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Sistema processual penal brasileiro atual.

Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli"

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29/10/2010 às 14:01
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4 SISTEMA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL

Houve um desenvolvimento progressivo dos métodos de aplicação e realização do processo alhures discutido, com o fim de aperfeiçoar um sistema que melhor se adequasse às aspirações, da sociedade contemporânea, de justiça, igualdade, dignidade da pessoa humana e bem estar social, fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro [27] (artigos 1º e 3º da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988). São as constituições o documento no qual os direitos e garantias dos cidadãos, conquistados a duras penas, estão consagrados, pondo o constitucionalismo como um dos grandes avanços do mundo jurídico. Impõe-se considerar as previsões constitucionais relativas ao processo penal e apontar qual o sistema processual adotado pela Magna Carta.

A Constituição da República Federativa do Brasil é considerada a lei maior do nosso ordenamento jurídico, por isso é também chamada de Carta ou Lei Magna (magno, do latim Magnus,quesignificagrande). Assim considerada, todas as normas ditas infraconstitucionais, isto é, que estão abaixo da Constituição, devem ser elaboradas tendo como parâmetros os princípios e disposições constitucionais. No mesmo passo, as normas já existentes, necessariamente, têm que possuir texto compatível com suas disposições.

Nesses termos, Moraes destaca a importância da Constituição para aferição da validade das leis e sua posição hierarquicamente superior às demais normas que compõe o sistema jurídico brasileiro, como a seguir:

Em primeiro lugar a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a constituição a hierarquia do sistema normativo é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração normativa e seu conteúdo. Além disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna àquelas produzidas pelo poder legislativo, no exercício da função legiferante ordinária. Dessa forma, nelas o fundamento do controle é o de que nenhum ato normativo, que lógica e necessariamente dela decorre, pode modificá-la ou suprimi-la. [28]

Vê-se então, com amparo na lição do constitucionalista, que nenhuma norma, seja de natureza substancial ou formal, pode estar em descompasso com as disposições presentes no bojo da Constituição. Esta compatibilidade entre as leis ditas infraconstitucionais e a Lei Maior deve ser ainda mais cuidadosamente analisada em se tratando de normas anteriores à promulgação da Constituição vigente, caso em, que confirmada essa compatibilidade, a norma será recepcionada, senão a norma não poderá fazer parte da ordem, do sistema jurídico aplicável.

Nasce assim, em vista da afirmação anterior, questão de grande relevância para a análise do sistema processual penal que diz respeito aos fundamentos dessa superioridade do texto constitucional sobre as demais disposições normativas. É o que se considera no subitem seguinte.

4.1 Supremacia da Constituição: constitucionalismo

A idéia de uma norma que se encontra acima de todas as demais disposições normativas de um ordenamento jurídico é uma decorrência do movimento constitucionalista o qual não se sabe precisar quando teria sido iniciado, mas que tem, reconhecidamente, como marco a Magna Carta do rei João Sem Terra, que data de 1215. Modernamente, a noção de constitucionalismo, em uma das várias acepções atribuídas ao termo, se confunde com a teoria da supremacia da Constituição [29].

O movimento constitucionalista tem como fundamento dois pontos principais: a limitação do poder do Estado e a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo, ambos elencados pelo constitucionalista Lenza [30] e pelo cientista político Dallari [31]. Ao conceberem o constitucionalismo um conjunto de normas fundamentais tendentes à limitação dos poderes do Estado, em seu início concentrados nas mãos do rei, e a proteção dos direitos dos cidadãos, Dallari e Lenza citam como primeira manifestação do constitucionalismo as normas do povo hebreu. As leis hebréias tinham origem teocrática e eram utilizadas pelos profetas para fiscalizar as ações dos reis, que deveriam seguir estritamente suas prescrições, o que prevenia ação abusiva contra os cidadãos. A Magna Carta de João Sem Terra também confirma a presença destes dois fundamentos, pois foi uma imposição dos barões ingleses com o fim de limitar os poderes do rei e, embora tenha sido imposta no interesse de uma classe, indiretamente beneficiou também os cidadãos mais pobres.

