Resumo: O assunto a ser abordado em nosso artigo trata da relação entre a proteção conferida pelo Direito do Trabalho e as atividades ilícitas. Analisaremos a doutrina e jurisprudência pátrias sobre o tema, confrontando a posição dos que entendem ser absolutamente inadmissível reconhecer qualquer direito trabalhista em atividades ilícitas com o pensamento dos que admitem, em casos como o dos executores de atividade-meio, o reconhecimento do vínculo com o tomador dos serviços. A conclusão mais acertada, em nosso sentir, cinge-se à necessidade de se considerar cada caso merecedor de análise específica, já que o universo das relações de trabalho é complexo e envolve uma variedade de elementos objetivos (lugar da prestação do serviço, objeto do negócio) e subjetivos (conhecimento claro da ilicitude do trabalho, boa-fé na atividade exercida). Sendo o trabalho executado enquanto atividade-meio do "empreendimento" delituoso, como no exemplo da cozinheira em um cassino ou de uma arrumadeira de quartos de uma "casa de tolerância", pensamos que é justo reconhecer-lhe o liame empregatício.
Palavras-chave: Proteção, contrato de trabalho, ilicitude, atividade-meio.
INTRODUÇÃO
A prestação de serviços em atividades ilícitas pode ser reconhecida juridicamente pela Justiça do Trabalho? Se sim, em quais casos? O tema é ainda polêmico, apesar de existirem julgados tendentes a não admitir em hipótese alguma falar-se em vínculo jurídico trabalhista em relação a atividades exercidas contrariamente ao admitido em lei. Mas será que tais decisões podem ser socialmente justas em todos os casos?
O trabalho prestado a outrem deve ser retribuído pelo tomador do serviço. Este é um princípio básico social e, além do mais, um direito do cidadão. Mas se tal trabalho de que se fala, por exemplo, é o do traficante, ou da assistente em uma clínica de aborto clandestina ou do ajudante do bicheiro? Continuam eles podendo ser classificados como empregados? Continuam tendo direito a alguma guarida do ordenamento, ainda levando em conta fatores como a não participação dele no objetivo ilícito do "empregador", ou o desconhecimento da repercussão ilícita das atividades por ele exercidas?
Seria justo, por outro lado, negar qualquer efeito a uma relação contratual de trabalho tida como ilegal e com isso favorecer o enriquecimento indevido do responsável pela existência do negócio ilícito? Se isso fosse feito, se estaria premiando aquele que na verdade deveria ser o mais severamente punido dentre os envolvidos?
Buscaremos responder às perguntas acima, ao final deste texto, com supedâneo na legislação, doutrina e jurisprudências pátrias relacionadas ao assunto. Conquanto a literatura sobre o tema não seja tão vasta, pensamos ter conseguido reunir nas palavras que seguem o pensamento jurídico de alguns estudiosos que mais têm meditado sobre tão importante questão nos dias atuais.
Acreditamos que o estudo realizado possa contribuir para a reflexão mais amadurecida daqueles que pretendem atuar enquanto operadores do Direito do Trabalho.
I – DIFERENÇAS ENTRE "RELAÇÃO DE EMPREGO", "TRABALHO ILÍCITO" E "TRABALHO PROIBIDO"
Como forma de introduzir o leitor no tema aqui proposto, são necessárias algumas explicações sobre a diferença entre os conceitos jurídicos de " relação de emprego", "trabalho ilícito" e "trabalho proibido".
Empregado, segundo o art. 3º da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas – Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943) [01], é "toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário." Mas, para além de tais requisitos, a completa realização dos efeitos jurídicos da relação de emprego exige ainda a presença de elementos jurídico-formais [02] do contrato de emprego, cuja previsão é encontrada no art. 104 do Código Civil (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002) [03]: capacidade dos contraentes, licitude do objeto e forma contratual prevista ou não vedada por lei.
