A "Takings Clause" ou "Just Compensation Clause" da Constituição dos Estados Unidos tem uma enorme importância ao estabelecer os limites do poder estatal. Tal cláusula teve origem histórica no receio de que o Estado Federal se tornasse tão poderoso, a ponto de desconsiderar o direito à propriedade privada dos cidadãos. Para garantir esse direito, foi acrescentada à 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que assim dispõe, in verbis:
"Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização. (Grifo nosso) [01]
Inicialmente, cumpre se fazer um breve distinção entre "Eminent Domain", o direito de propriedade e a "Takings Clause" ou "Just compensation Clause". O domínio eminente (Eminent Domain) não se trata do direito de propriedade. Na verdade, esse domínio é o poder que o Estado exerce potencialmente sobre todas as pessoas e os bens que se encontram em seu território. Para se valer do domínio eminente, o Estado pode estabelecer restrições e limitações ao uso da propriedade privada, tais como a desapropriação, a servidão, entre outras medidas. Esse poder eminente que o Estado detém sobre todas as coisas decorre de sua soberania. Dessa forma, pode-se dizer que o domínio eminente é um poder potencial do Estado. Quando ele é exercido de forma a limitar o direito à propriedade privada, há a necessidade de se dar uma justa indenização ao proprietário, o que é garantido nos Estados Unidos pela chamada "Takings Clause" ou "Just compensation Clause". [02]
Após uma breve introdução teórica sobre o assunto, é interessante a análise dos precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos que tratam sobre a limitação do poder do Estado e sobre a aplicação prática da cláusula prevista na 5ª Emenda à Constituição Federal. Um dos primeiros precedentes que se tem notícia é o caso Jackson v. Metropolitan Edison Co. (1974). O caso teve início quando houve a interrupção do fornecimento de energia da residência de Jackson por falta de pagamento. Inconformada com a decisão, Jackson ajuizou uma demanda com o argumento de que a interrupção do serviço de fornecimento de energia elétrica por parte de uma empresa privada violava a Constituição dos Estados Unidos. Ao proceder à análise do caso Jackson v. Metropolitan Edison Co. (1974), o Excelso Tribunal entendeu que as ações das empresas privadas estavam imunes às restrições estabelecidas pela 14ª Emenda à Constituição norte-americana e que a empresa privada poderia interromper o fornecimento de energia por falta de pagamento. [03]
Já no caso Moore v. City of East Cleveland (1977), discutia-se uma norma estadual de Cleveland que limitava o número de pessoas que podiam habitar as edificações. Ao analisar o exercício do poder regulamentar do Estado, a Suprema Corte dos Estados Unidos chegou à conclusão de que a norma estadual violava o direito de Moore, ao exorbitar o poder regulamentar estatal, criando uma clara limitação do direito de propriedade, ao se definir quem pode ou não habitar uma residência. Por fim, a norma de Cleveland violava a "takings Clause", ao se criar uma limitação ao direito de propriedade sem a justa compensação financeira. [04]
No que se refere aos limites do poder estatal, não se pode deixar de mencionar o caso Penn Central Transportation Co. v. New York City (1978). Os fatos que deram origem ao caso tiveram início quando uma Lei de Nova Iorque de 1965 designou certas estruturas e vizinhanças como pontos de referência da cidade. Em razão disso, Penn Central foi proibida de construir um centro comercial na parte superior de sua edificação. Inconformada com a proibição, a empresa ajuizou uma demanda com o argumento de que a lei estadual constituía uma limitação do direito de propriedade, o que violava as Emendas 5ª e 14ª à Constituição Federal. [05]
No mérito do presente caso, a Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que as restrições impostas não impediam que a Penn Central construísse sobre o terminal. A norma estadual apenas limitava o tipo de construção a ser realizada, de forma a não se descaracterizar a região. Dessa forma, entendeu-se que a norma estadual não causava violação à cláusula do "Just Compensation". [06]
Outro precedente que não pode deixar de ser citado é o caso Hawaii Housing Authority v. Midkiff (1984). O caso teve origem quando o estado do Hawaii adotou uma série de medidas para combater a concentração de propriedades nas ilhas, ao criar um Estatuto da Terra de 1967. Essa norma foi questionada perante a Suprema Corte com o argumento de que a Lei da terra violava à 5ª emenda à Constituição Federal. Numa decisão unânime, a Corte entendeu que o estado do Hawaii não poderia estabelecer restrições à propriedade sem a justa compensação. [07]
Já em 1987 a Suprema Corte volta a se deparar com um questionamento sobre os limites do poder estatal no caso Nollan v. California Coastal Commission. O caso teve início quando uma comissão do estado da Califórnia passou a exigir dos proprietários de terrenos na beira mar, como condição para a obtenção de um alvará de construção, que fosse mantida uma via de acesso aberta ao público. Indignados com a servidão de passagem imposta pelas autoridades locais, indagou-se perante a Suprema Corte dos Estados Unidos se o estabelecimento de restrições à propriedade privada dessa natureza não violava a "takings Clause" e as Emendas 5ª e 14ª à Constituição dos Estados Unidos. [08]