Por não ser o foco do estudo, não será aprofundada a análise da teoria de Hans Kelsen, ícone do constitucionalismo que imaginou o ordenamento jurídico como uma pirâmide de normas escalonadas com a Constituição em seu ápice. É suficiente para os fins aqui propostos explanar o comentário feito por Dallari, que assim resumiu a teoria de Kelsen:

[...] KELSEN chega a uma conclusão semelhante. Seu ponto de partida é uma norma fundamental hipotética [...] Com base naquela norma fundamental hipotética os membros do povo selecionam as normas de comportamento social que consideram fundamentais. Essas normas, que existem na consciência das pessoas, formam uma primeira constituição que é abstrata ou teórica, porque ainda não se externou como norma jurídica. Num terceiro momento, pelos meios próprios que são os órgãos reconhecidos pelo Direito, aquelas normas são expressadas como normas jurídicas fundamentais, tendo-se então uma constituição positiva. [32]

Em consonância com o comentário acima, primeiro surge no meio social a consciência da necessidade de normas precípuas a serem observadas que posteriormente são positivadas, escritas, formando as constituições. Nas constituições, são estabelecidas as regras que organizam e estruturam o Estado e também as que deve seguir no desempenho de suas atividades, no exercício do poder que lhe é concedido pelo povo. Ao determinar como deve agir aquele ente, limitam-se os campos de sua atuação e os modos a serem utilizados, protegendo os cidadãos das arbitrariedades que ocorreriam caso o Estado pudesse atuar sem restrições, com poder ilimitado. O texto constitucional também arrola os anseios sociais, os valores e direitos consagrados naquela sociedade como básicos para sua subsistência. Estes direitos básicos, considerados fundamentais, servirão de referência para todas as regras posteriores que somente serão consideradas válidas se não confrontarem ou suprimirem as determinações das normas fundamentais.

Válidas são, ainda, as ponderações de Amaral ao tratar do controle das leis perante a Constituição que é decorrência da posição superior ocupada pela Constituição, in verbis:

Por outro lado, o Direito é um sistema é uma ordem da conduta humana. E uma ordem é um sistema de regras. O Direito não é uma regra, como às vezes se diz, mas um conjunto de regras que apresenta uma unidade sistêmica. [...] Vale dizer, tudo depende do chamado fundamento de validade das disposições e atos normativos, como diria Kelsen (Teoria General del Derecho y Del Estado, 1979: 129/132).

E esse fundamento de validade são normas pressupostas, anteriores, de hierarquia superior e logo de obediência necessária, [...] e todas as normas integrantes de um dado sistema jurídico (ordenamento) encontram seu fundamento de validade – como o efeito a procura de sua causa – em última instância, na norma fundamental do sistema, cuja força obrigatória não procede de outra, mas é auto-evidente, ou pelo menos, assim presume-se. [33]

Amaral descreve, em referência também a Kelsen, o ordenamento jurídico e o Direito como um conjunto de normas. É preciso relembrar o conceito de sistema jurídico apresentado por Coutinho [34] no qual apresenta como elemento essencial para a definição de um sistema o que chama de "princípio unificador", que põe os componentes do sistema em relação recíproca e que "orquestra" todo o conjunto voltando-o para um fim específico. Amaral expressa a idéia de que, no ordenamento jurídico, este princípio básico unificador de todo o sistema é a Constituição, sem a qual não haveria uma ordem jurídica, mas várias regras desordenadas e confrontantes entre si. Para determinarmos a adequação ou inadequação das regras de um sistema jurídico aos fins almejados pela sociedade ao qual é imposto, é precípua a existência de uma norma fundamental pressuposta e que deve ser obedecida por todas as outras.

