A preocupação com o abuso do poder político nas eleições ganhou peso com a edição da Emenda Constitucional n.º 16/97, a qual autorizou pela primeira vez no Brasil a reeleição, para um único período subseqüente, do Presidente da República, dos Governadores de Estado e do Distrito Federal, dos Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos1. Ou seja, permitiu-se que os chefes do Poder Executivo (Federal, Estadual e Municipal) disputassem as eleições sem precisar se afastar dos cargos já ocupados.
Desta feita, considerando a Constituição, em essência, um instrumento jurídico limitador do fenômeno político, é nela onde primeiro encontramos previsão de coibição ao abuso de poder político nas eleições2. No § 9º, art. 14, da Carta Magna, o constituinte expressa sua vontade de proteger a normalidade e a legitimidade das eleições contra abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Nas normas infraconstitucionais, o Código Eleitoral, além da cláusula geral expressa no art. 2373, traz como tipo de crime eleitoral (art. 300) "valer-se o servidor público da sua autoridade para coagir alguém a votar ou não votar em determinado candidato ou partido", podendo ser punido com até seis meses de detenção; e a Lei 9.504/97, em seus artigos 73 a 78, elenca um rol de condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais.
Dentre as hipóteses de condutas vedadas encontramos: (a) ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; (b) usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram; (c) ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal; (d) fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter sociais custeados ou subvencionados pelo Poder Público; entre outras hipóteses previstas na lei.
Conforme os princípios que norteiam o nosso Direito Público, os governantes (e agentes públicos em geral) devem, obrigatoriamente, agir conforme o estabelecido na Constituição e demais leis vigentes no ordenamento jurídico, de forma a sempre buscarem o interesse coletivo.
Para tanto, lhes são conferidos deveres-poderes, ultrapassando os limites estabelecidos pela lei, ou desviando-se da finalidade imposta por ela, atuam, necessariamente, com "abuso de poder".
Neste sentido, Hely Lopes Meirelles, ensina que:
O uso do poder é prerrogativa da autoridade. Mas o poder há que ser usado normalmente, sem abuso. Usar normalmente do poder é empregá-lo segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências do interesse público. Abusar do poder é empregá-lo fora da lei, sem utilidade pública. O poder é confiado ao administrador público para ser usado em benefício da coletividade administrada, mas usado nos justos limites que o bem-estar social exigir. A utilização desproporcional do poder, o emprego arbitrário da força, a violência contra o administrado, constituem formas abusivas do uso do poder estatal, não toleradas pelo direito e justificadores dos atos que as encerram. O uso do poder é lícito; o abuso, sempre ilícito. Daí por que todo ato abusivo é nulo, por excesso ou desvio de poder.4 [grifo nosso]
Destarte, ainda mais grave parece ser o comportamento abusivo do agente público que tem como escopo influir no processo de escolha de representantes, desviando-se do interesse público e ferindo o regime democrático, desequilibrando a competição eleitoral.5
Mauro Almeida Noleto ressalta que "governar nesse período exige, além da recomendada boa-fé, muita cautela"6, e isto tendo em vista que, além de observar os princípios constitucionais da Administração Pública, quais sejam, a moralidade, impessoalidade, publicidade, legalidade e eficiência, o administrador não pode praticar (de três a seis meses antes do pleito, conforme o caso) certos atos de gestão como: criar programas sociais, demitir ou contratar servidores, transferir recursos para entes federativos, fazer propaganda institucional, entre outros, sob pena de ter o registro ou o diploma cassados.
Pode-se afirmar, portanto, que este tipo de abuso consiste nas condutas praticadas por agentes públicos no exercício de função, cargo ou emprego na administração pública, direta ou indireta, que possam afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos no processo eleitoral, arranhando, assim, a legitimidade e a normalidade das eleições.7
Aqui, segundo lição de Ademir Ismerim Medina8, deve-se interpretar "agentes públicos" de maneira ampla, de modo a abarcar todos aqueles que exerçam (mesmo que transitoriamente, atividade pública, remunerada ou não, por meio de qualquer forma de investidura ou vínculo - eleição, nomeação, designação, contratação etc.) mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta, indireta ou fundacional.