Ao analisar o caso, a Corte entendeu que houve uma clara violação do direito à propriedade. O Tribunal asseverou que o interesse da coletividade poderia ser garantido com a manutenção de uma faixa de terra acessível ao público ao longo da costa. No entanto, a Corte firmou o posicionamento de que se o estado da Califórnia quisesse usar seu poder para obrigar a servidão de passagem nos terrenos localizados na beira mar, o Estado deverá pagar uma justa compensação aos proprietários dos terrenos afetados pelo uso público de suas terras. [09]
Cabe, ainda, se fazer a análise de um precedente datado de 1992, o caso Lucas v. South Carolina Coastal Council. Lucas comprou 02 (dois) lotes na Ilha de Palms. Ele pretendia construir uma casa nos lotes adjacentes. Em 1988, uma norma estadual estabeleceu a proibição de construção de estruturas permanentes na ilha de Palms. A norma estadual buscava proteger o meio ambiente contra a erosão e a destruição das barreiras naturais da ilha. [10]
A grande polêmica que chegou ao conhecimento da Suprema Corte era se a proibição total de construção nos terrenos da ilha representava uma violação às Emendas 5ª e 14ª à Constituição Federal. A Corte entendeu que os terrenos de Lucas tornaram-se sem nenhum valor em decorrência da norma estadual. Também se firmou o posicionamento de que quando o proprietário sofre uma restrição que retira todos os benefícios econômicos do uso, gozo e fruição da propriedade em nome do interesse público, na verdade, se está diante de um "taking" que deve ser indenizado pelo Estado, em razão da "just compensation Clause". [11]
No que tange às restrições do poder estatal, cumpre destacar o caso Dolan v. City of Tigard (1994). O caso teve origem quando Dolan pediu uma permissão da cidade de Tigard para expandir sua loja e o estacionamento. A cidade concordou com o pedido de Dolan com a condição de que ela cumprisse algumas exigências administrativas para a concessão do alvará de construção, tais como a cessão de uma área do seu terreno para a construção de uma passagem de pedestres e, ainda, permitir a colocação de um canteiro no local. [12]
Posteriormente, questionou-se perante a Suprema Corte se as condições estabelecidas pela cidade violavam a "takings Clause" prevista na 5ª Emenda à Constituição Federal. No mérito, o Excelso Tribunal entendeu que houve violação. A Corte estabeleceu que a cidade não poderia exigir que Dolan abrisse mão de parte de sua propriedade como condição para a obtenção de um alvará de construção e habite-se. Além disso, cumpria ao Estado estabelecer o nexo de causalidade entre o legítimo interesse estatal e o interesse privado, o que não restou comprovado no presente caso. [13]
Também cumpre destacar o caso Kelo v. City of New London (2005). O caso teve início quando New London, uma cidade em Connecticut, usou seu domínio eminente para desapropriar propriedades para vendê-las a empreiteiros privados, com o argumento de que a terra seria melhor aproveitada com a criação de empregos e aumento da arrecadação de tributos. Kelo questionou a medida, com o argumento de que a cidade violou a "taking Clause" da 5ª Emenda. Kelo afirmou que destinar a terra para grupos privados não era dar destinação pública à propriedade. [14]
No que tange ao caso Kelo v. City of New London (2005), a Suprema Corte firmou o posicionamento, por 05 (cinco) votos a 04 (quatro), de que a cidade não estava simplesmente retirando a propriedade privada para beneficiar um determinado grupo de indivíduos, mas a cidade estava seguindo um plano de ordenamento territorial e de desenvolvimento econômico. Por fim, entendeu-se que a 5ª Emenda não deveria ser interpretada de forma literal, uma vez que a expressão "uso público" deveria ser entendida como "propósito público". [15]
Por todo o exposto, sem ter a menor pretensão de esgotar o tema; e considerando a necessidade de maiores estudos sobre "Eminent Domain" no direito norte-americano; entende-se, salvo melhor juízo, que a "Just Compensation Clause" representa um importante instrumento estabelecido pela 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, ao se exigir o uso, o propósito e o interesse público, bem como o pagamento de justa indenização nos casos de restrições impostas pelo Estado ao exercício pleno do direito de propriedade privada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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SCHIESARI, Nelson. Direito Administrativo: Coletânia Atualização Jurídica. 1ª Ed. São Paulo: Hemeron, 1975.
NOTAS:
- ESTADOS UNIDOS. 5ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos. Disponível em: <http://www.embaixada-americana.org.br/index>. Acesso em: 22 out. 2010.
- SCHIESARI, Nelson. Direito Administrativo: Coletânia Atualização Jurídica. 1ª Ed. São Paulo: Hemeron, 1975, p. 97.
- Jackson v. Metropolitan Edison Co. (1974). Disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=us&vol=419&invol=345>. Acesso em: 16 out. 2010.
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