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Hermenêutica jurídica – duas visões: método e não método

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26/10/2010 às 16:56
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo foi o de apresentar duas formas, dois sentidos possíveis daquilo que se chama de Hermenêutica. Assim, de um lado foi analisada a obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito", de Carlos Maximiliano e de outro "Verdade e Método", de Hans-Georg Gadamer. Acredita-se que as duas são paradigmáticas: a primeira para a Hermenêutica objetiva ou normativa e a segunda para o Hermenêutica filosófica, que desponta como novidade para os juristas brasileiros contemporâneos.

Tratou-se de demonstrar os pontos de atrito entre estas duas idéias de Hermenêutica (método e não-método), como na questão da aplicação, da criação e no tratamento que dão ao fenômeno da linguagem. Uma, vendo nela apenas uma forma de expressão do pensamento, como terceira coisa que se interpõem entre sujeito e objeto, e a outra reconhecendo que a linguagem é muito mais do que isto, vendo na linguagem a própria condição de possibilidade do conhecimento.

A Hermenêutica jurídica de Maximiliano ocupa-se de ser a ciência dos métodos de interpretação aplicáveis ao Direito. Assim, foram expostos e analisados os processos interpretativos encontráveis na obra do jurista gaúcho. Sua obra foi reconhecida como imersa no paradigma racionalista, ou da filosofia da consciência. Destarte, para Maximiliano, interpretar é descobrir o verdadeiro sentido da coisa, chegar à sua essência. Seu pensamento, portanto, é do tipo metafísico-essencialista.

Hans-Georg Gadamer não pretende criar uma teoria geral da interpretação. Sua intenção é, antes disso, analisar as condições sob as quais se dá qualquer espécie de compreensão. Sua teoria ganhou o nome de Hermenêutica filosófica e está postada sob um solo fenomenológico. Nela a linguagem passa a ser a condição de possibilidade de qualquer conhecimento. A linguagem é que proporciona o ser à coisa. Gadamer desvela a estrutura da pré-compreensão, o que compromete o ideal de conhecimento objetivo do "Aufkläung". A historicidade, a temporalidade e a finitude passam à condições de princípios hermenêuticos.

A tese levantada na introdução deste trabalho se confirma: "Hermenêutica e Aplicação do Direito" encontra-se no âmbito do que Putnam chamou de racionalidade II. Já "Verdade e Método" trabalha na seara da racionalidade I.

Quanto à conciliação que se pretendeu alcançar entre as duas obras, pensa-se que ela de fato seja possível. Gadamer em momento algum de "Verdade e Método" afirma a inutilidade dos métodos interpretativos tal como foram descritos por Maximiliano. O que afirma o autor alemão é que estes mesmos métodos não são suficientes para garantir a verdade (para nós, a interpretação correta, o sentido verdadeiro). Absolutizá-los, como tem acontecido no Direito, é exigir deles muito mais do que podem dar.

Também Maximiliano não absolutiza o método, e diz que todos os processos interpretativos colaboram para uma correta e completa compreensão. Portanto, guardados os pontos de atrito inafastável que se pretendeu evidenciar ao longo deste estudo, as obras de Maximiliano e Gadamer não são antagônicas. Há entre elas uma diferença de profundidade em que abordam o tema Hermenêutica, uma como método e outra como modo de ser, o modo de ser da pré-sença. Combinando ambas, cada uma em seu terreno próprio de atuação, podem e devem prestar grande serviço à ciência jurídica atual.

A Hermenêutica filosófica, como espécie de racionalidade I, pode ser o novo vetor de racionalidade do Direito, garantindo a validade das conclusões/interpretações no âmbito da racionalidade II (Hermenêutica normativa de Maximiliano). Rompendo com a absolutização do método, típico da Hermenêutica tradicional, a Hermenêutica filosófica ocupa-se do que está à base dos discursos da ciência (do Direito, em nosso caso). Serve para descobrir os limites do próprio Direito e fundamentá-lo, já não mais aos moldes de uma ciência da natureza, como no racionalismo, mas como experiência que se ocupa do comportamento humano e cuja idéia de "verdade" deve sempre carregar também os traços que já sempre marcam o próprio homem: temporalidade, finitude e historicidade.

Esta é a diferença de profundidade que se afirmou existir entre as idéias hermenêuticas de Gadamer e Maximiliano. Esta, apresenta-se como típico discurso da ciência. Aquela, como instância de crítica, crítica que descobre os próprios limites do discurso jurídico e pode servir de vetor de racionalidade para (re)fundamentá-lo. A Hermenêutica filosófica é o crivo porque devem passar as conclusões alcançados ao nível da Hermenêutica tradicional para garantir a sua verdade, no sentido humano em que esta é possível.