4.2 Disposições constitucionais processuais

A Constituição não determina expressamente qual seja o sistema processual por ela adotado. Apesar disso, com fulcro nas características de cada sistema processual analisadas anteriormente e observados os dispositivos constitucionais que tratam dos princípios e das regras básicas que devem reger o processo no ordenamento jurídico, poder-se-á fixar o sistema consagrado na nossa Lei Magna.

Como outrora exposto, com algumas variações, os sistemas processuais mais aplicados no decorrer das eras até a atualidade são o inquisitivo e o acusatório que tem como principal distinção o exercício de atividades processuais, no primeiro, concentradas em um único órgão e, no segundo, distribuídas entre diferentes partes. A divisão dessas funções dentro do processo no sistema de partes é justificada pelos mesmos fundamentos apresentados para a divisão das funções do Estado, visto que o processo é um meio utilizado para aplicação de um dos aspectos deste poder, a jurisdição. Dallari, ao explicar a divisão dos poderes ou funções do Estado, assim se manifesta:

De fato, quando se pretende desconcentrar o poder, atribuindo o seu exercício a vários órgãos, a preocupação maior é a defesa dos indivíduos, pois, quanto maior for a concentração do poder, maior será o risco de um governo ditatorial. Diferentemente, quando se ignora o aspecto do poder para se cuidar das funções, o que se procura é aumentar a eficiência do Estado, organizando-o da maneira mais adequada para o desempenho de suas atribuições. [35]

Assim se dá no Processo. A concentração de poderes típica do sistema inquisitório é a ideal para a manutenção de um poder arbitrário e que desconsidera qualquer forma de garantia de diretos individuais. Não é por nada que o modelo inquisitório encontrou guarida exatamente em governos tidos como ditatoriais como na monarquia e no império, em Roma, durante a inquisição realizada pela Igreja Católica, no governo autoritário de Napoleão na França e durante as ditaduras militares brasileiras, aliás, período no qual foi preparado o atual Código de Processo Penal, sob influência do Código de Napoleão de 1808. Ainda que se descartasse a tendência humana para corrupção e abuso do poder presente ou, no mínimo, o risco de se atribuir todo o poder a alguém, restaria ainda o fundamento da falibilidade humana, vinculado à questão da eficiência, porque o ser humano é falho. Deixar sob a responsabilidade de uma única pessoa todas as atividades pode comprometer o resultado final que não será desenvolvido de modo tão completo e profundo como o é quando existem órgãos especializados para cada tarefa.

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No sistema jurídico brasileiro, os litígios resultantes de qualquer ameaça ou lesão efetiva do direito devem ser submetidos aos órgãos judiciários, segundo dispõe o art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal [36] que, nesse caso, adota o sistema único de jurisdição com monopólio da aplicação e solução de conflitos, ao menos em última instância social, dado ao poder judiciário.

Como visto, a Constituição atribui aos órgãos do poder judiciário o monopólio do exercício da jurisdição. Em outras palavras, somente ao judiciário é dado o poder de julgar, definitivamente, os conflitos sociais. Em outros dispositivos, atribui a pessoas diversas a função de acusar. No art. 5º, inciso LIX, da Constituição, lê-se: "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal" [37]. Já no art. 129, inciso I do texto magno, tem-se: "São funções institucionais do Ministério Público [...] promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei" [38], logo, a função de acusar compete, nos termos da Constituição, com exclusividade, ao Ministério Público e, em casos excepcionais, ao ofendido. Atente-se que o exercício privado da ação penal é característico do modelo acusatório genuíno ou puro. A Constituição também consagra aos réus o direito à ampla defesa no art. 5º, inciso LV [39].

Deste modo, a Constituição assegura a realização de um processo de partes, no qual cada função é atribuída a um participante distinto: ao juiz cabe julgar, ao Ministério Público ou, excepcionalmente, ao ofendido, acusar e ao réu é dado o direito de se defender. Confirma-se a prescrição de um processo de partes nos termos da Constituição, característica principal do sistema acusatório.

