4. Creditamento do Ativo Permanente e dos materiais de uso e consumo
Como visto acima a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, firmada em 2007, entende que não há direito a crédito presumido na hipótese de insumo desonerado na entrada do estabelecimento industrial.
Já no que pertine ao direito de creditamento real, na hipótese de produto desonerado na saída do estabelecimento industrial, viu-se no item precedente que a Corte, em 2009, decidiu que antes da lei 9.779/99 também não havia direito a qualquer crédito, embora real, porquanto pago na entrada.
Ou seja, a não-cumulatividade constitucionalmente estabelecida pressupõe tributo pago nas duas pontas do processo produtivo.
Após resolver boa parte das questões referentes às desonerações, nas entradas e saídas do processo de industrialização, a Suprema Corte enfrenta atualmente, em relação ao IPI, o quê pode ser objeto do creditamento.
O qüiproquó reside na aquisição de bens tributados que sejam destinados ao ativo permanente. Tais bens não são diretamente envolvidos nas etapas de industrialização dos produtos posteriormente tributados.
Entretanto, sustentam os contribuintes que os bens do ativo permanente não deixam de ser insumos creditáveis apenas por não se incorporar ao produto final, ou ainda, pelo fato de o desgaste não ocorrer de forma imediata e integral durante o processo de industrialização, já que representam custo à produção.
Esta derradeira lide referente à compreensão do princípio da não-cumulatividade do IPI na atual jurisprudência do STF está baseado em 2 recursos, interpostos por contribuintes, pendentes de julgamento: recurso extraordinário 480.648, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, e recurso extraordinário 491.262 relatado pelo Ministro Gilmar Mendes.
Em nenhum deles houve, ainda, votação para o reconhecimento de repercussão geral das questões debatidas.
Nos autos do recurso 480.648, o acórdão recorrido, emanado da Egrégia 2ª Turma do Tribunal Federal da 5ª Região [99], decidiu que não há direito a creditamento do IPI em face da integração do ativo permanente. O parecer da Procuradoria Geral da República é pelo não conhecimento do recurso extraordinário e, se conhecido, pelo seu desprovimento.
Já no recurso extraordinário 491.262, o acórdão recorrido, proveniente da 2ª Turma do Tribunal Federal da 4ª Região [100], trilhou o mesmo sentido da decisão vergastada no recurso extraordinário 480.648, e, assim, também rechaçou ao contribuinte a pretensão de utilização de créditos do IPI na aquisição de bens destinados ao ativo permanente e materiais de uso e consumo da empresa. O parecer da Procuradoria Geral da República é pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
Note-se ainda que, neste recurso 491.262, o ministro Gilmar Mendes decidiu monocraticamente - com fulcro no artigo 557 Parágrafo 1º do CPC, no artigo 38 da lei 8038/90 e no artigo 21 parágrafo 1º do RISTF – o recurso em prol da Fazenda Nacional.
Entretanto, foi aviado pelo recorrente agravo regimental em que sustentado não restar pacificada a questão referente ao ativo permanente, materiais de uso e consumo, energia elétrica e serviços de comunicação no que pertine ao IPI, mas apenas em relação ao ICMS.
O relator, em razão disso, reconsiderou a decisão monocrática agravada para que o recurso tenha seu regular processamento.
Como é cediço, acordam governo e contribuintes que o princípio da não-cumulatividade aplica-se na aquisição de insumo onerado com o IPI diretamente envolvido na cadeia produtiva que resultará em produto industrializado sobre o qual incidirá o tributo na saída do estabelecimento industrial.
Entretanto, para além dessa zona evidente de possibilidade de creditamento há uma zona cinzenta em que o ativo permanente, os materiais de uso e consumo, além de energia elétrica e serviços de comunicação estão incluídos.
Querem os contribuintes que sejam abrangidos pela não-cumulatividade o ativo fixo, materiais de consumo, além de outras despesas que possibilitam a produção da empresa, enquanto que o governo entende que a possibilidade de creditamento está jungida apenas aos insumos imediatamente utilizados na industrialização dos produtos.
