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Um novo conceito de sentença?

Uma análise da nova redação do §1º do art. 162 do CPC à luz da hermenêutica jurídica

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Não se vislumbra justificativa jurídica idônea para se defender a existência de um novo conceito de sentença no sistema jurídico processual civil pátrio.

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo examinar as principais implicações jurídicas decorrentes da nova redação legal do art. 162, §1º do CPC sobre o conceito jurídico de sentença, à luz da hermenêutica jurídica.

Palavras-chave: Hermenêutica jurídica. Pronunciamentos judiciais. Conceito jurídico de sentença.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. HERMENÊUTICA JURÍDICA: A DESCOBERTA DO SENTIDO DAS NORMAS; 3. PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS: UM BREVE PANORAMA; 4. O CONCEITO JURÍDICO DE SENTENÇA À LUZ DA HERMENÊUTICA JURÍDICA; 5. CONCLUSÃO; 6. REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo investigar se o sistema processual civil pátrio, após as alterações legislativas levadas a efeito pela Lei 11.232/05, alterou a conceito jurídico de sentença, em virtude da nova redação legal do art. 162, §1º do CPC. [01]

Trata-se de temática fecunda, envolta em discussões em torno da concepção jurídica apropriada dos pronunciamentos judiciais, seguidas de sensíveis repercussões no campo do sistema recursal existente, dependendo da posição adotada.

Para a consecução deste objetivo, será analisada a importância da hermenêutica jurídica no descobrimento do sentido da norma, enfatizando a absoluta separação entre norma e texto normativo, seja a partir de uma leitura dogmática, seja sob a égide de uma visão contemporânea.

A partir desta abordagem, serão examinados, à luz da hermenêutica jurídica, os principais delineamentos normativos sobre os quais se estruturam os pronunciamentos judiciais existentes no ordenamento processual civil pátrio, com especial enfoque sobre a sentença.

Ao final, conclui-se que a nova redação do art. 162, §1º do CPC não teve o condão de alterar o conceito de sentença existente em nosso ordenamento jurídico, provocando apenas sua adaptação à índole sincrética assumida pelo processo civil vigente.


2 HERMENÊUTICA JURÍDICA: A DESCOBERTA DO SENTIDO DAS NORMAS

Parafraseando a mestre Maria Helena Diniz, a norma jurídica sempre necessita de interpretação, eis que a clareza do texto legal é algo relativo, variando de acordo com o tempo, o espaço e o intérprete [02].

Tradicionalmente, o ato de interpretação é entendido como o meio através do qual se busca desentranhar sentidos ínsitos a todo pensamento capaz de ser reduzido em palavras. Com efeito, é algo comum a todos os ramos do conhecimento, não conhecendo delimitação histórica, tampouco científica. Nessa perspectiva, malgrado seja frequentemente tratada como sinônimo de hermenêutica, com ela não se confunde, uma vez que essa é tecnicamente definida como sendo a ciência através da qual se condensa as técnicas voltadas para a interpretação de tudo que se possa atribuir significado. Destarte, embora a hermenêutica, assim como a interpretação, não se restrinja ao campo das ciências jurídicas; diferentemente daquela, só adquire feições científicas próprias, a partir do modernismo [03].

As origens da hermenêutica jurídica remontam às revoluções liberais e a consolidação do princípio da separação de poderes na maioria dos ordenamentos jurídicos democráticos ocidentais. Na época, o Poder Legislativo gozava de amplo prestígio popular e, por isso, pressupunha-se que as leis por eles criadas eram dotadas de perfeição e completude. Em contrapartida, o Poder Judiciário sofria com desconfianças e, portanto, no desempenho de sua atribuição institucional de dirimir controvérsias, vedava-lhe exercer qualquer papel criativo.

A fortiori, não foi preciso muito tempo para que se ruísse a crença de que a suposta inteligência divina do legislador era capaz de produzir normas jurídicas unívocas. Em conseqüência, sobretudo em razão do non liquet, os magistrados foram paulatinamente cunhando métodos destinados a solver obscuridades legislativas.

O professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior ensina que as bases teóricas da hermenêutica clássica encontram raízes no estudo de Savigny, quem primeiro enfrentou os dilemas em torno do projeto de (r)econstrução do conteúdo da lei. Segundo narra o emérito constitucionalista, o jurista alemão sustentava que a descoberta do sentido da norma se sujeitava à investigação da mens legislatoris, isto é, a vontade do legislador subjacente à norma. A posteriori, prossegue aduzindo o mestre paulista, Savigny começou a perceber que ao intérprete cabe desvelar a mens legis, isto é, a vontade inerente à lei. Finalmente, o renomado autor acaba por concluir que, embora aparentemente antagônicas, essas duas posturas mais se completam do que se afastam e, por isso, tanto uma quanto a outra foram responsáveis pelo desenvolvimento, nos últimos dois séculos, de técnicas e métodos de interpretação que formam o que hoje se conhece pelo pensamento dogmático da hermenêutica jurídica [04].

Em linhas gerais, os principais métodos de interpretação oriundos do paradigma clássico podem ser assim resumidos: a) critério lógico-gramatical: ligado à estrutura léxica do texto normativo; b) critério histórico-evolutivo: leva em conta o gênesis da norma no tempo; c) critério sistemático: correlaciona a norma com o sistema jurídico como um todo, a partir da sua compreensão como uma unidade; d) critério teleológico: busca identificar os fins reputados pelo legislador responsável pela criação da norma.

Nesse panorama, a interpretação do Direito, por meio de uma leitura clássica, consubstancia um perfil instrumental, voltado para a descoberta do sentido e alcance da norma, através da atribuição de significados a conceitos jurídicos.

Não são raras as vozes, inclusive abalizadas, que ainda comungam deste entendimento [05]. Todavia, a partir da difusão dos pensamentos de Gadamer, sobretudo após a publicação de sua obra intitulada de ‘Verdade e Método’ [06], a hermenêutica jurídica vem trilhando novos caminhos. Apoiado no legado de Heidegger [07], isto é, na superação da dicotomia sujeito-objeto em favor de uma perspectiva intersubjetiva de compreensão do mundo, Gadamer sustenta que a hermenêutica configura um diálogo, em que o intérprete e o texto compartilham um horizonte comum, onde não há uma apropriação intelectiva do último pelo primeiro, mas sim um intercâmbio de dados em que um "ouve" o que o outro tem a dizer. Nessa ordem de ideias, supera-se o entendimento de que é suficiente se recorrer a métodos preestabelecidos para se desvendar a verdade sobre os objetos, tornando mais rico o desenvolvimento do trabalho hermenêutico.

A respeito da temática, lapidar a conclusão talhada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

Porque expande o seu horizonte hermenêutico, o intérprete alarga também o seu campo visual, que se torna mais rico pela incorporação de novos instrumentos de análise. Superando os condicionamentos que lhe encurtavam a visão – sem que tivesse consciência dessa limitação –, aquele que descortina novos horizontes capacita-se a ver mais e melhor, tanto no plano físico quanto no plano espiritual [08].

Por tais razões, sepulta-se a objetividade almejada pela hermenêutica tradicional, reconhecendo a falta de neutralidade científica na busca do saber, bem como a volatilidade do conhecimento [09]. Nada obstante, não se nega a importância dos métodos clássicos de interpretação, tampouco se entrega uma carta em branco ao operador do direito para o desempenho de sua atividade.

Nessa linha intelectiva, oportuna a advertência de Carlos Maximiliano:

Cumpre evitar, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos [10].

Dentro deste contexto, explica-se a metáfora do romance em cadeia concebida por Ronald Dworkin, um dos principais expoentes da filosofia do direito hodierna. De acordo com o jus-filósofo norte-americano, o direito deve ser lido como parte de um empreendimento coletivo e compartilhado por toda a sociedade. Logo, ninguém seria livre para decidir controvérsias sobre o Direito. Ao revés, o intérprete seria apenas o autor de um capítulo em uma longa obra coletiva, que delimita sua liberdade criativa, na medida em que lhe obriga atuar de modo coerente a tudo que já foi redigido, sem perder de vista a continuidade da história [11].

Em suma-síntese, a par da riqueza científica subjacente à hermenêutica jurídica contemporânea, sob uma ótica estritamente pragmática, a principal contribuição deste novo paradigma reside na oxigenação do trabalho do hermeneuta por influxos de natureza diversificada, deslocando o ato interpretativo de um eixo instrumental para um nível ontológico de definição do Direito, com necessário esteio em uma argumentação jurídica sólida e concatenada com a realidade.

Por todo o exposto, seja qual for o prisma de análise, a ciência hermenêutica possui uma mesma preocupação: conservar a coerência entre o trabalho de permanente escultor do intérprete e a exposição de arte (jurídica) perenemente à mostra, mediante argumentação racional e juridicamente sustentável.