Assim sendo, mesmo presentes todas as características da relação de emprego (pessoalidade, onerosidade, subordinação e não eventualidade), determinada prestação de serviço não pode surtir efeitos no ordenamento jurídico caso em seu bojo gravite a prática de atividade ilícita. Aqui estaríamos defronte ao chamado " ‘trabalho’ ilícito" , situação onde se tem concluído pela nulidade do contrato de trabalho, pela incompatibilidade entre a ação antijurídica e a prestação jurisdicional oferecida da Justiça do Trabalho . Questão bastante em voga na jurisprudência atual é a do jogo do bicho, firmada na OJ. SDI – 1 do TST n.º 199. [04]
" ‘Trabalho’ proibido ", diversamente de " ‘trabalho’ ilícito", é aquele realizado dentro das exigências legais, mas em desrespeito a restrições impostas pelo legislador. O trabalho prestado pelo menor de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14, é um exemplo de trabalho proibido, consoante o Art. 7º, XXXII da CF [05]. Outros dois exemplos já conhecidos são o do policial militar que venha a trabalhar para empresa privada de segurança (Vide Súmula nº 386 do TST) e o do servidor público admitido sem submissão ao concurso público, em confronto com a regra do art. 37, II e § 2º da CF (Súmula 363 do TST). Todas essas situações, diferentemente do que ocorre com a atividade ilícita, resultam no reconhecimento, ainda que parcial, de algumas verbas trabalhistas, sobretudo por força dos princípios da proteção [06] e da primazia da realidade. [07]
II – ATIVIDADE ILÍCITA E RELAÇÃO DE TRABALHO
A doutrina e jurisprudência majoritárias defendem de forma absoluta a impossibilidade de efeitos trabalhistas aos "contratos de trabalho" ilícitos.
Leciona Maurício Godinho Delgado que em atividades cujo objeto é ilícito "sequer se configura o valor-trabalho tutelado pela Constituição – por ser este um valor sempre aferido sob a ótica social, mesmo que individualmente apropriado pelas partes. [...]". Assevera ainda que "nas situações de ‘trabalho’ ilícito (ilícito criminal, evidentemente), afasta-se a incidência da teoria justrabalhista especial de nulidades [08], retornando-se ao império da teoria geral do Direito Comum, negando-se qualquer repercussão trabalhista à relação socioeconômica entre as partes." [09]
Em interessante artigo entitulado " O jogo do bicho e o Direito do Trabalho", O jurista Adriano Mesquita Dantas afirma que em tal discussão [10]
não cabe invocar o princípio protetivo, posto que é do conhecimento de toda a sociedade que o jogo do bicho é proibido e serve de fachada para várias outras práticas também ilícitas, entre elas a lavagem de dinheiro, a sonegação fiscal e o tráfico de drogas e de armas.
O mesmo autor registra ainda que [11]
confrontando o princípio da proteção com o da legalidade entendo que deve prevalecer o segundo, uma vez que o estado Democrático de Direito, a Constituição da República , as Leis e, ainda, a ordem pública não podem ser vulneradas em prol de um contraventor penal, que é o ‘empregado’ do jogo do bicho".
Outras atividades comerciais em confronto com a lei, ainda que não se tratando de crime, também vêm sendo objeto de negação de efeitos trabalhistas, como demonstra a decisão-exemplo abaixo transcrita [12]
VÍNCULO EMPREGATÍCIO – VENDEDORA DE CDS E DVDS PIRATAS – IMPOSSIBILIDADE - A reclamante confessa em sua inicial que trabalhava como vendedora de CDs e DVDs "piratas". Passível, então, tal atividade, à sanção civil descrita no art. 104, da Lei n° 9.610/98. Assim, sendo ilícita a atividade desempenhada pela reclamante, impossível o reconhecimento do vínculo empregatício postulado. Nesse sentido, mutatis mutandis, os termos da OJ n° 199, da SDI-1, do C.TST. Recurso a que se nega provimento.
Percebe-se que o fundamento da OJ nº 199, da SDI-1, do TST é usada como fundamento por analogia feita pelo julgador com relação ao jogo do bicho. Pensamos ser este um exercício interpretativo equivocado do julgador, já que o jogo do bicho tem repercussões criminais mais graves que a venda de CDs piratas, que fere regras comerciais sem representar vinculação com outros crimes. Mas pode ser válida a analogia no sentido de refletirmos sobre o fato de ambas as atividades serem fatos para os quais o Estado não vem empreendendo grande repressão.
III – REALIZAÇÃO DE ATIVIDADE-MEIO E OBJETO ILÍCITO DO EMPREENDIMENTO
Parte expressiva da doutrina, por seu turno, afirma ser necessário perscrutar qual o tipo de atividade efetuada pelo obreiro, para só depois poder concluir se será negado a ele algum direito trabalhista. Em certos casos, é possível que convivam em um mesmo estabelecimento trabalhadores que ali estão unicamente para levar a cabo o objetivo ilícito proposto pelo "empregador", ao lado de funcionários cujas tarefas não guardam nenhum vínculo com a atividade delituosa do empreendimento.
