Considerações Gerais
O conceito de Constituição escrita é apanágio do estado moderno. A ideia de um documento escrito e com o objetivo de dispor sobre os fundamentos principais de um Estado somente se consolidou a partir do século XVIII com as Revoluções liberais na França (Revolução Francesa – 1789) e nos Estados Unidos (independência americana – 1787).
Gilmar Mendes, grande doutrinador e Ministro do Supremo Tribunal Federal, citando Konrad Hesse, ensina que o conceito de Constituição preserva um núcleo permanente: "a idéia de um princípio supremo que determina integralmente o ordenamento estatal e a essência da comunidade constituída por esse ordenamento." [01]
Vale destacar, nesse ponto, a distinção feita pela doutrina sobre Constituição formal e material. Assim, Constituição em sentido material seria o conjunto de princípios e regras cujo objeto são os direitos fundamentais, a organização dos poderes e a estruturação do Estado. Ao lado desse conceito de Constituição material, fala-se em Constituição formal como um conjunto de normas jurídicas promulgadas por meio de um processo mais árduo e solene que o ordinário, tendo como propósito tornar mais difícil a modificação de seu conteúdo.
Nesse diapasão, pode-se falar em normas materialmente constitucionais – aquelas que tratam sobre direitos fundamentais, estrutura do Estado e separação dos poderes – e normas formalmente constitucionais – aquelas inseridas no texto constitucional, mas que não tratam sobre as matérias acima referidas.
A Constituição, como norma jurídica fundamental que é, regula as linhas básicas de um Estado e também estabelece diretrizes e limites a serem seguidos pelas legislações futuras. Assim, até com base no princípio da supremacia da Constituição, qualquer ato normativo que seja incompatível com a nossa Lei Maior deve ser extirpado do nosso ordenamento jurídico.
É justamente com este objetivo de garantir a supremacia da Constituição que se criou o controle de constitucionalidade realizado pelos órgãos constituídos. Gilmar Mendes, nesse passo citando Jorge Mirando, ensina que "constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação, isto é, a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não no seu sentido." [02]
Frente ao exposto, fica clara a importância de uma jurisdição constitucional, uma vez que uma Constituição que não conta com um sistema de proteção contra os atos inconstitucionais, não é, de fato, uma Constituição obrigatória.
Inconstitucionalidade Originária e Superveniente
Em princípio, é de curial importância a distinção feita entre a inconstitucionalidade originária e a superveniente. Desse modo, deve-se levar em consideração o momento de edição do ato normativo.
Fala-se em inconstitucionalidade originária quando a norma legal é editada após a Constituição e sob o seu império, mas sendo com ela incompatível. Nesse caso, o ato normativo será inconstitucional desde sua origem, já que contém vícios formais ou matérias que o incompatibilizam com a Constituição.
Por outro lado, se a norma precede a Constituição e é com ela incompatível, a doutrina se divide: para uns seria caso de inconstitucionalidade superveniente [03]; já para outros, seria caso de mera revogação (direito intertemporal).
Tal discussão é de extrema importância, uma vez que suas conseqüências repercutem diretamente na competência dos órgãos judiciais incumbidos de resolver o problema. Para quem entende que o conflito entre o direito pré-constitucional e a Constituição resolve-se no campo do direito intertemporal, deve reconhecer, outrossim, a competência de qualquer órgão jurisdicional para analisar a matéria. Todavia, para aqueles que entendem trata-se de inconstitucionalidade superveniente, a questão deve ser resolvida pelos órgãos judiciais especializados de acordo com o previsto pela Constituição da República (controle difuso e controle concentrado de constitucionalidade).
Gilmar Mendes leciona que "alguns doutrinadores consideram que a situação de incompatibilidade entre uma norma legal e um preceito constitucional superveniente traduz uma valoração negativa da ordem jurídica, devendo, por isso, ser caracterizada como inconstitucionalidade, e não simples revogação." [04]
Em tempo, entendemos que a razão está com aqueles que defendem tratar-se de uma questão que se resolve no âmbito do direito intertemporal. Para que uma lei seja inconstitucional, é necessário que ela esteja em divergência com a Constituição vigente à época de sua edição.
Ao elaborar uma lei, o legislador deve se pautar pelos ditames estabelecidos pela Constituição de sua época e não por uma Constituição passada ou futura. No momento de formação de uma lei, deve ser observado o padrão constitucional existente na época, não podendo o legislador prever uma futura modificação. Assim, uma lei que nasce constitucional, pois está de acordo com sua Lei Maior, não passa a ser inconstitucional (inconstitucionalidade superveniente) simplesmente porque houve uma mudança no padrão constitucional.