A publicidade é outro fator do sistema acusatório ou de partes que, por imposição constitucional, deve prevalecer nos processos em geral, ressalvado o interesse público, conforme art. 93, inciso IX da Constituição Federal:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; [40]

Enquanto no sistema inquisitório o réu era visto como mero objeto de investigação, na Constituição lhe é assegurado o direito de defesa e estabelecida a igualdade entre os litigantes, conforme art. 5º, caput [41]. A divisão de funções no processo é ainda assegurada pelo princípio do juiz natural, encontrada no art. 5º, incisos XXXVII – "não haverá juízo ou tribunal de exceção" [42] – e LIII – "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" [43]. No momento em que a Constituição determina que somente realize o processo uma autoridade com competência predeterminada legalmente e proíbe a criação de tribunais para julgar causas específicas, visa a manter um julgador imparcial, isto é, que não privilegie qualquer das partes, dando-lhes tratamento igualitário, decidindo de acordo com os princípios e normas jurídicas, não por influências completamente estranhas ao direito.

Quando trata da questão da imparcialidade do juiz, Coutinho faz interessante crítica:

A visão tradicional não dá conta, coerentemente, da explicação do papel do juiz, o que pode ser constatado a partir da falta de referenciais semânticos adequados aos conceitos que oferta. Órgão estatal desinteressado; imparcialidade; neutralidade e outros elementos formam um pano de fundo que só faz surgir uma irreal versão ao seu papel.

Não é por outro motivo que muitos têm o juiz como um semideus (ou quase), desideologizado, o que é inaceitável. [44]

A posição acima mencionada deste professor pode ser questionada, uma vez que o entendimento defendido por ele não condiz com a realidade. É reconhecido que o ser humano, por natureza, é permeado de valores e princípios que sempre direcionarão sua opinião diante de um fato. A formação técnica, cultural e política de um juiz sempre será considerada em sua tomada de posição, ao apreciar um litígio. Todavia, não é essa a visão de imparcialidade que o juiz deve preservar no ordenamento jurídico. O que a lei processual impõe não é um juiz indiferente, apático ou insensível aos casos que lhe são postos, mas sim que seja isento e insusceptível de dar qualquer vantagem a uma parte em prejuízo da outra. Um exemplo elucidará essa posição: Um juiz que indefere um pedido de prisão preventiva baseada no clamor público por entender que a liberdade é a regra e que sua restrição somente pode ser realizada em caráter excepcional, não considerando este juiz o clamor público como fundamento para a medida, está claramente influenciado por uma formação humanística, voltada para dignidade da pessoa humana, com uma análise da necessidade social que lhe capacita a diferenciar ordem pública de clamor público. Tal situação é bem diferente de um juiz que nega o pedido de prisão por tratar-se o acusado de um grande amigo seu. Basta uma breve consulta às causas que ensejam a suspeição e o impedimento do julgador para entender-se qual o sentido da imparcialidade que a lei pretende.

Embora não sejam as únicas disposições processuais presentes no texto constitucional relativas ao processo que devem ser observadas na atividade do Estado, entre elas a desenvolvida no âmbito da jurisdição penal e que permite inferir quais os elementos identificadores do sistema de processo adotado, são suficientes e levam à conclusão de que o sistema processual adotado pela Carta Magna é sem dúvidas o acusatório. Senão observe-se: o processo deve ser, em regra, público; as funções no processo são exercidas por diferentes partes, sendo que ao Ministério Público ou ao ofendido cabe acusar, ao juiz (natural e imparcial), julgar e, ao réu é dado o direito de defesa e outras garantias (devido processo legal, contraditório e ampla defesa e igualdade). Inegável, portanto, por esses argumentos, a adoção do sistema acusatório pela Constituição.