3 PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS: UM BREVE PANORAMA

A jurisdição constitui uma das manifestações de soberania do Estado e se materializa através da aplicação do Direito ao caso concreto por intermédio da atuação do Juiz.

O Juiz, portanto, para desincumbir-se do munus que lhe fora atribuído, exerce a jurisdição através de atos processuais, ora destinados a impulsionar os procedimentos jurisdicionais que preside, ora utilizados para veicular decisões, cujo objeto tenha sido instado a se manifestar.

Os pronunciamentos judiciais destituídos de carga decisória recebem o nome de "despachos" [12] e servem para promover o andamento do processo no qual são editados, em homenagem ao princípio do impulso oficial. Já os atos do Juiz encarregados da função de exprimir decisões comportam mais uma espécie jurídica, agasalhando, em primeira instância, as decisões interlocutórias [13] e as sentenças [14], ao passo que, no segundo grau, os acórdãos [15] e as decisões monocráticas [16].

Para os fins a que se propõe o presente artigo, os pronunciamentos judiciais não serão analisados a fundo, pois o objetivo almejado depende apenas do exame dos atos judiciais decisórios de primeiro grau de jurisdição.

Antes do advento da Lei 11.232/05, a distinção conceitual entre sentença e decisão interlocutória era definida a partir de um critério nitidamente topológico. Enquanto as sentenças encerravam julgamentos que punham fim ao processo, as decisões interlocutórias contemplavam os demais pronunciamentos – decisórios – proferidos ao longo do procedimento instaurado [17].

Dentre os autores de escol, apenas o mestre Sérgio Bermudes não comungava do entendimento esposado pela doutrina majoritária, assim se pronunciando sobre a matéria:

Muitas vezes, o juiz profere, no curso do procedimento ordinário, como ao longo de qualquer outra modalidade procedimental, um pronunciamento que constitui sentença, mas sem extinguir o que, formalmente, é o processo. Vejam-se as hipóteses de indeferimento da inicial quanto a apenas um dos pedidos, ou ainda o expressivo caso de sentença terminativa da reconvenção, sem que se extinga o processo da ação principal. A doutrina (...) identifica tais atos como decisões interlocutórias ou a estas os equipara, do que decorre o efeito prático de torná-los agraváveis (art. 522 do CPC) e não apeláveis (art. 513 do CPC). Vencido na matéria, é outro o meu entendimento, pois considero esses atos sentenças, impugnáveis por apelação (...). [18]

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Este cenário de tranquilidade doutrinária, contudo, fora substituído por ambiente de profunda inquietação acadêmica, a partir da nova redação legislativa do art. 162, §1º do CPC, dada pela Lei 11.232/05 [19].

Não raras vozes vaticinaram o total abandono do critério topológico até então adotado, defendendo a identificação de sentenças por meio de seu conteúdo [20].

Sem embargo, o entendimento que tem prevalecido entre os eminentes processualistas pátrios reside na manutenção da tese dominante antes da edição da Lei 11.232/05, sob o fundamento de que interpretação adversa comprometeria a racionalidade do sistema recursal brasileiro. Nessa linha de intelecção, o professor Fredie Didier Jr. preleciona:

Em que pese a alteração legislativa, é preciso continuar compreendendo a sentença como ato que, analisando ou não mérito da demanda, encerra uma das etapas (cognitiva ou executiva) do procedimento de primeira instância. O encerramento do procedimento fundar-se-á, como se disse, ora no art. 267, ora no art. 269 do CPC – isso é certo. Mas não há como retirar da noção de sentença – ao menos até que se reestruture o sistema recursal – a ideia de encerramento de instância [21].


4 O CONCEITO JURÍDICO DE SENTENÇA À LUZ DA HERMENÊUTICA JURÍDICA.

Conforme aventado, o estágio evolutivo atual da hermenêutica jurídica torna defeso ao intérprete recorrer a meros métodos interpretativos, sobretudo, a apenas um, para definir o significado do texto de uma lei. Portanto, a literalidade do art. 162,§1º do CPC não ostenta força normativa capaz de, per si, alterar o conceito de sentença como ato de desfecho dos procedimentos judiciais. Assim sendo, incumbe ao operador do direito investigar, sob diferentes diretrizes, a concepção de sentença mais coerente com o ordenamento jurídico vigente, desenvolvendo uma argumentação racional e juridicamente sustentável para servir de sustentáculo a seu entendimento. Com tais considerações, as linhas doravante redigidas se destinarão a esta finalidade, para, a partir dos fundamentos expendidos, alcançar-se a conclusão mais adequada.

