"MEDIDA PROVISÓRIA: uma reflexão por quem entende do assunto" *
"O Executivo abusa da paciência e da inteligência do país, quando insiste em editar medidas provisórias sob o pretexto de que, sem sua vigência imediata, o Plano (econômico Collor) vai por água abaixo, e, com ele, o combate à inflação. Com esse ou com pretextos semelhantes, o governo afoga o Congresso numa enxurrada de "medidas provisórias". O resultado lamentável: a Câmara e o Senado nada mais fazem que apreciá-las aos borbotões. É certo porém que, seja qual for o mecanismo, ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no País só existe um Poder de verdade, o do Presidente. E daí por diante esqueçamos também de falar em democracia."
* - Texto do então Senador Fernando Henrique Cardoso, do artigo "Constituição e Prepotência", citado pela ilustre administrativista Profª Carmem Lúcia Antunes Rocha, publicado pelo Correio Braziliense de 07.07.97.
-* O Título não é o original.
Publicada no silêncio religioso de uma quinta-feira da paixão (D.O.U. de 27.03.97), a Medida Provisória n° 1.570, de 26.03.97, vestiu de luto a cidadania de tantos brasileiros, que ainda esperam vivenciar a promessa constitucional de um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1°, caput), a não formar fileiras entre os milhões de "excluídos" do Estado neoliberal.
Ressuscitando legislação espúria e repressiva da ditadura militar, a malsinada Medida Provisória 1.570/97 viola e estrangula os princípios-garantias da independência e harmonia entre os Poderes da União (CF, art. 2°), da isonomia, do livre e pleno acesso à Justiça e da inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5°, caput e incisos XXXIV, a e XXXV), que se amparam em cláusulas pétreas, imunes até mesmo à ação legiferante do Poder reformador (CF, art. 60, § 4°, III e IV).
O regime de exceção, que a normativa abusiva das Medidas Provisórias implantou, no Brasil, dispondo o Sr. Presidente da República, com força despótica, sobre todas as matérias de sua competência privativa (CF, art. 61, § 1°, incisos I e II e respectivas alíneas a e e; art. 84, incisos I a XXIX) e sobre a competência dos demais órgãos e Poderes da União (CF, arts. 22, I a XXIX; 48, I a XIV; 49, I a XVII e 61, caput) não tem respaldo constitucional, nem encontra abrigo na geografia globalizante dos povos livres.
Na pretensão de atrelar à tutela antecipada, genérica e específica (CPC, arts. 273 e 461) o disposto nos arts. 5° e respectivo parágrafo único e 7° da Lei n° 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. l ° e respectivo parágrafo 4° da Lei n° 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1°, 3° e 4° da Lei n° 8.437, de 30 de Junho de 1992, bem assim, na determinação de se exigir garantia real ou fidejussória para a concessão de liminar ou de qualquer medida de caráter antecipatório contra pessoa jurídica de direito público (art. 1°, § 4°, da Lei n° 8.437, de 30 de junho de 1992), com vistas a protelar ainda mais o pagamento do percentual remuneratório de 28,86% aos servidores públicos civis do Executivo, com data já legalmente fixada para 1° de janeiro de 1993 (Leis n°s 8.622 e 8.627/93), a Medida Provisória 1.570/97 agride o comando da norma do art. 37, X, da Constituição Federal, que prestigia e garante a auto-aplicabilidade protetora dos princípios da isonomia e da segurança jurídica entre civis e militares, quando se trata de revisão geral de remuneração dessas categorias, visando anular a maior conquista da Reforma Processual, que é a técnica da antecipação da tutela, na sistemática do processo civil brasileiro, para realização de uma Justiça célere e eficaz.
Se a lei não deve excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5°, XXXV), a normativa de exceção não poderá fazê-lo, nos estreitos limites do art. 62 e respectivo parágrafo único, da Lei Fundamental.
A restrição ao art. 16 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, com vistas a debilitar a jurisdição singular, no processo e julgamento das ações civis públicas, revela mais uma agressão do Sr. Presidente da República ao livre exercício do Poder Judiciário e do Ministério Público, em flagrante atentado contra a Constituição Federal.
