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Hermenêutica civil-constitucional dos juros bancários

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23/11/2010 às 09:14
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5.POSSÍVEIS SOLUÇÕES JURÍDICAS CONTRA OS JUROS ABUSIVOS NOS CONTRATOS DE CRÉDITO BANCÁRIO

Após expostas essas breves considerações sobre as abusividades presentes nos contratos de crédito bancário atinentes aos juros, cumpre discorrer sobre os mecanismos jurídicos de tutela dos direitos do consumidor contra tais abusos.

Recorrer ao Poder Judiciário ainda é a melhor opção de que deve se socorrer o consumidor para efetivar seus direitos contra os abusos dos bancos. As soluções em âmbito administrativo podem ensejar a ineficácia de se tentar equacionar os problemas relativos aos juros extorsivos e à cobrança indevida de tarifas. Destarte, resta ao consumidor levar ao conhecimento do Estado-juiz os engodos de que é vítima.

As ações revisionais são as mais utilizadas para questionar a legalidade dos juros, bem como, são instrumentos eficazes para se conceber a redução das taxas, ou mesmo a resolução do contrato.

Importante previsão legal a favor do consumidor está no artigo 51 do Código Consumerista:

São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.

É de cabedal importância a previsão de nulidade para a abusividade que afronta à boa-fé, pois, por se tratar de um princípio, a quebra da boa-fé objetiva alcança uma quantidade maior de disposições contratuais. Além disso, por se tratar de nulidade absoluta, o rol deste artigo 51 contém regras indisponíveis à vontade das partes. O reforço a tal argumento tem fulcro no entendimento doutrinário de que nulidade é a conseqüência jurídica atribuída a uma disposição violadora de uma norma de caráter público (CDC, art. 1º). Diferenciando-se, desse modo, da anulabilidade que é a sanção aplicada à violação de norma em que se tutela interesse particular.

Dentre as características das nulidades destaca-se a insanabilidade, a alegação por qualquer interessado, inclusive mediante a decretação ex officio pelo juiz, com efeito ex tunc, dispensa de ação específica para ser reconhecida, imprescritibilidade e impossibilidade de produzir efeitos. Apesar do Código de Defesa do Consumidor não fixar prazo para o exercício do direito de ação que vise à anulação de cláusula abusiva, no âmbito do processo civil, por se tratar de norma de ordem pública, não ocorre preclusão, podendo a nulidade ser questionada em qualquer grau de jurisdição [44].

Em se tratando de revisão contratual, as cláusulas abusivas não guardam ligação com a teoria da imprevisão, ou mesmo, com a teoria da quebra da base objetiva do negócio jurídico, que são causas de revisão do contrato por fatos supervenientes. Na lição de Cristiano Heineck Schmitt (2006, p.84):

O que geralmente se verifica com as cláusulas abusivas é que, pelo fato de a sua abusividade ser potencial, abstrata, ferindo direitos ou impondo obrigações para o futuro, a lesão ao consumidor somente é verificada quando iniciada a execução do contrato. A identificação de uma cláusula abusiva a partir da interpretação do contrato é como "a fotografia atual de um fato já existente.

Em que pese a previsão de nulidade absoluta, ou de pleno direito, do caput do artigo 51, cabe ressaltar que o juiz pode, aplicando interpretação integrativa e apoiado nos artigos 6º, V [45] e 51, §2º [46] do mesmo código, modificar ou revisar cláusula contratual, privilegiando o princípio da conservação dos contratos, desde que, o resultado de tal artifício não resulte eficácia de uma cláusula contrária aos interesses do consumidor (CDC, art. 47) [47].

A idéia de sanação de nulidade absoluta, decorrente do art. 51 do CDC, não é a regra, mas, sim, uma esparsa exceção, representada quase que exclusivamente pelo art. 208 do CC/1916. O §2º do art. 51 do CDC impõe que se esgotem os esforços de integração, em relação aos efeitos do negócio, dispondo o juiz, no caso de normas supletivas (Código de Defesa do Consumidor e legislação correlata) e dispositivas (vontade das partes), bem como podendo proceder à mencionada análise do contexto contratual, a fim de ajustar o conteúdo negocial à vontade expressada pelo consumidor, com observância do princípio da boa-fé. O referido dispositivo legal consubstancia um processo de restauração da vontade legítima do consumidor prejudicado pela cláusula abusiva e consagra o ‘princípio da manutenção do contrato’, sem a presença da cláusula abusiva, com fundamento na função social desempenhada pelo contrato dentro da sociedade, orientando a relação obrigacional, realizando a distribuição equitativa dos direitos e deveres das partes contratantes (SCHMITT, 2006, p.141).

