Segundo noticiado nos jornais dos últimos dias, o genro do Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), teria sido contratado por alguns políticos com processos naquela Corte e no TSE, por um bom montante em honorários advocatícios, com o intuito de fazer com que o Ministro se visse obrigado a se declarar suspeito ou impedido em determinados processos.
Não se questiona aqui a honra ou a probidade do Ministro. Creio que as investigações demonstrarão a verdade e identificarão os culpados. Mas o caso nos permite uma breve análise dos institutos do impedimento e da suspeição no STF e nos Tribunais Superiores, e desfazer alguns equívocos sobre o tema na imprensa (esses em menor grau) e na própria jurisprudência dos Tribunais de Brasília (data venia, o que é de se lamentar).
As regras sobre impedimento e suspeição, tanto no Código de Processo Civil (CPC), como no Código de Processo Penal (CPP), diferem ligeiramente, chegando até mesmo os institutos a mudaram de nome de um Código a outro (o que é suspeição num Código pode ser impedimento num outro, e vice-versa) [01].
Tomemos, para auxiliar-nos na análise pretendida, uma reportagem da Folha de São Paulo do dia 02/10/2010 intitulada "Genro de ministro atuou para ex-senador" [02], onde se relata que este afim do Ministro Ayres Britto teria cobrado honorários de vulto para defender um ex-senador barrado pela Lei da Ficha Limpa (LC n˚ 135/2010).
Segundo trecho da reportagem:
"No ano passado, Britto foi sorteado relator de um inquérito no Supremo que investiga Expedito. Uma semana depois, Borges entrou na causa e obrigou o ministro a se declarar impedido [03].
Podemos afirmar com certeza que, malgrado o notório saber jurídico do Min. Ayres Britto, uma melhor leitura dos artigos do CPC e do CPP mencionados acima bastariam para que o Ministro não se declarasse impedido e prosseguisse no feito como Relator, devendo seu genro, este sim, declinar da atuação na causa.
No aludido caso o feito foi distribuído ao Min. Ayres Britto, e o ingresso do advogado (seu genro) se deu a posteriori.
Caso o feito fosse uma causa cível, segundo o parágrafo único do art. 134 do CPC, o Min. Ayres Britto, ao ver ingressar na causa o seu genro, não deveria se declarar impedido. Seu genro, sim, é que estava proibido de atuar no processo, pois iria criar o impedimento do juiz, o que é vedado pela referida norma.
Em sendo o feito em questão regido pelo CPP, e tendo o Min. Britto ingressado primeiro na causa, a situação se resolveria pela interpretação sistemática do art. 256 do CPP, que veda o reconhecimento de suspeição (aqui estendida a regra para uma hipótese de impedimento) quando a parte de propósito der motivo para criá-la (o investigado Expedito Junior, aqui, criou o impedimento ao contratar o advogado Adriano José Borges Silva, genro do Ministro, para defendê-lo). Caberia aqui até mesmo uma analogia com o art. 134, par. único do CPC, pois o advogado não poderia ingressar no feito a fim de criar impedimento ao juiz.
Veja-se então que, no caso concreto, o Min. Ayres Britto, involuntariamente [04], cometeu um erro na aplicação do CPP. Não era ele que deveria ter se dado por impedido. A legislação vigente bastava (quiçá com um ligeiro esforço hermenêutico) para que ele vedasse ao seu genro o ingresso no feito. O seu genro não deveria ter aceitado procuração para atuar no caso, ciente de que seu sogro era o relator da ação.
Inverta-se um tanto a situação. Vamos supor que, seja o processo em questão cível ou criminal, que o genro do referido Ministro esteja como advogado atuando no feito desde o início, e a ação seja distribuída ao Min. Ayres Britto. Segundo os artigos mencionados do CPC e do CPP, deveria o Ministro se declarar impedido ou é seu genro que sequer deve atuar em feito que será distribuído ao STF?
Note-se que, dependendo da resposta a esta pergunta (o Ministro não se declara impedido, o que impede a atuação do seu genro na causa) responder-se-á também, por via oblíqua, se o genro do Ministro poderá atuar, de forma geral, no STF enquanto seu sogro for Ministro [05].
A melhor resposta, a dar-se uma leitura sistemática ao nosso ordenamento jurídico, é que os advogados impedidos de atuar por parentesco não poderão fazê-lo no STF enquanto o Ministro que causar a vedação não se afastar do Tribunal.
O STF tem apenas 11 Ministros. A composição do STF é informação notória, facilmente consultável no site do STF. Qualquer advogado, ao atuar no STF, sabe que tem 1/11 de chances de que seu processo será relatado por um dado Ministro. Não há surpresas...
Além do mais, os Ministros do STF não tem substitutos [06], ao contrário dos juízes de primeira instância ou de Tribunais ordinários. Um parente [07] de Ministro que atue como advogado no STF sabe de forma inequívoca que o Ministro em questão não poderá ser relator ou mesmo votar no que caso em que atue, com graves prejuízos à formação do quórum de votação, ou mesmo afastando compulsoriamente um Ministro cuja posição é conhecida por seus muitos votos e opiniões.
Em determinadas votações relevantes no STF, como a de matéria constitucional (Art. 22, Lei 9.868/99, RISTF, art. 143, par. único), o quórum é de oito Ministros, ou de 2/3 dos Ministros (Art. 8 da Lei 9882/99, que trata da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF]).