Não há lugar para a afirmação por parte de alguns de que há um sistema processual misto no Brasil. Tal afirmação se deve ao fato de o inquérito policial ser realizado, por disciplina do Código Processo Penal, de modo sigiloso e em que todos os atos e poderes se concentram nas mãos do investigador, que instrui, na maioria das vezes, a acusação. A discussão é explanada por Lago [45] que cita como defensor desta corrente Hélio Tornaghi. Discordante da posição por um sistema misto, Lago afirma que o sistema processual penal não pode ser classificado com base nas características do inquérito policial, por dois motivos: primeiro porque o inquérito, embora componha a persecução penal, consiste em procedimento administrativo, não tendo natureza judicial; segundo, por ser possível a dispensa do inquérito policial quando o acusador tem elementos suficientes para realizar a acusação.

Constata-se que o sistema processual penal brasileiro atual caracteriza-se como acusatório e tal conclusão independe da consideração do inquérito policial como parte do processo penal ou não. Conforme analisado, o sistema processual adotado pela Constituição que é a lei suprema é o acusatório, logo, suas determinações relativas ao processo devem ser aplicadas a todos os processos realizados pelo Estado, ainda que no âmbito da atividade administrativa, qualquer que seja a atividade desenvolvida pelo estado. Destaque-se que, pela Teoria da Processualidade Ampla [46], mesmo os processos desenvolvidos no âmbito do direito privado devem respeitar as garantias constitucionais. Todas as normas do Estado brasileiro fazem parte de um sistema que tem como norma fundamental a Constituição e a ela devem se adequar, sob pena de serem inconstitucionais. No caso de terem sido elaboradas antes da vigência do texto magno e estarem em desacordo com a Lei Maior, como é o caso do Código de Processo Penal, devem ser revogadas. Ainda que uma lei seja formalmente válida deve ser interpretada conforme os ditames constitucionais e, naquilo que conflitar com a Constituição, deve-se proceder a uma interpretação conforme a mesma.

Não tem amparo jurídico, ainda, o argumento usado por aqueles que defendem a permanência de um inquérito desenvolvido sob a influência de princípios inquisitórios que consistem na necessidade de proteção à investigação que seria prejudicada caso se permitisse a ampla participação do acusado. Ora, não se podem imputar aos cidadãos as conseqüências maléficas da falta de estrutura dos órgãos estatais, suprimindo os direitos básicos relativos à dignidade humana. Mesmo que o inquérito policial seja considerado processo (segundo a teoria contemporânea da ampla processualidade) ou procedimento (teoria clássica), é impossível não se reconhecer que, consistindo em principal peça a instruir a ação penal, os vícios decorrentes da inobservância dos preceitos fundamentais da Constituição contaminam toda a instrução no âmbito estritamente judicial.

Ao prever o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial ou administrativo, no art. 5º, inciso LV [47] e o princípio da razoável duração do processo e celeridade de sua tramitação no âmbito judicial e administrativo, no inciso LXXVIII [48], a Constituição acolhe a idéia de um processo em outras formas de exercício do poder estatal, ao passo que assegura a observância das garantias e direitos fundamentais em qualquer uma de suas funções.

De mesmo sentido é o entendimento de Baracho que deste modo advoga: "O direito ao juiz competente, o direito ao juiz natural e a imparcialidade do julgador são garantias de caráter constitucional e judicial. São Elas de significado genérico, que atingem todo tipo de processo e dos ordenamentos jurisdicionais." [49]

Ainda sobre a discussão da aplicação dos princípios constitucionais, atendendo ao modelo acusatório previsto na Constituição em qualquer área da atuação do Estado, importa a lição do professor Pessoa:

Esta atualíssima concepção metodológica, extremamente moderna e sintonizada com os atuais anseios sociais, vislumbra o direito processual, na lição de Dinamarco (A instrumentalidade do processo, Ed. RT, 1986, p. 42), como um conjunto de princípios, institutos e normas estruturados para o exercício do poder em conformidade com determinados objetivos. Desta concepção instrumental do processo, a noção de processualidade migrou para abranger cada vez mais o exercício dos Poderes Executivo e Legislativo. [50]

Em um Estado Social e Democrático de direito no qual o Estado está cada vez mais presente no cotidiano dos governados, o processo surge como um instrumento não somente de legitimação das ações do Estado, como também de garantia, de fiscalização da obediência às determinações legais e aos preceitos do bem comum. Já não se admite a visão que restringia o processo e suas garantias somente ao âmbito jurisdicional.

