, haviam sido expedidas mais de quatrocentas cartas a sindicatos de trabalhadores e mais de setenta a sindicatos de empresários. Abria-se uma fase nova, na qual, entretanto, era visível – como foi dito, com seriedade e entusiasmo, pelos mais autorizados intérpretes da época – a intenção de retirar o sindicato da esfera privada, para considerá-lo pessoa de direito público, investida de poderes inerentes ao Estado.

Entretanto, a intenção, historicamente comprovada, era manter a "paz social" através do controle das classes de trabalhadores. Estas, classificadas, categorizadas, ordenadas, separadas e organizadas ao bel prazer do Estado, podendo atuar somente entre as balizas legais que este lhe permitia, e, enfim, contando na mais das vezes, com lideranças pelegas, garantiam o sossego do estadista, que poderia "tocar o barco" dos seus domínios sem grandes aborrecimentos.

Na filosofia autoritária do fascismo, a liberdade de associação era sinônimo de instabilidade social, pois, se descoberta a opressão camuflada a que eram submetidas, lideranças libertárias poderiam tentar retomar o poder – como, aliás, os líderes nazi-fascistas haviam feito, em nome de uma cínica proteção do povo.

Contudo, a cultura sindical implantada por Vargas entranhou profundas raízes nas classes associativas brasileiras, as quais introjetaram este modus operandi ao longo dos anos. Todo o arcabouço do sindicalismo varguista sobreviveu ao seu supremo patrono, espraiando-se pelas décadas subsequentes.

Impossível não se referir, aliás, à fortíssima contribuição do regime estabelecido pelo Golpe de 1964 para a consolidação da perversão do sindicalismo no Brasil.

Pode-se afirmar com segurança que a cultura sindical de Vargas foi extremamente conveniente para o regime totalitário iniciado em 1964 pelo setor militar. É que, com a forte repressão impingida aos líderes sindicais que lutavam de fato por melhores condições para as suas categorias, bem como por uma maior liberdade de atuação e reivindicação, o caminho ficou livre para o fortalecimento de lideranças sindicais títeres, isto é, que não causavam agitação política, aceitando de bom grado o pouco bocado que lhes era oferecido, agindo, novamente, como braços do governo entre as classes profissionais.

Bom observar que era bastante simples para o governo de exceção identificar e desqualificar as lideranças sindicais verdadeiras perante a opinião pública, pois, considerando os movimentos reivindicatórios (greves, paralisações e passeatas, por exemplo), bastava estigmatizar os que os promoviam como "agitadores", "subversivos", "comunistas" e até mesmo "terroristas", e, sob o método do medo, afastar a massa ignara do conhecimento do principal objetivo do sindicato, que é a luta por melhores condições laborativas.

Até os dias de hoje este ranço permanece, eis que a primeira reação do público em geral diante de uma greve ou movimento similar é de aversão, repúdio, sem nem mesmo querer tomar conhecimento do porquê nem do que é reivindicado.

É claro que, como se sabe, a opressão não se limitava à simples desqualificação midiática desses líderes sindicais; o caráter violento e perverso da ditadura militar acabava redundando em prisões ilegais, torturas, desaparecimentos e assassinatos (quase sempre travestidos de "morte em tiroteio contra a polícia", "atropelamento" etc.). Enfim, o que interessava era a eliminação definitiva das "ameaças ao país".

Com os líderes fora do caminho, abriu-se espaço para os títeres. E cada vez menos a comunidade de trabalhadores via o sindicato como meio de luta (esta era considerada pelo senso comum como inútil, impossível, errada, ou até mesmo surreal). O sindicato tornou-se uma incógnita para o trabalhador, pois existia – isto era inegável –, mas para quê? O sindicato, para o trabalhador, se parecia cada vez mais com o governo: somente se fazia presente para arrancar dinheiro, sendo que todo ano seu contracheque vinha descontado o imposto sindical. Esse, por sua vez, se assemelhava com os impostos governamentais: só "enchiam a barriga" de corruptos aproveitadores, mas nada havia que se pudesse fazer contra.

