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Do não cabimento de liberdade provisória no crime de tráfico de drogas.

Jurisprudência da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal

21/10/2010 às 10:26
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Com o advento da Lei nº 11.464/2007, surgiu grande controvérsia quanto ao cabimento ou não da liberdade provisória no caso de crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (lei antidrogas).

Explique-se: a Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, determinou nova redação ao art. 2º, da Lei nº 8.072/90 (lei dos crimes hediondos). Dentre as inovações trazidas por essa norma modificadora, encontra-se a nova redação conferida ao art. 2º, inciso II, da lei dos crimes hediondos, dispositivo esse que, se antes não admitia a concessão de liberdade provisória e fiança aos crimes hediondos e equiparados (tráfico de drogas, tortura e terrorismo), passou-se a permitir tão-somente a concessão da liberdade provisória em mencionados delitos.

Acontece que em seu art. 44, caput, a Lei nº 11.343/2006, de caráter especial, proíbe taxativamente a concessão de liberdade provisória no crime de tráfico de drogas (art. 33, caput), bem como naqueles delitos previstos nos artigos 34 a 37 do mesmo diploma. Reza o texto legal:

Art. 44.  Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.

Nesse caso, considerando haver suposta colisão entre o disposto no art. 44, caput, da Lei nº 11.343/2006 (norma especial) e o previsto na Lei nº 11.464/2006, vislumbrar-se-ia um aparente conflito de normas.

Em situações similares a essa, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) vem firmando o abalizado entendimento de que a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior, dogma esse concretizado pelo brocardo latino lex posterior generalis non derogat priori speciali, e que, no ordenamento jurídico brasileiro, encontra previsão no art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), dispositivo esse que reza da seguinte maneira:

Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1º. (…).

§ 2º. A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

(não grifado no original)

A propósito, sobre a prevalência, no âmbito da Suprema Corte, do entendimento de que a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior (lex posterior generalis non derogat priori speciali), curial a transcrição de ementa de julgado sobre a matéria:

EMENTA: - HABEAS CORPUS. INTIMAÇÃO PESSOAL DO DEFENSOR PÚBLICO (PAR. 5. DO ARTIGO 5. DA LEI 1.060/50). AUSÊNCIA. NULIDADE. LEI 8.701/93, NÃO APLICAVEL A DEFENSORIA PÚBLICA. I - A falta de intimação pessoal do defensor público de decisão atacável com recurso enseja nulidade (artigo 564-III-o do CPP) da certidão do trânsito em julgado do acórdão. II - Frente a incompatibilidade entre uma norma especial anterior e uma norma geral posterior de mesma hierarquia, deve preponderar a lei especial. Assim, não se aplica a Lei 8.071/93 a assistência judiciária organizada e mantida pelos estados.

(STF, HC 70100, Relator Min. Francisco Rezek, Segunda Turma, julgado em 22/10/1993, DJ 18/03/1994).

(não grifado no original)

Como já antecipado, nesse caso em específico do aparente conflito entre o disposto na Lei nº 8.072/90 e o preconizado no art. 44, caput, da Lei nº 11.343/2006, a Primeira Turma Pretoriana entende que sequer há antinomia [01], razão pela qual o colegiado citado, da Suprema Corte brasileira, vem ratificando o já consagrado e demonstrado entendimento de que a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior (lex posterior generalis non derogat priori speciali). A propósito, oportuna a transcrição dos seguintes arestos, extraídos da vasta jurisprudência da Primeira Turma do STF sobre a matéria abordada:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMISSIBILIDADE. DECISÃO QUE MANTEVE A PRISÃO. PERICULOSIDADE DA PACIENTE. QUANTIDADE DE DROGA APREENDIDA. CIRCUNSTÂNCIAS SUFICIENTES PARA A MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA CAUTELAR. ORDEM DENEGADA. 1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. O art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90 atendeu o comando constitucional, ao considerar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual: a proibição da liberdade provisória decorre da vedação da fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência deste Supremo Tribunal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos. 2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável ao caso vertente. 3. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados: Precedentes. 4. Ao contrário do que se afirma na petição inicial, a custódia cautelar do Paciente foi mantida com fundamento em outros elementos concretos, que apontam a periculosidade do Paciente e a quantidade de droga apreendida como circunstâncias suficientes para a manutenção da prisão processual. Precedentes. 5. Ordem denegada.

(STF, HC 99.447, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 09/02/2010, DJe-050, 18/03/2010, p. 343).