Consoante preleciona o jurista Giovani Magalhães Martins Filho [13]
Muito embora sejam empregados da mesma forma, no sentido jurídico do termo, vale dizer, são pessoas físicas que trabalham de modo contínuo e permanente, de forma subordinada ao seu patrão, recebendo salário pelos serviços prestados, a situação jurídica, para fins de direitos trabalhistas, é bem distinta entre o empregado que trabalha na atividade-fim de uma empresa com objeto ilícito e aquele que trabalha numa atividade-satélite, numa atividade-meio [...] Assim, um garçom, uma faxineira, um porteiro, um zelador, dentre outros, devem ser amparados pelo direito já que exercem atividades reconhecidas por lei, cujo exercício se distancia da atividade ilícita ou delituosa do patrão.
Acerca do jogo do bicho em específico, apesar do reconhecimento que tem recebido a inteligência da OJ. SDi – 1 do TST. 199, podemos encontrar algumas importantes decisões no sentido de admitir o caráter de contrato a tais atividades, as quais merecem ser citadas [14]:
O jogo do bicho é prática usual amplamente tolerada pelas autoridades constituídas, desfrutando do inegável beneplácito dos órgãos competentes dos três poderes da República. Atualmente, assumiu foros de comportamento regular, acintosamente presente aos olhos de tudo e de todos. A evidente circunstância de não merecer repressão policial não apenas comprova a complacência do Estado para com banqueiros e adeptos desse jogo de azar, como também deixa transparecer nitidamente que inexiste hoje condenação social. II. Hipocrisia reputar ilícito o objeto do contrato de trabalho envolvendo arrecadador de apostas de jogo do bicho se se cuida de prática notoriamente consentida pela sociedade e o Estado explora inúmeras formas de concursos de prognóstico, inclusive como medida de fomento às atividades desportivas. Ademais, se nulidade houvesse, decretar-se-ia com efeito ex nunc (RR 271.663/96.6) João Oreste Delazen – TST). CARRION
Seria incompatível com os princípios da primazia da realidade e da proteção negar, por completo, eficácia jurídica ao contrato celebrado entre as partes, para coleta do jogo do bicho, em razão da ilicitude do objeto contratual. No Direito do Trabalho, a nulidade do contrato pode não acarretar negação plena dos efeitos jurídicos do ato. É o que acontece com a contratação sem concurso pela Administração Pública. Declara-se a nulidade do ato, sem prejuízo da obrigação de pagar os salários dos dias trabalhados (Orientação Jurisprudencial n. 85 da SBDI-1). Assim, a tutela jurisdicional prestada pela Justiça do Trabalho obsta o enriquecimento sem causa, valorizando a força do trabalho despendida, considerada a impossibilidade de restabelecimento do estado anterior. (RR 24.397/02) Maria Cristina Irigoyen Peduzzi – TST.
Aqui vale a pena abrir um sensível "parêntese" para a crítica moderna sobre os motivos pelos quais o jogo do bicho é apontado com tanto ardor como sendo algo prejudicial à sociedade. Alguns juízes são incisivos nessa direção, mas calam-se para o problema do grande volume de dinheiro envolvido nos concursos de prognósticos, em que os defensores aventam uma pretensa função social. Se uma das questões mais importantes está no prejuízo em termos de vício e desequilíbrio econômico sofrido por cidadãos que sempre vão fazer "sua fezinha", as "loterias" causam muito maior mal por esse aspecto, sem levar em conta ainda as inúmeras fraudes que são descobertas no decorrer dos procedimentos do concurso.
CONCLUSÃO
O problema do reconhecimento de direitos trabalhistas em atividades ilícitas, apesar dos tribunais já terem se pronunciado prodigamente sobre o entendimento prevalecente, não é algo já definido. Ainda se presenciam muitas decisões, como pudemos ver, em que os magistrados, sem prestarem tributo a atividades ilícitas, descem a questões sociológicas e econômicas inerentes aos casos concretos em análise, buscando dar cada vez mais validez a princípios como o da proteção e o da primazia da realidade.
A par desse problema, deparamos com uma crescente falta de emprego e de trabalho lícito em nossa sociedade. Tal dado, entretanto, não justifica o fato de muitos desempregados buscarem seu meio de sobrevivência através do crime, mas reforça esta possibilidade.