A Fazenda Nacional, como fizera nas discussões dos itens precedentes, sustenta que o direito de creditamento do IPI em face do ativo permanente reclama, por força dos arts. 150, § 6º, e 153, § 3º, IV, CF, a edição de lei federal específica concedendo esse benefício fiscal, assim como fez o artigo 11 da lei 9.779/99 [101].
Ou ainda, como visto supra, como estabelecera a lei 4.502/64, no parágrafo segundo de seu artigo 23, em relação ao ativo fixo, como um incentivo à indústria nacional.
Também em relação ao ativo permanente, a título de exemplo, da possibilidade de norma legal permitir o referido creditamento, lei complementar permitiu, sob limitação temporal, o creditamento de ICMS para bens do ativo permanente e liminar do Supremo Tribunal Federal entendeu constitucional a prática [102].
Isso porque, não deflui tão somente da técnica constitucional da não-cumulatividade essa benesse.
Destarte, mais uma vez, o pano de fundo da lide, como nas outras questões enfrentadas pela Suprema Corte, é saber se a ausência do direito de creditamento nessas hipóteses viola a técnica constitucional da não-cumulatividade.
A vontade constitucional no repúdio à tributação "em cascata" - que, no particular, incorpora uma dose indesejada de regressividade, por ser o IPI um imposto "indireto" - se dá somente no ato estrito da industrialização do produto, e que abrange, assim, apenas insumos efetivamente empregados e consumidos na industrialização de produto final, ou abrange outros gastos despendidos para industrializar produtos?
Saliente-se que, conforme notícia do Superior Tribunal de Justiça datada de 29 de setembro de 2009, a presente lide foi dirimida, sob a sistemática da lei dos recursos repetitivos, inscrita no artigo 543-C do Código de Processo Civil, na primeira seção do Tribunal com o julgamento do Recurso Especial 1075508.
Restou assentado, através do prisma infraconstitucional, que a aquisição de bens integradores do ativo permanente da empresa, ou de outros insumos que não se incorporam ao produto final, ou cujo desgaste não ocorra de forma imediata e integral durante o processo de industrialização, não gera direito a creditamento de IPI, nos termos do que dispõe o Decreto n. 4.544/02 [103].
Em tema de ICMS, por sua vez - em que há semelhanças com o IPI, especialmente no que pertine ao princípio da não-cumulatividade - as soluções judiciais do Supremo Tribunal Federal confirmam a tese fazendária [104].
Ou seja, elas entendem inexistente o desrespeito ao princípio da não-cumulatividade na hipótese de ausência de creditamento de tributo na aquisição de bens ao ativo permanente ou de materiais de uso e consumo da empresa cf., por exemplo, os julgados proferidos nos agravos de instrumento 460.422 [105] e 488.374 [106] além de diversos outros julgados no mesmo sentido [107].
Aliás, já há inclusive, várias decisões monocráticas, de quase todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, proferidas com supedâneo no artigo 557 Parágrafo 1º do CPC, no artigo 38 da lei 8038/90 e no artigo 21 parágrafo 1º do RISTF [108].
Entretanto, como dito, tais julgados dizem respeito ao ICMS.
No que pertine ao IPI, como visto, pode-se afirmar apenas que a tese fazendária já prevalece no Superior Tribunal de Justiça, e está uniformizada nos termos da lei 11.672/08, que cuida dos recursos repetitivos, e já tem, também, arestos dos cinco Tribunais Regionais Federais [109].
A mesma posição tem, também, sido adotada no contencioso administrativo-tributário federal, através do atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, cujas decisões resolvem os conflitos no sentido da impossibilidade de creditamento do IPI em face de ativo permanente, materiais de uso e consumo, energia elétrica e serviços de comunicação [110].
Nessa perspectiva, seja a jurisprudência do STF, em relação ao ICMS, seja as outras instâncias judiciais e administrativas em relação ao IPI a orientação é, mais uma vez, pela negativa do direito ao creditamento.
Isso porque não ofende o princípio da não cumulatividade a negativa de creditamento do ativo fixo e de materiais de uso e consumo, além de operações como consumo de energia elétrica, ou de serviços de comunicação.