Sob a ótica teleológica, não é preciso muito esforço intelectual para se chegar à conclusão de que a finalidade da Lei 11.232/05, responsável por alterar a redação do art. 162,§1º do CPC, foi compatibilizar o conceito jurídico de sentença ao processo sincrético, em que há uma aglutinação dos processos cognitivo e executivo. Com efeito, por tal prisma de análise, não pode o intérprete distorcer o escopo legislativo, a fim de obter consequências jurídicas não visadas por ele.

Tal aspecto não passou despercebido aos argutos processualistas Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, que asseveram:

[...] A razão de ser da alteração das normas do art. 162, §1º, e 269, caput, foi a de permitir a aglutinação dos processos de conhecimento e de execução em um único processo com duas fases distintas. (...)

É preciso interpretar as normas do art. 162, §1º, e 269, caput, de acordo com a finalidade da própria lei que as previu e sem perder de vista a racionalidade do sistema recursal, que sempre foi admitido como coerente e lógico pela doutrina e pela prática forense [22].

Do ponto de vista sistemático, idêntica ilação é auferida, na medida em que uma análise profunda do sistema processual civil pátrio aponta a certeza de que a ideia de se fragmentar a sentença ao longo do procedimento não se coaduna com a lógica subjacente a todo o Código de Processo Civil pátrio.

A prima facie, exegese contrária desprezaria a redação do art. 162, §2º do CPC [23], uma vez que sempre houve acordo no sentido de que de que o ato judicial que, por exemplo, concede tutela antecipatória ou pronuncia a decadência ou a prescrição, julga o mérito, sem deixar de ser uma decisão interlocutória, ou seja, que o conceito de ‘questão incidente’ jamais excluiu o conceito de mérito, mesmo porque, se assim fosse, o esvaziaria inadvertidamente.

Outrossim, a decisão de liquidação do julgado, por disposição legal expressa, desafia o recurso de agravo de instrumento [24], o que denota o entendimento de que constitui uma decisão interlocutória, tornando claro que pouco importa se o pronunciamento judicial versa sobre o mérito ou não da demanda, para fins de sua classificação.

De modo ainda mais evidente, o posicionamento ora defendido é corroborado pela redação do art. 475-M, §3º do CPC [25], visto que ali, inclusive, se diferencia a espécie de decisão judicial de acordo com a extinção ou não da execução.

Por derradeiro, nem se argumente que o livro de procedimentos especiais do Código de Processo Civil pátrio está repleto de exemplos de reconhecimento de fragmentação do mérito da demanda por meio de mais de uma sentença, infirmando toda a argumentação supraexpendida.

É bem verdade que no caso da ação de consignação em pagamento, fundada em dúvida sobre quem deva receber, o legislador permite ao magistrado julgar extinta, por sentença, a obrigação para o consignante, prosseguindo o feito com os consignados, cujo encerramento, ao final, dar-se-á também mediante sentença [26]. Da mesma forma, é dominante a tese de que na ação de prestação de contas podem ser prolatadas duas sentenças: a primeira, que reconhece a existência da obrigação de prestar contas e, a segunda, que apura o exame das contas e eventual saldo devedor [27]. Igualmente correta é a ilação de que, na ação de demarcação de terras, são prolatadas duas sentenças: a primeira, julgando procedente o pedido de demarcação [28] e, a segunda, após o procedimento para demarcação do terreno, homologando a demarcação [29].

A nosso sentir, em todas as hipóteses acima, existem, sim, duas sentenças; entretanto, isso em nada fragiliza a posição aqui sustentada; pelo contrário, fortalece-a. Conforme aventado, todos os procedimentos supra-assinalados são especiais, diferentes, portanto, do regime ordinário. Logo, longe de configurarem indicativos em prol do reconhecimento de sentenças fragmentárias, representam exceções que nada mais fazem do que confirmarem a regra.

Finalmente, sob uma perspectiva pragmática, a solução mais palatável pela prática forense reside na manutenção do pensamento tradicional aqui defendido. Isso porque, caso se admita a tese contrária, isto é, a prolação de mais de uma sentença ao longo de um mesmo procedimento judicial, automaticamente, surgiria a possibilidade legal de se interpor tantas apelações quantas sentenças fossem proferidas, fato destituído, contudo, de regulamentação normativa e sobremodo prejudicial ao regular andamento do feito.