Necessário ressaltar ainda que, conforme entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, "somente haverá abuso de poder político, juridicamente relevante, se houver a possibilidade concreta de a conduta modificar o resultado das eleições."9
Assim, praticando o agente público qualquer das hipóteses a ele imputadas como vedadas, se não houver prova suficiente de que aquela conduta foi potencialmente importante para desigualar a competição, não será ele punido nos termos da lei, em que pese ter agido contra a lei, por não ter ocorrido o comprometimento da normalidade e legitimidade das eleições (bem jurídico tutelado).
Neste sentido foi, por exemplo, o julgamento do Recurso Ordinário n.º 754, no qual o Tribunal entendeu pela não configuração do abuso do poder político em entrevista concedida por candidato a emissora radiofônica que cobria determinado evento local, e istopor considerar que não houve potencialidade na conduta que pudesse influenciar o resultado do certame 10.
De modo diverso, no entanto, foi o julgamento que envolveu o Governador da Paraíba (Cássio Cunha Lima, do PSDB), resultando na cassação do diploma de Governador de Estado. O então Governador e candidato a reeleição foi acusado de utilizar programa social para distribuir recursos públicos, mediante a entrega de cheques a determinadas pessoas, visando à obtenção de benefícios eleitorais. Ficou comprovado nos autos do processo que o candidato eleito atendia pessoalmente eleitores em diversos municípios do Estado, com o envio de sua foto junto com os cheques distribuídos e com a utilização de sua imagem em propaganda eleitoral gratuita.
Tendo em vista tal quadro, o colegiado entendeu pela potencialmente da conduta do candidato em afetar o resultado da eleição, e pelo provável comprometimento da normalidade e equilíbrio na disputa. 11
Frisa-se, portanto, que não basta a conduta do candidato a reeleição ser típica, é mister que haja a potencialidade para afetar no resultado do pleito, comprometendo a lisura do procedimento de escolha de representantes.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1998.
BRASIL. Lei n.º 4.737, de 15 de julho de 1965, instituiu o Código Eleitoral.
BRASÍLIA. Tribunal Superior Eleitoral. www.tse.jus.br.
MEDINA, Ademir Ismerim. Comentários à Lei Eleitoral. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2002.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. ed. 20. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2000.
NOLETO, Mauro Almeida. Terceiro turno: crônicas da jurisdição eleitoral. Imperatriz/MA: Editora Ética, 2008.
GOMES, Suzana de Camargo; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Abuso de poder público no âmbito eleitoral. Rio de Janeiro: Revista Forense, volume 390 (março/abril), 2007.
SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. "Uso da máquina púbica" nas campanhas eleitorais: as condutas vedadas aos agentes públicos. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008.
Notas
-
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1998. "Art. 14, §5º. "O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente."
-
GOMES, Suzana de Camargo; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Abuso de poder público no âmbito eleitoral. Rio de Janeiro: Revista Forense, volume 390 (março/abril), 2007, p. 233-234.
-
BRASIL. Lei n.º 4.737, de 15 de julho de 1965, instituiu o Código Eleitoral. "Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos."
-
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. ed. 20. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2000, p. 102.
-
GOMES, Suzana de Camargo; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Op. cit., p. 232-233.
-
NOLETO, Mauro Almeida. Terceiro turno: crônicas da jurisdição eleitoral. Imperatriz/MA: Editora Ética, 2008, p. 90.
-
SANSEVERINO, Francisco de Assis Vieira. "Uso da máquina púbica" nas campanhas eleitorais: as condutas vedadas aos agentes públicos. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 41-43.
-
MEDINA, Ademir Ismerim. Comentários à Lei Eleitoral. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 137.
-
BRASÍLIA. Tribunal Superior Eleitoral. RESPE-25851, relator Min. ANTÔNIO CEZAR PELUZO. Publicação: DJ 7/12/2007, p 214.
-
BRASÍLIA. Tribunal Superior Eleitoral. RO 754, relator Min. JOSÉ AUGUSTO DELGADO. Publicação: DJE 30/08/2006, p. 96.
-
BRASÍLIA. Tribunal Superior Eleitoral. RO 1497, relator Ministro EROS ROBERTO GRAU. Publicação: DJE 02/12/2008, p. 21/22.