Tais decisões representam demarcações à extensão pretendida pelos contribuintes na compreensão do princípio da não-cumulatividade, que, aceito de forma extensiva, imporia o referido direito ao creditamento.
Para os contribuintes, não haveria qualquer razão ontológica para permitir o creditamento para insumos utilizados e consumidos no processo produtivo e não para aqueles consumidos, ainda que indiretamente, na atividade, ou ainda, cujo desgaste ocorre paulatinamente.
O pretendido alargamento dos limites, a partir de compreensão ampliativa das disposições contidas nos artigos 153, § 3º, II, CF, e 49, do Código Tributário Nacional, embora vencida tanto na entrada de produtos desonerados, quanto na saída, repisa, nesta oportunidade, que o princípio da não-cumulatividade proíbe qualquer tipo de limitação ao reivindicado direito de creditamento.
Assim, sustentam a inconstitucionalidade da legislação infraconstitucional que veda o reivindicado creditamento do IPI na aquisição de bens e materiais integrantes do ativo permanente: Decreto n. 83.263/1979, Decreto n. 87.981/1982, Decreto n. 2.637/1998 e Decreto n. 4.544/2002 [111].
Mesmo que, no que se refere ao ativo permanente, a Constituição silencia, tanto para o IPI quanto para o ICMS, o ponto nevrálgico da argumentação, da perspicaz tese dos contribuintes, da mesma maneira que nas teses veiculadas nos itens precedentes, se refere ao distinguishing da redação do princípio da não-cumulatividade do IPI (art. 153, § 3º, II, CF) em relação ao ICMS (art. 155, § 2º, itens, CF).
Com efeito, no que toca ao IPI, como visto supra, o texto constitucional apenas diz que haverá compensação do que for devido em cada operação com o importe efetivamente cobrado nas operações anteriores.
Já no ICMS há redação mais restrita, com mais condicionantes para a aplicação da não-cumulatividade. Neste tributo, salvo lei dispondo em contrário, a isenção ou não-incidência, na entrada, não implicará creditamento para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes e acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
Como já discutido acima, a questão consiste em saber se foi proposital o silêncio? Se eloqüente caberia a interpretação contrario sensu ao IPI que levaria a uma extensão infinitamente maior do referido princípio da não-cumulatividade.
Assim, segundo os contribuintes, não poderiam dispositivos meramente regulamentares, restringirem direitos - que no caso são constitucionalmente assegurados - ao proscreverem o creditamento do IPI em face do ativo fixo e materiais de uso e consumo, em razão de o princípio da não-cumulatividade em relação ao IPI não enunciar as restrições que aparecem com as limitações do ICMS.
Entretanto, é certo que da leitura da Constituição vê-se que ela não traz tratamento diferenciado entre os itens que podem ser compensados para ambos impostos.
Assim, mesmo que o Supremo acolhesse a tese do silêncio eloqüente da não-cumulatividade do IPI na hipótese ora analisada ela seria anódina.
Isso porque a Carta silencia, no particular, em ambos impostos o que leva a crer que o Supremo Tribunal Federal adotará para o IPI o mesmo entendimento sedimentado para o ICMS.
A tese fazendária, em relação às supostas distinções, caminha, como visto acima, no sentido de que a ausência de limitações ao princípio da não-cumulatividade do IPI, em comparação com aquelas do ICMS, em face do creditamento na aquisição de bens isentos ou não tributados, não se presta a inferir um silêncio propositado, seja nas questões analisadas anteriormente, e, a fortiori na problemática do que pode ser compensado.
Esse tratamento semelhante deve ser corolário inclusive de um sistema tributário uno, que privilegie a ordem natural das coisas, como salientou o ministro Marco Aurélio Mello nos seus votos analisados acima.
Os contribuintes também invocam outros fundamentos em favor de suas pretensões.
Além da argumentação jurídica, já derrubada nos julgados precedentes da Corte Suprema, de que o princípio da não-cumulatividade do IPI tem amplitude irrestrita - e, em razão disso, os Regulamentos do IPI (Decretos ns. 83.263/1979; 87.981/1982; 2.637/1998 e 4.544/2002) vilipendiaram o princípio da não-cumulatividade do IPI, que é distinto em relação ao ICMS - há, ainda, um cotejo com a legislação do imposto de renda.