Bonfim adota um posicionamento um tanto radical em relação à classificação dos sistemas processuais. Em decorrência da visão moderna de processo como uma relação trilateral, considera o autor que o único método que realmente poderia ser processual seria o acusatório, nos seguintes termos:

Assim, a denominação "processo inquisitório" parece-nos incorreta, pois não foi e não pode ser, obviamente um verdadeiro processo. Se este se identifica como actum trium personarum, no qual perante um terceiro parcial comparecem duas partes parciais, situadas em pé de igualdade e com plena contraditoriedade, e apresentam um conflito para que aquele o solucione....algumas das características que apontamos como próprias do sistema inquisitório levam ineludivelmente à conclusão de que esse sistema não pode permitir a existência de um verdadeiro processo. [51]

Para Bonfim, a existência de uma relação processual exige o contraditório, a igualdade de partes, um órgão julgador imparcial, dentre outros elementos somente presentes em sistema acusatório de modo que ou se tem um sistema acusatório ou não há, na visão do autor, sistema processual. Ressalte-se que o próprio autor reconhece que tal assertiva somente se cogitaria se a referência for a noção moderna de processo.

Mais criticável ainda, considera-se, o comentário tecido por Coutinho ao se posicionar a respeito da natureza do sistema processual penal brasileiro, quando afirma ser o sistema brasileiro eminentemente inquisitório, nos termos a seguir transcritos:

Um sistema com a referida estrutura [o inquisitório], como parece elementar, tende a prevalecer no tempo, embora passível de mudanças secundárias [grifo do autor]. E assim que permanece, na essência, para nós, até hoje; e continuará prevalecendo [...]

Não nos interessa, no espaço limitado do presente ensaio, aprofundar o estudo do sistema acusatório [grifo do autor], assim como as variações que levaram ao dito sistema misto [grifo do autor]. Basta, por ora, verificar suas características fundamentais, possibilitando um cotejo com aquilo que foi anotado quando da análise do sistema inquisitório, este sim o pilar-mor do nosso sistema processual penal [!]. [52]

Embora, no decorrer de sua obra, Coutinho demonstre seu descontentamento diante da ausência de garantia do sistema inquisitório, eleva-o a "pilar-mor" do sistema processual brasileiro. Considera-se que tal entendimento é resultado da herança liberal, da visão restrita e limitada dos códigos vistos como capazes de regulamentar completamente os chamados ramos do Direito que até os dias de hoje impedem muitos juízes e doutrinadores de analisarem as disposições infraconstitucionais sob a ótica da Lei Maior, a Constituição Federal.

Mesmo considerando que o Código de Processo Penal tenha inúmeras disposições de natureza inquisitória, não se pode admitir que estas prevaleçam e suprimam as disposições da norma fundamental do Estado, fazendo-se necessária, nesses casos, uma releitura constitucional dos institutos que conflitam com a Constituição, como afirma Rangel, ao se referir a dois dispositivos do Código de Processo Penal que são resquícios do sistema inquisitório e que, portanto, conflitam com o texto magno: "O difícil para determinados operadores jurídicos é trabalhar com a constituição e não com regras vetustas dos arts. 384 e 385 CPP. Nesse caso, a interpretação conforme a constituição irá socorrê-los." [53]

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Sobre o autor
Levy Zend Ferreira da Silva

Advogado atuante nas áreas Trabalhista e sindical, família e sucessões em Teresina/PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Levy Zend Ferreira. Sistema processual penal brasileiro atual.: Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2676, 29 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17736. Acesso em: 28 mar. 2024.

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