Artigo Destaque dos editores

Da não-recepção pela Constituição da República de 1988 dos crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária de instituições financeiras.

Art. 4º, caput e parágrafo único, da Lei nº 7.492/86

Exibindo página 2 de 3
24/11/2010 às 16:55
Leia nesta página:

4. DO CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA (Art. 4º, caput, da Lei 7.492 / 86)

É cediço que as leis e demais atos normativos já nascem com a presunção (relativa) de legitimidade e regularidade [24], o que lhes confere aptidão para a produção de seus esperados efeitos jurídicos. Não fosse assim, todos os atos estatais deveriam ser impugnados judicialmente para que se pudesse ter certeza acerca de sua constitucionalidade e legalidade.

Ocorre que essa presunção a bem do Estado é meramente relativa (juris tantum), admitindo provas em contrário. É o que se passa a fazer com vistas à demonstração da inconstitucionalidade de duas dessas normas.

Convém destacar os preceitos primário e secundário do crime em de gestão fraudulenta: Art. 4º. Gerir fraudulentamente instituição financeira: Reclusão de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.

Como se infere sem dificuldades, os bens jurídicos imediatamente tutelados pelo tipo delitivo são a higidez financeira e das atividades exercidas pelas instituições financeiras, objetos de imensa relevância social.

Contudo, lamentavelmente é costumeira em matéria de Direito Penal Econômico a utilização pelo Estado-Legislador de crimes de perigo abstrato para a proteção da sociedade, além de tipos abertos e normas penais em branco.

Historicamente, dito crime já vinha previsto no Art. 3ª, IX, da Lei 1.521 / 51, que era facilmente classificável como de dano concreto, ou seja, dependia da demonstração efetiva e cabal da ocorrência de prejuízo material.

Eis a íntegra do revogado dispositivo:

Art. 3º São também crimes desta natureza:

(...)

IX – gerir fraudulenta ou temerariamente bancos ou estabelecimentos bancários, ou de capitalização; sociedades de seguros, pecúlios, ou pensões vitalícias; sociedades para empréstimos ou financiamento de construções e de vendas de imóveis a prestações, com ou sem sorteio ou preferência por meio de pontos ou quotas; caixas econômicas; caixas Raiffeisen; caixas mútuas, de beneficência, socorros ou empréstimos; caixas de pecúlio, pensão e aposentadoria; caixas construtoras; cooperativas; sociedades de economia coletiva, levando-as à falências ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer das cláusulas contratuais com prejuízo dos interessados;

(...)

Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa, de vinte mil a cem mil cruzeiros.

(Sem grifos no original)

Vê-se do quanto extraído que o tipo possuía um elemento descritivo claro e suficiente para definir o conteúdo e o alcance da expressão "fraudulentamente". Posturas administrativas de índole falimentar ou o descumprimento de cláusulas contratuais que gerassem prejuízo à instituição eram condutas criminosas.

Hoje, porém, a lei de regência é omissa quanto às condutas que podem gerar danosidade às instituições financeiras. Traz, apenas, a vaga expressão "gerir fraudulentamente".

Não se ignora que renomados estudiosos do Direito Penal Constitucional digam que essa tal postura legislativa seja suficiente. GILMAR MENDES, INOCÊNCIO COELHO e PAULO GONET [25] chegam a afirmar que

O indivíduo há de ter condições de saber o que é proibido ou permitido. Embora não se possa impedir a utilização de conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas gerais, é certo que o seu uso não deve acarretar a não determinabilidade objetiva das condutas proibidas.

Todavia, acredita-se que a questão dos tipos penais deva ser analisada sob critérios mais rigorosos, como o temo "fraudulentamente", elementar do tipo em estudo.

O que significa essa combinação de letras? A legislação penal regente da matéria, Lei nº 7.492 / 86, é cristalinamente omissa a respeito.

Segundo o Código Civil de 2002, diploma subsidiário por excelência do direito material, por fraude tem-se"a transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida" [26] praticada pelo devedor insolvente, ainda quando o ignore essa qualidade.