Os contribuintes lembram, no que se refere ao ativo permanente, da regra da depreciação dos bens do ativo fixo para fins de imposto de renda, segundo disposições contidas no art. 57 da Lei 4.506/64 e no art. 305 do Decreto 3.000/99 – Regulamento do Imposto de Renda [112].
Não se pode negar que a ratio do referido Regulamento é semelhante à pretensão deduzida em juízo. Afinal, tanto é custo que se incorpora no produto final, os insumos incorporados no produto, quanto a diminuição de valor dos bens do ativo fixo que se desgastam e desatualizam.
Assim, se há possibilidade de dedução do valor da depreciação dos bens do ativo imobilizado implicitamente, e logicamente, tem-se o necessário reconhecimento de que os mesmos são, por força de uma interpretação econômica do direito tributário - ou ainda, da prevalência de uma jurisprudência dos interesses em detrimento da jurisprudência dos conceitos - consumidos e incorporados às mercadorias industrializadas, ainda que mediatamente.
Nessa linha, assinalam que ao longo de sua existência, os bens do ativo permanente são consumidos e perdem gradativamente seu valor, até a sua total depreciação, de sorte que essa depreciação deva ser contabilizada como despesa operacional ou custo [113].
Assim, em razão das similitudes econômicas, e do disposto na legislação do imposto de renda, pedem tratamento similar na legislação do IPI, conferindo o respectivo direito de crédito, visto que tal tributo também integra o preço do produto vendido.
Fazem ainda referência às regras contábeis em redor da formação do lucro, dos custos e despesas, para extrair a necessidade de creditamento dos valores do IPI na aquisição de bens ao ativo permanente, sob pena de clara ofensa à não-cumulatividade, incidindo IPI sobre base de cálculo que já contém IPI.
Já a Fazenda Nacional rebate esse argumento prático, como fez nos julgados de 2007 e 2009, acima referidos, com argumentação formal, reverberando que para obter o referido creditamento, que, na hipótese se trata de benefício fiscal, nos termos do artigo 150, § 6º da Constituição, é necessária expressa determinação legal, porque o direito ao creditamento, in casu, não deflui da não-cumulatividade.
Os contribuintes alegam, ainda, a incidência de "tributo sobre tributo", que tornaria inconstitucional a vedação de creditamento em face do ativo permanente (que já pagara IPI quando adquirido).
Embora o IPI seja um imposto calculado "por fora", e assim, não está incluído no preço das mercadorias adquiridas, e o ICMS um imposto cobrado "por dentro" [114], com seu valor incluído no preço das mercadorias, a Fazenda rebate a tese com base na jurisprudência do STF que afastou essa tese, no ICMS, no julgamento do RE 212.209 [115], relatado pelo Ministro Nelson Jobim.
Assim, para a Fazenda, ainda que se trate de cobrança de tributo sobre tributo, não haveria qualquer inconstitucionalidade nessa técnica de cobrança do IPI.
A Fazenda Nacional - e a própria decisão monocrática de extinção do recurso 491.262, da lavra do ministro Gilmar Mendes, posteriormente reconsiderada, como visto acima – evoca, evidentemente, como principal argumento favorável, a consolidada discussão do creditamento do ICMS na aquisição de mercadorias destinadas ao ativo permanente e materiais de uso e consumo das empresas.
E tal se dá porquanto a jurisprudência pacificada no seio da Suprema Corte é no sentido de que a ausência desse creditamento não viola o mandamento constitucional da não-cumulatividade.
Esta se restringe, apenas, a evitar tributação "em cascata" apenas no ato da industrialização do produto, e que abrange, assim, apenas insumos efetivamente empregados e consumidos na industrialização de produto final, em que há incidência do imposto.
Nesse particular, novamente reforça a Fazenda a tese da semelhança do princípio da não-cumulatividade no IPI e no ICMS, acolhida pelo Plenário nos julgamentos anteriores, sustentando serem irrelevantes as distintas redações do texto constitucional, e tem sua tese abraçada pela jurisprudência recente das turmas do Supremo Tribunal Federal [116].