Assim como acontecia com o governo, o aspecto democrático do sindicato estava perdido, embora ainda existisse formalmente. E isto favoreceu a permanência longeva de um mesmo grupo de dirigentes sindicais, os quais, naturalmente, sentiam-se donos da entidade. Pior, eram vistos pela categoria como detentores deste status. Obviamente, isto arrefeceu ainda mais o interesse do trabalhador pelo sindicato, eis que sabia que estava "por sua própria conta", não podendo contar com a associação para lhe auxiliar.

Muitas vezes, o sindicalista, sem mesmo tomar conhecimento de seu papel, assume uma posição de poder, puro e simples. Poder sobre a categoria, que fique claro. Estando a cultura do modo de agir da classe política nacional arraigada no senso comum popular, o exercício deste poder é expressado pela prática descarada do clientelismo, do paternalismo, do favor.

Um dos traços característicos deste poder é a confusão entre espaços público e privado. Ora, o espaço da atuação sindical é público, no sentido em que interessa não apenas à diretoria da entidade sindical (que é – ou deveria ser – transitória), mas sim à toda a coletividade de trabalhadores da mesma categoria. Contudo, incorporando novamente a cultura que sempre foi praticada pelos detentores do poder no Brasil, muitos sindicalistas, pervertendo o mandato que lhes foi outorgado, sentem-se donos do sindicato e quiçá da categoria como um todo.

E, fazendo uso do "seu" poder, recorrem, como já aventado, à deplorável prática do clientelismo, do paternalismo e do favor, como bem expressa Mériti de Souza (SOUZA, 1999, p. 116):

A tática do clientelismo, em sociedades como a brasileira, é a de ampliar a sua clientela, colocando o maior número possível de clientes, numa estratégia diferente da adotada nas sociedades tradicionais, onde os eleitos se reduzem a poucas e definidas pessoas. O patrono, ao se utilizar das instituições e máquinas democrático-representativas, detém o monopólio dos benefícios, podendo administrá-los, orientado pela demanda. Ele mantém um número grande de clientes em potencial, mantidos nessa condição pela esperança de, no futuro, virem a usufruir dos benefícios patronais. Assim, a manipulação da clientela é eficaz e pode durar muito tempo, pois mantém um grande número de eventuais clientes na esperança de serem agraciados com os favores do patrono.

É dessa forma clientelista que o sindicato foi sendo visto pela sociedade e, mais ainda, pelos membros da categoria. O sindicato era, muitas das vezes, uma forma de trocar favores por benefícios, ou, ainda, uma instituição paternalista, que dava esmolas (aqui no sentido figurado, querendo significar indicações de empregos, cestas básicas e outras pequenas benesses) em troca de sua permanência no poder. A conscientização da categoria quanto ao real papel do sindicato seria, portanto, um verdadeiro veneno para esse tipo de sindicalista.

Com o fim do regime ditatorial militar, culminando na promulgação da Carta Magna de 1988, um sensível avanço se verificou para a democratização do sindicalismo brasileiro. Porém, a cultura trabalhada pelos governos anteriores e impingida ao senso comum popular já estava por demais entranhada no pensamento nacional. E não se modifica a cultura e os costumes de um povo com um simples traço de caneta.

Deste modo, setores representativos deste sindicalismo tradicional brasileiro conseguiram sem qualquer dificuldade a permanência das principais bases corporativistas que davam forma ao modelo surgido na época de Vargas. Isto é, no art. 8º da Constituição de 1988 estão presentes a unicidade sindical, a contribuição obrigatória descontada em folha (uma nova versão do imposto sindical), a divisão em categorias, a obrigatoriedade da participação do sindicato na negociação coletiva. Por outro lado, o principal avanço verificado foi a proibição de intervenção do Estado nas entidades sindicais.

Todos esses fatores histórico-sociológicos se conformam para desenhar o atual quadro do sindicato e do sindicalismo no Brasil.

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Sobre o autor
Pablo Fernandes dos Reis Sardinha

Advogado/Consultor Jurídico.Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho (IAVM/UCAM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARDINHA, Pablo Fernandes Reis. Os entraves constitucionais à aplicação do princípio da liberdade no sistema sindical brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2657, 10 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17579. Acesso em: 5 nov. 2024.

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