Já o Código Penal, conquanto traga em seu Capítulo VI o título de "Do estelionato e outras fraudes", também não define exatamente o que seja tal figura.

Segundo o léxico MICHAELIS [27], fraude é "a ação com má fé, engano, como quando se altera um produto ou se deixa de pagar um imposto. Engano, má-fé. (...)".

Nesse sentido, em virtude da ausência de normatização expressa, pressupõe-se que seja o emprego de ardil, estratagema ou malícia, com vistas à obtenção de vantagem para si ou para outrem. Entrementes, frise-se: a lei penal nada diz sobre isso.

Há mais.

A leitura do núcleo do tipo aliada à sua figura elementar (Gerir fraudulentamente) também traz, em sua essentia, a idéia de reiteração. É, pois, lícito pensar tratar-se de crime habitual, i.e., de um delito existente apenas quando de uma reiteração de atos, sucessivos ou não, os quais constituem um crime único.

Nesse ínterim, em que pese a opinião de renomados cientistas em sentido contrário [28], condutas praticadas individualmente devem ser consideradas indiferentes penais. RODOLFO MAIA chega a afirmar tratar-se de delito habitual impróprio, ou acidentalmente habitual [29], posto que, a seu juízo, bastaria uma única ação para a configuração do tipo. Assim não parece ser, uma vez que a norma, conquanto pretenda tutelar a indenidade do sistema financeiro contra qualquer ato hostil a este objeto, é defeituosa e conduz claramente à conclusão de que um único ato não seria capaz de lesionar o ou desestabilizar gravemente o sistema nacional. Falha redacional que beneficia o agente.

Ademais, conforme o próprio magistério de RODOLFO MAIA [30],

Tais elementos [normativos], aliás, como asseverado, demandam exegese estrita de modo a não alargar demasiadamente o perfil de incidência deste tipo aberto e vulnerar a reserva legal.

Assim, é possível constatar a insuficiência normativa para configurar qualquer tipo criminal. Cuida-se, portanto, normal penal em branco imprópria, ou seja, "aquelas em que há a necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário [31]".

Trata-se, por fim, de delito próprio, ou seja, que somente pode ser praticado por agentes capazes de gerir instituições financeiras, tal como traz expresso Art. 25 da citada Lei, onde a vítima - leia-se, sujeito passivo - imediata do delito é o Estado, que tem sua credibilidade desacreditada. Mediatamente também pode ser considerado sujeito passivo o mercado financeiro, cujas instituições e investidores experimentam prejuízos em suas aplicações.


5. DO CRIME DE GESTÃO TEMERÁRIA (Art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492 / 86)

Ab initio, urge evidenciar os preceitos primário e secundário do delito sob análise: Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

A princípio, necessário rememorar que o risco na manipulação de valores, próprios ou de terceiros, é algo absolutamente normal - e até necessário - no mercado financeiro. O que o tipo busca tutelar, aparentemente, são as posturas executivas excessivas. Contudo, muitas críticas merecem ser tecidas. Veja-se: o preceito primário do tipo penal em apreço ("se a gestão é temerária") também não contém elementos suficientes à delimitação da conduta punível. Como se percebe sem o mínimo esforço, a legislação lamentavelmente também não possui um elemento descritivo capaz de traduzir o alcance do termo "temerária".

Os Códigos Civil e Penal também parecem nada esclarecer acerca da expressão.

Temerário, etimologicamente, traz a idéia de risco. Cuida-se, pois, a princípio, de conduta abusiva, que ultrapasse o limiar da prudência. É aquele comportamento atrevido, impróprio, que traz consigo riscos excessivos ao patrimônio dos clientes das instituições financeiras.

Mas um ponto merece reflexão: como punir, e. g., gestores de índole arrojada? São eles que comumente proporcionam o amadurecimento e o progresso das instituições, mormente em países subdesenvolvidos, como na República Federativa do Brasil.

Aliás, também é importante lembrar que o risco no mercado financeiro brasileiro não é de fácil constatação.