(não grifado no original)

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA. LIBERDADE PROVISÓRIA. TRÁFICO DE DROGAS. ART. 5º, XLIII E LXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FIANÇA E LIBEDADE PROVISÓRIA. ART. 44 DA LEI 11.343/2006. REGRA ESPECIAL QUE NÃO FOI ALTERADA POR LEI DE CARÁTER GERAL. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS. INOCORRÊNCIA. NECESSIDADE DE MANUTENÇÃO DA ORDEM PÚBLICA CARACTERIZADA PELA REITERAÇÃO CRIMINOSA. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. I - A vedação da liberdade provisória a que se refere o art. 44, da Lei 11.343/2006, por ser norma de caráter especial, não foi revogada por diploma legal de caráter geral, qual seja, a Lei 11.464/07. II - A garantia da ordem pública é fundamento que não guarda relação direta com o processo no qual a prisão preventiva é decretada, dependendo a sua avaliação do prudente arbítrio do magistrado. III - A reiteração criminosa, associada à demonstração da adequação e proporcionalidade da medida, autoriza a custódia cautelar. IV - Ordem denegada.

(STF, HC 93.000, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 01/04/2008, DJe-074, 24/04/2008, p. 1254, LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 449-455).

(não grifado no original)

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Seguindo a mesma linha dos julgados acima colacionados, são, dentre outros, os acórdãos proferidos nos habeas corpus 99.333/SP [02], 97.975/MG [03] e 99.890/SP [04], todos da Primeira Turma da Suprema Corte.

Portanto, a partir do entendimento firmado no âmbito da Primeira Turma do STF, conclui-se que a alteração implementada pela Lei nº 11.464/2007 na Lei nº 8.072/90, no tocante à admissibilidade da liberdade provisória, é aplicável tão-somente aos crimes hediondos e aos equiparados tortura e terrorismo, excetuando-se dessa última classe, o crime de tráfico de drogas, por força do disposto no art. 44, caput, da Lei nº 11.343/2006, norma essa de caráter especial que, ainda que anterior, não é revogada pela norma de caráter geral posterior (Lei nº 11.464/2007).

Por fim, considerando que a matéria ora tratada não é pacífica, o Pretório Excelso, por maioria de votos (vencido o Min. Joaquim Barbosa), em recente acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 601.384/RS, reconheceu haver repercussão geral na controvérsia referente à possibilidade de concessão de liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas. Referido julgado recebeu a seguinte ementa:

PRISÃO PREVENTIVA – FLAGRANTE – TRÁFICO DE DROGAS – FIANÇA VERSUS LIBERDADE PROVISÓRIA, ADMISSÃO DESTA ÚLTIMA – Possui repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de ser concedida liberdade provisória a preso em flagrante pela prática de tráfico de drogas, considerada a cláusula constitucional vedadora da fiança nos crimes hediondos e equiparados.

(STF, RE 601.384/RS – RG, Relator. Min. Marco Aurélio, julgado em 10/09/2009, DJe-204 DIVULG 28-10-2009 PUBLIC 29-10-2009 EMENT VOL-02380-08 PP-01662 LEXSTF v. 31, n. 371, 2009, p. 506-508 ).

Dessa forma, com o reconhecimento de que há repercussão geral no que diz respeito ao assunto ora tratado, a Suprema Corte se pronunciará, em definitivo, sobre se é possível ou não a concessão de liberdade provisória ao agente autuado pela prática do crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006), pacificando, assim, as divergências existentes acerca do assunto.


Notas

  1. "A Lei 11.343/2006 é especial em relação à Lei dos Crimes Hediondos, não existindo antinomia no sistema jurídico" (STF, HC 97.463/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 06/10/2009, DJe-218 19/11/2009, p. 279).
  2. STF, HC 99.333/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 01/06/2010, DJe-120, de 30/06/2010.
  3. STF, HC 97.975/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 09/02/2010, DJe-050 18/03/2010.
  4. STF, HC 99.890/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, julgado em 24/11/2009, DJe-232 de 10/12/2009.
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Sobre o autor
Alexs Gonçalves Coelho

Mestre em prestação jurisdicional e direitos humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), em parceria com a Escola Superior da Magistratura Tocantinense - ESMAT (2020). Especialista (pós-graduação lato sensu) em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas (2018). Especialista (pós-graduação lato sensu) em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (2017). Especialista (pós-graduação lato sensu) em Criminologia pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense - ESMAT (2014). Especialista (pós-graduação lato sensu) em Direito Público pela Uniderp/Anhanguera (2011). Graduado em Direito pelo Centro Universitário UnirG, Gurupi/TO (2008). Escrivão Judicial - Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (2010-atualidade). Assessor Jurídico de Desembargador - Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (2013-atualidade). Membro da Equipe Especial Disciplinar da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Tocantins - EED/CGJUS/TO (2014/2015). Assistente de Gabinete de Desembargador - Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (2012/2013). Assessor Jurídico de 1ª Instância - Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (2009/2010). Assistente de Gabinete de Promotor - Ministério Público do Estado do Tocantins (2006/2007).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Alexs Gonçalves. Do não cabimento de liberdade provisória no crime de tráfico de drogas.: Jurisprudência da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2668, 21 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17658. Acesso em: 29 mar. 2024.

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