Seja como for, optando o juiz pela decretação da nulidade absoluta, ou, modificando o conteúdo da cláusula para lhe dar eficácia harmonizada com a função social de promover equilíbrio contratual, é importante a disposição do Código acerca das cláusulas abusivas por instituir uma forma direta de controle da legalidade das disposições contratuais.

Todavia, o controle de legalidade via ajuizamento de revisionais não é o único a que se deve fazer menção na luta contra as abusividades. É função institucional do Ministério Público "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos" [48]. Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se caracterizam como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato; os segundos, a um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de uma relação jurídica.

Entretanto, percebe-se a pouca atenção dispensada pelo Ministério Público em face da atuação em prol dos direitos e interesses atingidos pelas ilegalidades contra as garantias consumeristas oriundas da ordem econômica. Afirma Lafayete Josué Petter (2008, p. 345):

Em face da transindividualidade de tais direitos, é dever do Ministério Público e das associações legitimamente constituídas desenvolverem considerável esforço para tornar a vida real mais próxima do discurso normativo. A constatação da história é reveladora das poucas iniciativas do Parquet no trato de tais questões e, reflexamente, uma certa inoperância da prestação judicial no respeitante ao assunto – atualmente já com honrosas exceções – dão mostra de que a inspiração liberal oitocentista muito nos influenciou e, ainda, infelizmente, influencia, precisando a todo modo ser exorcizada.

Percebe-se que os direitos dos consumidores lesados por cláusulas abusivas de contratos bancários enquadram-se na categoria dos direitos coletivos e, portanto, podem ser objeto de inquérito civil e ação civil pública.

Em sede constitucional, toda a discussão gerada em torno da alusão às cláusulas que fixam taxas de juros e tarifas abusivas poderia ser evitada caso já tivessem sido editadas as leis complementares a que se refere o artigo 192 da Carta Política normatizando por completo todas as questões intrínsecas ao Sistema Financeiro Nacional.

Nesse caso, é possível vislumbrar o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade por omissão. O referido artigo contém norma de eficácia limitada, e, por tratar de assunto tão importante quanto abrangente, não merece passar tanto tempo sem que o legislador infraconstitucional lhe dê a devida atenção. As questões inerentes ao Sistema Financeiro, pela falta das leis complementares exigidas pela Constituição, continuam carecendo de um plexo normativo que lhe dê efetividade. E é exatamente para se evitar a inefetividade daquela previsão constitucional que se coloca como uma possível e urgente solução o ajuizamento da ação aqui tratada.

A omissão normativa ora elencada atinge não apenas os direitos do consumidor decorrentes de relação creditícia com as instituições financeiras, mas também, de todas as relações jurídicas que estão pautadas em fatos econômicos e financeiros envolvendo aquelas instituições e as conseqüências desta falta de normatização ressoam no Direito Constitucional, Direito Financeiro, Direito Econômico, Direito Civil e até no Direito Ambiental.

Por fim, na relação específica com o Direito do Consumidor, há de se entender que a edição de leis complementares que disponham sobre o Sistema Financeiro Nacional de modo exaustivo, prevendo regras e limites para a atuação dos agentes financeiros, fixando, por exemplo, normas claras e em coadunância com a defesa do consumidor a respeito da fixação das taxas de juros, reforçariam um aprimoramento da cultura consumerista relativa aos direitos do consumidor bancário, além de formar um complexo normativo que serviria de referência para se adequar a atividade financeira que, hoje, não encontra amarras para atuar, procurando evitar, desse modo, a ocorrência de abusividades nas relações de fornecimento de crédito.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por se tratar de uma atividade vital para a economia e para a sociedade do país, a atividade financeira de fornecimento de crédito requer uma maior atenção dos juristas, sejam doutrinadores, juízes, advogados, enfim, todos os que operam os direitos do consumidor, bancário e econômico, visando o fortalecimento da parte hipossuficiente na relação econômico-jurídica de fornecimento de crédito, bem como, a inibição das ilegalidades praticadas nestas relações.

A análise aqui retratada é parte de um esforço moderno de adequação da atividade capitalista ao modo social de se pensar a sociedade com vistas a uma maior efetividade da justiça.

Para tanto, é necessário recorrer a uma atuação mais efetiva das normas jurídicas, partindo-se dos princípios e regras constitucionais que, a partir da promulgação da recente Carta, inaugurou no Brasil o Estado democrático de Direito, e, por que não dizer, um Estado de Direito social. O ordenamento jurídico infraconstitucional deve se adequar aos parâmetros traçados na Lei Maior acerca desse novo modo social de atuar, o que já se observa em leis protetivas, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor e do Novo Código Civil.