Nesse caso, a lei que era compatível com a Constituição de sua época, passa a ser incompatível com a Constituição superveniente, configurando-se, portanto, um caso de não recepção constitucional, matéria de direito intertemporal e que pode ser aplicado por qualquer juiz de direito, dispensando-se, assim, as cautelas inerentes ao processo de declaração de inconstitucionalidade.
Também é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Para este colendo tribunal, só se pode falar em inconstitucionalidade quando tratar-se de ato normativo posterior à Constituição.
Outro aspecto importante e que deve ser destacado nesse estudo é o fato de que, ao se falar em inconstitucionalidade superveniente, refere-se à contradição dos princípios materiais da Constituição e não às regras formais da elaboração das leis.
Mais uma vez nos socorremos das lições de Gilmar Mendes ao citar Canotilho: "a inconstitucionalidade superveniente refere-se, em princípio, à contradição dos actos normativos com as normas e princípios materiais da Constituição e não à contradição com as regras formais ou processuais do tempo de sua elaboração." [05]
Exemplo disso é o Código Tributário Nacional que ingressou no ordenamento jurídico como lei ordinária, mas foi recepcionada pela Constituição de 1988 como lei complementar, uma vez que nossa lei maior exige que essas matérias sejam tratadas por esta modalidade legislativa, o que não era previsto na Constituição anterior na época da edição do CTN.
Interessante é o caso em que uma Constituição faz previsão no sentido de que uma determinada matéria deve ser objeto de lei estadual. Imagine que esta lei seja editada, mas posteriormente haja uma modificação no padrão constitucional exigindo que esta mesma matéria devesse ser tratada por lei federal. Nesse caso, deve-se reconhecer a eficácia derrogatória da norma constitucional que alterou a competência legislativa do âmbito estadual para o federal.
Contudo, a doutrina ensina que no caso contrário, ou seja, se a matéria passou da competência federal para a estadual, a norma editada pela União subsiste estadualizada, até que ocorra a sua derrogação por lei estadual própria.
Outro aspecto interessante e que não pode ser olvidado neste estudo, é referente à mutação constitucional. Tal fenômeno é explicado por Marcelo Novelino: "Criada em contraposição aos meios formais de alteração da Constituição (emenda), a mutação constitucional consiste em um processo informal de modificação do conteúdo, sem que ocorra qualquer alteração em seu texto. É o que ocorre com o surgimento de um novo costume constitucional ou quando um Tribunal Constitucional altera o sentido de uma norma da Constituição por meio de interpretação." [06]
Desse modo, pode-se falar em inconstitucionalidade superveniente nesses casos de mutação constitucional em que há uma mudança na interpretação de uma norma, alterando-se também o parâmetro normativo constitucional. Nesses casos, observa-se um processo de inconstitucionalização, que pode eventualmente acarretar na declaração de inconstitucionalidade de uma lei tida anteriormente como constitucional.
Por fim, destacamos também um fenômeno oposto ao objeto de estudo deste trabalho, qual seja, a constitucionalidade superveniente. Tal fenômeno ocorre quando uma norma que era inconstitucional ao tempo de sua edição, passa a ser compatível com a Constituição devido a uma modificação no parâmetro constitucional.
De acordo com a doutrina, a admissibilidade dessa tese depende do entendimento que se tenha acerca da natureza da norma inconstitucional: ato nulo ou anulável.
Entendendo-se a norma inconstitucional como nula, impossível será a constitucionalidade superveniente, uma vez que ela apresenta um vício originário e insanável. Contudo, para aqueles que entendem que a natureza da norma inconstitucional é de ato anulável, admissível será a constitucionalidade superveniente, desde que não tenha ocorrido a sua declaração de inconstitucionalidade com efeito erga omnes.
Conclusão
Frente ao todo exposto ao logo deste trabalho, podemos conceituar inconstitucionalidade superveniente como o fenômeno em que uma lei que era constitucional ao tempo de sua edição, já que compatível com a Constituição vigente à época, passa a ser inconstitucional em virtude de uma modificação no parâmetro constitucional (alteração da Constituição ou da interpretação de uma norma constitucional), tornando-a incompatível com a Constituição vigente.
Destacamos, outrossim, que a inconstitucionalidade superveniente não é aceita pela maioria da doutrina e também pelo STF que entendem tratar tão-somente de uma questão de direito intertemporal, em que a norma pré-constitucional não é recepcionada pela nova Constituição. Assim, só é possível falar em inconstitucionalidade quando se tratar de atos normativos posteriores à Constituição.
Bibliografia
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª edição. Editora Saraiva, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição. Editora Saraiva, 2008.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª edição. Editora Método, 2008.
Notas
- MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Pág.999.
- MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Pág. 1001.
- Sepúlveda Pertence manifestou esse entendimento no seu voto na ADI 2/DF, DJ de 21-11-1997.
- MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Pág. 1016.
- MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. Pág. 1020.
- NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. Pág.83.