Nesse sentido, o objeto da tutela deste delito não é o resultado danoso de uma operação financeira, mas sim a mera situação de risco causada pela ação do administrador arrojado.

Além disso, cuida-se visivelmente de tipo penal aberto. O legislativo não limitou a conduta incriminalizada dizendo o que é a boa ou má gestão, ainda que arrojada.

Por certo que não se deve punir alguém simplesmente pelo que ele é, mas sim pela sua conduta e vontade do agente, lançando a reprovação penal não em razão do desvalor de sua ação, mas sim pelo resultado negativo por ela causado.

Também não se deve confundir ação temerária com o seu resultado pragmático. Na prática, se da postura do gestor advier lucro, a ação foi normal e esperada. O autor será ovacionado, premiado e terá seu nome lançado no mercado como "o grande gestor". Se, entretanto, de sua postura advierem prejuízos, ela foi temerária e o responsável será criminalmente punido.

Ora, é conquista do mundo contemporâneo o entendimento de que a reprovação penal radica sobre o desvalor da ação e não do resultado, que lhe é exterior e integra o tipo. O Direito Penal não pode ficar ao sabor dos resultados das operações financeiras. É dogmática que merece e precisa ser compreendida a fundo para evitar abusos e flutuações ao sabor de influências políticas, públicas ou privadas, como funciona o mercado financeiro.

No caso do crime gestão de instituições financeiras, ora em estudo, a omissão de um relevante elemento descritivo pode conduzir a uma hostilidade à teoria do Direito Penal da Ação. Isto porque, no mercado financeiro, sabidamente o risco de uma determinada operação pode ser majorado ao extremo por fatos supervenientes à conduta e absolutamente imprevisíveis inicialmenteao agente, possibilitando que o negócio celebrado em condições antes consideradas seguras seja reputado como ato temerário, ilícito penal.

Dessa forma, não há a mais ínfima segurança jurídica quanto aos atos que possam configurar o tipo gestão temerária. Aliás, cabe aqui a mesma observação feita no caput do Art. 4º: o núcleo do tipo (Gerir) traz em seu íntimo a noção de conduta reiterada. Assim, uma única conduta suspeita - porque impossível se determinar, legalmente, o que seja temerário -, ainda que traga grandes reflexos na macro-economia, jamais poderá ser considerada um delito na atual conjuntura do Direito Penal Brasileiro.

Além disso, por ausência de previsão legal, pune-se a conduta exercida tão somente a título de dolo. Contraditoriamente, temerário, como exposto até aqui, expõe a idéia de audácia e imprudência. Evidente conflito de idéias, onde, mais do que eu qualquer outro segmento do direito, a legislação deveria ser clara.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Por fim, importante glosar que se trata de crime formal, prescindindo de resultado naturalístico. Assim, juridicamente pouco importa se da postura arrojada do administrador a instituição financeira recebeu grande aporte de dividendos (lucro). Em breves palavras, o gestor será punido por ser um gênio e um profissional incomum.


ENTENDIMENTO CONCLUSIVO

À luz do exposto, verifica-se, mais uma vez, a grande deficiência do Estado brasileiro em legislar construtivamente. Conquanto haja cada vez mais representantes do povo nas casas legislativas do país, como deve ser em um país democrático, em sentido contrário caminha a legislação, superabundante em quantidade mas decrescente em qualidade.

Não se trata aqui exclusivamente da problemática questão das normais penais em branco. Para muito além, cuida-se propriamente de lamentável indefinição típica de crimes de altíssima relevância social. Assim os crimes de gestão fraudulenta e de gestão temerária de instituições financeiras.

Não existem limites claros e objetivos para se aferir os conceitos das elementares nos tipos incriminadores, limitadores por excelência dos critérios acusatório e de julgamento. O elevado grau de indeterminação é tão extraordinário que a tarefa valorativa do órgão julgador é livre de qualquer controle.

Também a sociedade, que naturalmente busca meios alternativos menos onerosos para alcançar seus objetivos, conduta inerente à quintessência dos negócios financeiros, fica sem perspectiva do que é proibido pela norma penal.