O recurso de apelação, segundo a lei em vigor, dá azo à remessa dos autos à instância superior competente para o seu julgamento. Com efeito, a manutenção da forma regular de processamento da apelação não se coaduna com a aceitação da existência de sentenças fragmentárias. Nada justifica o sobrestamento da instrução relativa aos pedidos pendentes de resolução até o julgamento do recurso interposto. Portanto, a única solução legalmente sustentável é juridicamente inaceitável, porquanto sobrepuja a efetividade e celeridade processual em favor da literalidade normativa.

Ciente desta certeza, a doutrina que defende a existência de sentenças fragmentárias, propõe soluções diversas para adaptar o sistema recursal vigente ao suposto novo conceito de sentença. Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier, as sentenças proferidas no curso do processo desafiam o recurso de agravo de instrumento [30]. Este posicionamento, entretanto, fere a tipicidade dos recursos (arts. 513 [31] e 522 [32], ambos do CPC) e, consequentemente, impõe ser rechaçado. De forma mais sofisticada, o professor Bruno Garcia Redondo sustenta que, uma vez proferida uma "sentença parcial", é cabível a interposição de apelação, mediante a formação de autos suplementares, processando-a em apartado [33]. Nada obstante, em que pese a engenhosidade do raciocínio empreendido, para além de sua duvidosa legitimidade democrática, já que destituídas de amparo legislativo, é nula a vantagem prática dele advinda, pois idêntico resultado é alcançado pelo agravo de instrumento.

A simples falta de regulamentação legal sobre da matéria é motivo suficiente para atestar a impertinência da tese sufragada pela doutrina acima exposta. O vácuo normativo proporciona uma multiplicidade de entendimentos doutrinários. Logo, acarreta insegurança jurídica e dificulta o trabalho dos cartórios judiciais e causídicos envolvidos na lide, repercutindo negativamente, portanto, na esfera pragmática de aplicação do Direito.

Em vista disso, seja qual for o prisma de análise, a concepção de sentença mais coerente com o ordenamento jurídico pátrio é a que a identifica não só como ato que versa sobre o mérito da demanda proposta, mas também que põe fim ao dever do julgar do Magistrado que a prolata.

Nesse diapasão, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de perfilhar o mesmo entendimento ora esposado:

Discutiu-se qual seria o recurso adequado para combater o decisum que, ao acolher a prefacial de falta de interesse de agir, extinguiu parcialmente o processo sem resolução de mérito, apenas quanto a um dos pedidos relativos à pretensão (isenção de IR), mas determina o prosseguimento no feito quanto aos demais pedidos (reforma de militar, indenização de ajuda de custo e danos morais). Diante disso, a Turma, ao prosseguir o julgamento, firmou que, apesar de o caso enquadrar-se em uma das hipóteses do art. 267 do CPC, mediante uma interpretação sistêmica voltada para a efetividade da tutela jurisdicional, vê-se que o ato judicial em questão não tem natureza de sentença, mas sim teor interlocutório, a ensejar a interposição de agravo de instrumento (art. 522 do CPC). Assim, determinou o recebimento do recurso na forma do referido agravo e acolheu o pedido de que se abrisse o respectivo prazo para a formação do instrumento. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.059.461-DF, DJe 2/3/2009, e AgRg no REsp 819.160-DF, DJe 13/10/2008. REsp 1.117.144-RS, Rel. Min. Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ-SP), julgado em 15/4/2010.

A título de arremate, não são por outros motivos que o projeto de Código de Processo Civil em trâmite no Congresso Nacional põe um fim na discussão em tela, referendando a posição aqui defendida, na medida em que retifica a redação legal do dispositivo que encerra o conceito normativo de sentença. Senão vejamos:

Art. 158. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.

§ 1º Ressalvadas as previsões expressas nos procedimentos especiais, sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 473 e 475, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como o que extingue a execução.

§ 2º Decisão interlocutória é todo pronunciamento judicial de natureza decisória que não se enquadre na descrição do § 1º.

§ 3º São despachos todos os demais pronunciamentos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Fernandes Neves Ribeiro

Procurador Federal, graduado em Direito pela UFJF, pós graduando em ciências penais pela UFJF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Carlos Eduardo Fernandes Neves. Um novo conceito de sentença?: Uma análise da nova redação do §1º do art. 162 do CPC à luz da hermenêutica jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2672, 25 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17690. Acesso em: 25 nov. 2024.

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