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Notas

  1. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 442.
  2. O conceito de racionalidade não deve ser confundido com o racionalismo, corrente filosófica que surgiu principalmente a partir de Descartes. Voltar-se-á ao assunto mais adiante.
  3. STEIN, Ernildo. Filosofia como um vetor ou Standart de racionalidade do Direito: Fundamentar, um modo de ser ou um procedimento? Trabalho apresentado aos alunos do Curso de Mestrado em Filosofia da PUC/RS, 2003.
  4. Gadamer, op. cit, págs. 400-436.
  5. Ibid., p. 18.
  6. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
  7. Stein, op. cit., p. 2.
  8. Ibidem, p. 2-4.
  9. Ibidem, p. 3.
  10. Ibidem, p. 4.
  11. Paradigma pode ser conceituado como um fundo comum a partir do qual uma filosofia se apresenta com pretensões de fundar estilos de verdade, argumentação e justificação.
  12. Lénio Streck, em seus estudos, identificou a filosofia da consciência como sendo o atual paradigma epistemológico da ciência jurídica. Op. cit., p. 18.
  13. Ibidem, págs.. 17-18.
  14. Ensinamento transmitido na cadeira de filosofia geral do Curso de Direito da UFSM, em 1998.
  15. Este é um conceito de conhecimento próprio do ideal científico da modernidade, mas que não esgota todas as possibilidades do que seja conhecimento e verdade, como ver-se-á em Gadamer.
  16. DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002.
  17. GADAMER. Op. cit, pág. 39.
  18. Ibidem, p. 39.
  19. Ibidem, p. 40.
  20. CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um Processo. Campinas (SP): Ed. Minelli, 2002.
  21. Seu fascínio pelas matemáticas pode ser visto neste trecho: "Comprazia-me especialmente com as matemáticas, a exatidão e a evidência dos seus raciocínios..." Op. cit., p. 24.
  22. Descartes, op. cit., p. 13.
  23. Termo alemão que pode ser traduzido por esclarecimento ou iluminismo.
  24. CUSTÓDIO ALMEIDA, Luis S. de. Hermenêutica e Dialética: Dos Estudos Platônicos ao Encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 263.
  25. ALEXANDER, Franz G. & SELESNICK, Sheldon T. História da Psiquiatria. São Paulo: IBRASA, 1968. p. 185.
  26. Ibidem, p. 186.
  27. STRECK, op. cit., p. 65.
  28. SICHES, Luis Recasins. Nueva Filosofia de La Interpretación del Derecho. México: Editorial Porúa, 1998, p. 137.
  29. Gadamer, op. cit., p. 45.
  30. ZEIFERT, Ana Paula Bagetti. Da Hermenêutica à nova Hermenêutica o papel do operador jurídico. In: Hermenêutica e Argumentação: em busca da efetividade do Direito. Raquel Fabiana L. Spanemberger (org.). Ijuí, Caxias do Sul: Ed. Unijuí e Ed. UCS, 2003. p. 159.
  31. Ibidem, p. 159.
  32. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. E apres. de Breno Diachinger. São Leopoldo: UNISINOS, 1996. p. 9.
  33. Ibid, p. 9-10.
  34. Stein, op. cit., p. 1.
  35. ROESLER, Cláudia Rosane. A Impossibilidade de Saltar Sobre a Sombra. In: Hermenêutica e Argumentação: em busca da efetividade do Direito. Raquel Fabiana L. Spanemberger (org.). Ijuí, Caxias do Sul: Ed. Unijuí e Ed. UCS, 2003. p. 39.
  36. Ibidem, p. 53-54.
  37. Ibidem. P. 55-56.
  38. Ibidem, p. 64.
  39. Roesler, op. cit., p. 68.
  40. Carlos Maximiliano Pereira dos Santos era gaúcho nascido em Santa Maria; publicou, além da clássica "Hermenêutica e Aplicação do Direito", a obra "Direito das Sucessões" e outros de grande prestígio. Foi advogado, Deputado Federal, Ministro da Justiça e membro do S.T.F.
  41. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p. 8.
  42. Ibidem, p. 10.
  43. Ibidem, p. 13.
  44. Ibidem, p. 13.
  45. Ibidem, p. 23.
  46. Ibidem, p. 157.
  47. Ibidem, p. 140.
  48. Ibidem, p. 146.
  49. Ibidem, p. 161.
  50. Ziefert, op. cit., p. 183.
  51. Ibidem, p. 183-184.
  52. Maximiliano, op. cit., p. 179.
  53. Ibidem, p. 193.
  54. Veja-se o § 170 de "Hermenêutica e Aplicação do Direito".
  55. Ibidem, p. 103.
  56. Ibidem, p. 164.
  57. Ibidem, p. 55.
  58. Ibidem, p. 108.
  59. Gadamer, op. cit, p. 25.
  60. Ibidem, p. 25.
  61. Ibidem, p. 31.
  62. Ibidem, p. 31.
  63. Ibidem, p. 32.
  64. Ibidem, p. 59.
  65. Ibidem, p. 147-157.
  66. Ibidem, p. 408-415.
  67. Scheck, op. cit, p. 191.
  68. Gadamer, op. cit., p. 416.
  69. Ibidem, op. 400.
  70. Custódio Almeida, op. cit., p. 240-251.
  71. Gadamer, op. cit., 415.
  72. O que se observa na prática judicial é uma aplicação automática e quase impensada do senso comum teórico dos juristas.
  73. Gadamer, op. cit., p. 457.
  74. Ibidem, p. 461.
  75. Ibidem, p. 459.
  76. Ibidem, p. 461.
  77. Ibidem, p. 602.
  78. Ibidem, p. 602.
  79. Ibidem, p. 647.
  80. Ibidem, p. 687.
  81. Streck, op. cit., p. 194.
  82. Gadamer, op. cit., p. 568.
  83. Ibidem, p. 709.
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Sobre o autor
Fábio João Szinwelski

Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZINWELSKI, Fábio João. Hermenêutica jurídica – duas visões: método e não método. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2673, 26 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17707. Acesso em: 26 abr. 2024.

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