A jurisdição cautelar, assim como a jurisdição tutelar plena, é direito fundamental de todos e dever indeclinável do Estado, no regime de normalidade jurídica das pessoas civilizadas.
Já não interessa à cidadania dos tempos modernos, a instalação de uma ordem jurídica, de cunho positivista, mas, necessariamente, a construção de uma ordem jurídica justa e efetiva, onde os valores humanos prevaleçam sobre os interesses do materialismo brutal.
A infeliz Medida Provisória n° 1.570, de 26 de março de 1997 surgiu natimorta, com vestes quaresmais, sem perspectivas de ressurreição no universo jurídico deste País, já anestesiado, em grande pane, pela ideologia materialista do neoliberalismo tupiniquim, em afronta total aos postulados fundamentais da Constituição da República.
A matéria processual, que veicula a indigitada Medida Provisória, caracteriza-se, em termos constitucionais, como ato de competência do Congresso Nacional, que não pode delegá-la à legiferância presidencial (CF, arts. 22, I e 48), sob pena de violação do princípio da separação dos Poderes da União (CF, arts. 2° e 60, § 4°, III).
Somente à União, através do Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, observado o devido processo legal, compete legislar, privativamente, sobre direito processual (CF, arts. 22, I e 48), não se autorizando, constitucionalmente, nesta seara, a edição de Medidas Provisórias.
Os diversos atentados cometidos pela Medida Provisória n° 1.570/97 contra a Constituição Federal, na linha de abusos de tantas outras que compõem o Estado de exceção, nos dias atuais, e, especialmente, aqueles atos atentatórios ao livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação, bem assim ao exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, com reflexos negativos no cumprimento das decisões judiciais e na segurança interna do País (CF, art. 85, caput, incisos II, III, IV e VII), tipificam, em tese, crime de responsabilidade do Sr. Presidente da República, passível de julgamento, com decretação de impeachment, pelo Senado Federal, se admitida a acusação por dois terços da Câmara dos Deputados (CF, art. 86, caput, §1°, II), sujeitando-se à perda do cargo em processo político-administrativo das Casas Congressuais.
O princípio da responsabilidade dos governantes, nos governos democráticos, fora adotado, desse modo, pela Constituição da República Federativa do Brasil, em termos expressos (CF, art. 85 e 86).
A redação, para o segundo turno, com recente aprovação em primeiro turno, no Senado Federal, da Proposta de Emenda à Constituição n° 1, de 1995, visando alterar os arts. 48, 62 e 84 da Constituição Federal, outorga ainda amplos poderes ao Sr. Presidente da República para legislar por Medidas Provisórias sobre matéria da competência privativa, comum e concorrente da União (CF, arts. 22, I a XXIX; 23, I a XII e 24, I a XVI), sem ressalvas dos princípios sensíveis e cláusulas de eternidade, a exemplo dos direitos e garantias fundamentais, quase sempre violentados pela ação normativa e nocivamente duradoura das Medidas Provisórias do Poder central.
Ademais, com a malsinada Proposta, as Medidas Provisórias poderão vigorar por um prazo de até seis (06) meses, a contar de sua publicação, somando-se a esse prazo o período de recesso das atividades do Congresso Nacional (art. 62, § 11).
Consagra-se, por último, na aludida Proposta, a impunidade presidencial, por abusos cometidos, através das Medidas Provisórias publicadas até a data da promulgação da referida Emenda, avalizando-se tais abusos até deliberação do Congresso Nacional ou revogação pelo Presidente da República, autor e responsável por essa normatividade anômala e espúria (art. 2°), a configurar-se, desta forma, a perpetuação do abuso normativo ao alvedrio dos Poderes coniventes.
Submete-se, assim, a Constituição da República, no rolo compressor das forças governistas, a perigosa cirurgia, que certamente, deixará seqüelas aniquiladoras da aspiração popular de construir o tão sonhado Estado Democrático de Direito e de Justiça, para todos os cidadãos, que só pensamos no Brasil.