Entretanto, é necessário frisar que o espírito de justiça social reproduzido pelas normas citadas deve-se fazer também presentes na consciência daqueles que são responsáveis pela forma última e maior de dizer o direito: nesse sentido, ficou demonstrado que tarda a ser adotada uma reformulação do entendimento das duas cortes maiores do país, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, no tocante à interpretação a ser dada aos princípios e regras legais que abarcam as relações creditícias entre bancos e consumidores. Reformar o entendimento das posições jurisprudenciais, sumuladas ou não, para adaptá-las à nova realidade daquelas relações, atualizando entendimentos já ultrapassados e garantindo ao consumidor tutela efetiva dos seus direitos é algo não apenas urgente, mas também, necessário.

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O entendimento jurisprudencial é o maior responsável pela sedimentação de uma cultura jurídica não apenas em harmonia com a defesa do consumidor, mas também, com o Estado social.

Falar em limitações a atuação das instituições financeiras ainda é adentrar em um terreno perigoso, pois, é patente que a força de tais instituições apresenta no poder econômico um trunfo ainda capaz de influir nas esferas políticas de decisão.

Nesse sentido, é de se aclamar as ponderações doutrinárias recentemente construídas, a exemplo da adequação para o Direito brasileiro da teoria do diálogo das fontes, para trazer ao universo jurídico a necessária conscientização de que o Direito é a principal ferramenta de que dispõe a sociedade para fazer frente aos interesses escusos que assolam as camadas políticas do país. De fato, a atuação jurídica voltada para o povo deve fazer parte de uma luta para que as discussões teóricas e acadêmicas não restem afastadas da realidade. E o Direito é a ponte entre o legitimamente justo e o eticamente correto, uma vez que, o cenário político do país, colhendo o descrédito de escândalo após escândalo parece colocar em contradição a política e o povo:

Quem é o povo, e onde está o povo, nessa forma de organização em que o político é objeto e não sujeito, e se viu privado, pela extorsão política, da titularidade de suas faculdades soberanas? Ninguém sabe responder (BONAVIDES, 2003, p. 26).

Por entender que o campo das relações econômicas é fértil terreno para o florescimento de distorções causadas pelo interesse de poucos, que manipulam a máquina estatal em prol da manutenção desse status quo, onde o privilégio é algo a ser mantido mesmo que ao custo de grandes mazelas sociais, é também o principal baluarte para que se possa falar em justiça social, pois, não há que se pensar o justo sem a igualdade, e esta deve conter não somente a igualdade jurídica – perante a lei – mas a igualdade econômica, que oferece condições para o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas.

Nesse sentido, os objetivos propostos foram atingidos ao se demonstrar que a atividade financeira possui um papel primordial na organização do Estado, papel esse representado pela sua atividade-fim, qual seja, distribuir e mobilizar, por meio do crédito, a riqueza que se apresenta concentrada aos bancos.

Restou esclarecido que o consumo do crédito é uma faceta contemporânea da sociedade capitalista e que é papel do Direito albergar a parte hipossuficiente da relação de consumo, efetivando, por meio de normas jurídicas protetivas, direitos oriundos de relações econômicas.

Foram discutidas as novas disposições principiológicas e legais surgidas, principalmente, a partir da Constituição de 1988 e, depois, com o avento do Código de Defesa do Consumidor e do Novo Código Civil, que introduziram no ordenamento jurídico pátrio, novos princípios e regras referentes a um novo modelo de Estado, mais voltado para a efetivação da justiça social, pautado na dignidade da pessoa humana.

Cumprido também o objetivo de elencar as principais abusividades presentes nos contratos de crédito bancário, atinentes a taxa de juros. Aqui, foram analisados os tipos de juros praticados, discorrendo sobre os limites e as possibilidades legalmente permitidos, e seu regime de capitalização; foram apontadas as práticas abusivas adotadas pelas instituições financeiras, que utilizam taxas bem superiores às previstas em lei.

Por derradeiro, espera-se que o intento maior deste trabalho - abordar um aspecto jurídico relevante, qual seja, expor uma relação econômica viciada por abusividades que colaboram para a manutenção de privilégios, e ainda, apontar algumas soluções pertinentes à satisfação dos direitos da parte hipossuficiente daquela relação, inclusive com a atuação institucional e processual do Ministério Público – possa ter colocado significativos argumentos no desenvolver de uma linha de pensamento jurídico que, em coadunância com a noção de realização de justiça social na ordem econômica, possa favorecer a redução do desequilíbrio proporcionado pela atuação das instituições financeiras, bem como, contribuir para o fortalecimento de uma cultura jurídica voltada para a efetivação dos direitos do consumidor de crédito.

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Sobre o autor
Adriano Carvalho Souza

Analista Processual do Ministério Público de Sergipe. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito Público (UNIASSELVI/SC). Pós-graduando em Direito do Estado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Adriano Carvalho. Hermenêutica civil-constitucional dos juros bancários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2701, 23 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17862. Acesso em: 28 mar. 2024.

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