Ora, logo se vê que o ingresso de um advogado em feito perante o STF, em havendo um Ministro que deverá declarar-se impedido, seja antes ou após a distribuição da ação, reduzindo em 1/11 o quórum necessário para votação, tolhe de maneira relevante o funcionamento do Tribunal, já que não há substitutos para os Ministros no Pleno [08].
A melhor leitura a ser dada ao ordenamento jurídico, em que pese drástica para a Advocacia, é a de que parentes de ministros do STF não poderão advogar perante aquela Egrégia Corte enquanto nele atuar o parente causador da vedação. Ponto.
Em que pese ser barreira profissional de relevo, nenhuma parte com processos perante o STF será prejudicada com a vedação, já que a advocacia nacional tem inúmeros substitutos igualmente qualificados para quaisquer dos advogados que sejam atingidos pela medida.
Os advogados tampouco serão prejudicados, pois ainda possuirão vasto campo de atuação em todas as demais Cortes e Juízos do território nacional, e em todos os ramos do Direito, inclusive na advocacia consultiva. Caso uma de suas causas, pela via recursal, alcance o STF, será necessário substabelecer a causa, com mínimo prejuízo.
Em que pese juízes e advogados possuírem o mesmo peso na administração da Justiça, é preciso considerar que temos apenas 11 Ministros no STF, e que estes não têm outro local de atuação, enquanto que os advogados possuem mais opções, e não necessariamente precisam atuar numa Corte onde causarão um transtorno no julgamento das causas, ou mesmo darão margens à insinuações indevidas, como as ocorridas no caso discutido.
A prioridade de permanência no feito deve ser do Ministro, até em respeito ao princípio do juiz natural.
Os Tribunais Superiores, por sua vez, que possuem um número também limitado de Ministros, também podem se beneficiar da interpretação acima preconizada, priorizando-se sempre a permanência do juiz nos feitos, e não o contrário.
Em suma, a mera aplicação do art. 134, par. único do CPC, e do art. 256 do CPP, sem qualquer necessidade de ulterior alteração legislativa, bastará para que se dê às regras de suspeição e impedimento destes Códigos a leitura apropriada, isto é, de que a prioridade de permanência nos feitos sempre será dos Ministros (sejam como Relatores ou como meros votantes), e não dos advogados constituídos, sejam a procuração outorgada antes ou após a distribuição do feito [09].
Essa é o melhor entendimento a ser dado aos princípios da Administração Pública previstos no art. 37 da Constituição Federal, e ao trecho inicial do art. 5˚, caput, também da Constituição: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer espécie...".
BIBLIOGRAFIA
LEITÃO, Matheus; ODILLA, Fernanda; SELIGMAN, Felipe. Genro de ministro atuou para ex-senador. Folha de São Paulo. P. Especial n. 5. 02/10/2010.
Notas
- As regras de impedimento e suspeição, no CPC, são as seguintes:
Seção II Dos Impedimentos e da Suspeição
Art. 134. É defeso ao juiz exercer as suas funções no processo contencioso ou voluntário:
I - de que for parte;
II - em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito, funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento como testemunha;
III - que conheceu em primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido sentença ou decisão;
IV - quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha reta; ou na linha colateral até o segundo grau;
V - quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das partes, em linha reta ou, na colateral, até o terceiro grau;
VI - quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica, parte na causa.
Parágrafo único. No caso do nº IV, o impedimento só se verifica quando o advogado já estava exercendo o patrocínio da causa; é, porém, vedado ao advogado pleitear no processo, a fim de criar o impedimento do juiz.
Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:
I - amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes;
II - alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau;
III - herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de alguma das partes;
IV - receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio;
V - interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes.
Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.
Art. 136. Quando dois ou mais juízes forem parentes, consangüíneos ou afins, em linha reta e no segundo grau na linha colateral, o primeiro, que conhecer da causa no tribunal, impede que o outro participe do julgamento; caso em que o segundo se escusará, remetendo o processo ao seu substituto legal.
Art. 137. Aplicam-se os motivos de impedimento e suspeição aos juízes de todos os tribunais. O juiz que violar o dever de abstenção, ou não se declarar suspeito, poderá ser recusado por qualquer das partes (art. 304).
impedimento e a suspeição, segundo o CPP, são institutos regidos pelas seguintes normas:
Art. 252. O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que:
I - tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial, auxiliar da justiça ou perito;
II - ele próprio houver desempenhado qualquer dessas funções ou servido como testemunha;
III - tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;
IV - ele próprio ou seu cônjuge ou parente, consangüíneo ou afim em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.
Art. 253. Nos juízos coletivos, não poderão servir no mesmo processo os juízes que forem entre si parentes, consangüíneos ou afins, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive.
Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:
I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;
II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;
III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;
IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;
V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;
Vl - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.
Art. 255. O impedimento ou suspeição decorrente de parentesco por afinidade cessará pela dissolução do casamento que Ihe tiver dado causa, salvo sobrevindo descendentes; mas, ainda que dissolvido o casamento sem descendentes, não funcionará como juiz o sogro, o padrasto, o cunhado, o genro ou enteado de quem for parte no processo.
Art. 256. A suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la.