Compartilhamos do entendimento daqueles que não admitem o reconhecimento de vínculo de "emprego" em atividades ilícitas. Porém, pensamos que não é o caso de negar em absoluto qualquer direito ao trabalhador apenas por ser reprovável o objetivo da "empresa" na qual ele presta serviço.
A estrutura de determinados estabelecimentos que perpetram práticas delituosas, inclusive daqueles que misturam de forma camuflada objeto lícito com o crime, é em muitos aspectos semelhante à de uma pequena empresa: tem gerente, colaboradores de limpeza, portaria etc. É aqui que deve entrar a inteligência do juiz em descobrir até que ponto há nexo entre as atividades do obreiro e o fim criminoso buscado pelo "empregador", pelo menos até que o advento de novas oportunidades de trabalho venham a minorar a ocorrência de "trabalhadores ilícitos".
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGHER, Anne Joyce (organizadora). Vade Mecum Acadêmico de Direito. 8. ed. São Paulo-SP: Editora Ridell, 2009
CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 3ª edição. São Paulo-SP: Saraiva, 2007.
DANTAS, Adriano Mesquita. O jogo do bicho e o Direito do Trabalho. Há relação de emprego entre o bicheiro e o cambista? Texto elaborado em 03.2008, Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11070>. Consultado em 29/09/2009.
DELGADO, Maurício Godinho. III-Validade Jurídica da relação de emprego: Elementos Jurídico-formais do contrato empregatício. In: Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo-SP: Ltr, 2006, p. 305-307.
FILHO. Giovani Magalhães Martins. As Condições de Validade do Contrato de Trabalho. Texto elaborado em 04/2003, Disponível em: http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=113817. Consultado em 30/11/2009.
MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das Condições de Trabalho. 3ª edição. São Paulo-SP: Editora Atlas S.A., 2004.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 19ª edição. São Paulo-SP: Editora Atlas S.A., 2004.
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos – O Declínio Inevitável dos Níveis de Empregos e a Redução da Força Global de Trabalho. 3ª edição. São Paulo-SP: Makron Books, 1995.Título Original: The Decline of the Global Labor Force and the Down of the Post-Market Era.
Notas
- BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-lei nº. 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação das leis do trabalho. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização de Anne Joyce Angher. 8. ed. São Paulo-SP: Editora Ridell, 2009.
- DELGADO, Maurício Godinho. III-Validade Jurídica da relação de emprego: Elementos Jurídico-formais do contrato empregatício. In: Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo-SP: Ltr, 2006, p. 305-307.
- Código Civil Brasileiro, Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização de Anne Joyce Angher. 8. ed. São Paulo-SP: Editora Ridell, 2009
- BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. OJ. SDI – 1 n.º 199. Jogo do bicho. Contrato de trabalho. Nulidade. Objeto ilícito. Arts. 82 e 145 do Código Civil. In: ____. Súmulas. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização de Anne Joyce Angher. 8. ed. São Paulo-SP: Editora Ridell, 2009.
- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Vade Mecum Acadêmico de Direito. Organização de Anne Joyce Angher. 8. ed. São Paulo-SP: Editora Ridell, 2009
- Princípio segundo o qual sobre o empregado deve receber uma proteção maior em relação ao empregador, por ocasião da hipossuficiência econômica daquele.
- Por tal princípio, em regra, a realidade dos fatos tem prevalência sobre quaisquer outros elementos formais da relação de emprego.
- Teoria que considera possível o reconhecimento dos efeitos jurídicos do contrato de trabalho eivado de ilegalidade, inclusive "ex tunc", ou seja, retroativamente ao início da contratação, como forma de evitar o enriquecimento sem causa do tomador do serviço e de molde a proteger o obreiro.
- Idem, 2006, p. 511.
- DANTAS, Adriano Mesquita. O jogo do bicho e o Direito do Trabalho. Hárelação de emprego entre o bicheiro e o cambista? Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1725, 22 mar. 2008. Disponível em : https://jus.com.br/artigos/11070. Acesso em: 29 set.2009. p. 3
- Idem, 2008, p.3
- Ação n. 00681-2008-115-15-99-7, 2ª Vara do Trabalho de Presidente Prudente-SP – Desembargador Flávio Nunes Campos.
- Fonte: http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=113817, 2003, acessado em 28 de Novembro de 2009.p. 04
- VALENTIN, Carrion, Comentários à Consolidação das Leis do trabalho . 32. ed. São Paulo-SP: Saraiva, 2007, p. 442.