O princípio da legalidade penal, como demonstrado, traz em seu âmago a necessidade da determinação taxativa da conduta anti-social. É o sub-princípio da certeza ou do mandato de certeza, proibitivo de condutas penais sem suficiente definição. Aliás, é de correntia sabença que a função garantidora é um dos fundamentos do tipo penal [32].

Conquanto subsistam posições judiciais francamente em sentido contrário [33], ficou demonstrada a flagrante violência ao princípio constitucional da legalidade penal. Os crimes analisados carecem de limites normativos bem definidos, importando em violação direta ao postulado da legalidade. O elevadíssimo grau de indeterminação possibilita arbítrios ministeriais [34] e jurisdicionais, podendo até mesmo culminar no juízo de reprovação do agente em razão de acontecimentos posteriores e imprevisíveis à sua conduta.

O objeto material, o núcleo, os sujeitos ativo e passivo dos tipos delitivos mencionados, mais que válidos, são tecnicamente bem tracionados. Contudo, os elementos fraudulentamente e temerária, elementares dos tipos incriminadores, por serem francamente insuficientes aos fins a que se destinam, malferem os delitos que compõem de chapada inconstitucionalidade, inviabilizando suas punições. Entenda-se: é a ausência de um elemento descritivo gera a invalidade desses delitos.

Sob a perspectiva garantista, ainda que haja violenta afronta ao bem jurídico tutelado, e independentemente do grau de relevância deste, não se pode coadunar com hostilidades aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais o direito de legalidade, que impõe clareza da legislação penal.

Entende-se que a pena criminal só pode ser considerada legítima quando houver rigoroso cumprimento do devido processo legal, inclusive em sua espécie substantiva. A estrutura normativa penal deve ser delimitada ao máximo, deixando indene de dúvidas problemas subjetivos de subsunção [35]. O que se vê hodiernamente são descrições amplas que submetem a tipicidade a alta subjetividade do órgão julgador, o que gera evidente insegurança jurídica.

Ficou constatada claramente, ainda, a indevida utilização de crimes de perigo abstrato, em clara afronta ao princípio da ofensividade, gerando grandes possibilidades de vir a se punir através de responsabilidades objetivas ou de um direito penal do autor.

É cediço que o núcleo intangível da Constituição congloba os direitos e garantias individuais, dentre os quais o da estrita legalidade penal. É o direito penal constitucional. Eis, em síntese, o modelo garantista do delito: a limitação do jus puniendi.

Além disso, há que se proibir a punição de condutas esparsas, praticadas sem reiteração de atos pelos supostos autores de infrações penais. Pela própria redação legal, conclui-se que são crimes habituais, dependendo de mais de uma conduta para a configuração formal do delito, sem a qual não se pode falar em persecução penal.

Forte em tais razões, é possível asseverar que formalmente as normas penais em estudo são válidas e aplicáveis, razão pela qual podem ser consideradas recepcionadas pela atual ordem constitucional. Materialmente, todavia, a questão é inversa.

Buscou-se ao longo da obra demonstrar a absoluta impossibilidade de permanência de tais crimes no atual sistema repressivo brasileiro sem graves prejuízos à garantia da segurança nas relações jurídicas. Admiti-los significa relegar os direitos constitucionalmente assegurados a segundo plano em detrimento do objeto juridicamente tutelado. Como demonstrado, a primordial finalidade do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, é a proteção dos direitos fundamentais.

Assim, em conclusão, merece acolhida o entendimento de que essa questão de inconstitucionalidade (richterklage) faz com que, sob grande rigor técnico, admita-se, antes, a própria não-recepção dos crimes estudados - por serem anteriores à atual Constituição da República.

A solução jurídica para os casos já ocorridos parece clara, com reflexos, inclusive, no recente e polêmico caso da Operação Satyagraha. Por serem delitos inconstitucionais, toda condenação penal proferida a partir 05 de outubro de 1988 [36] até o final da vacatio legis da lei a ser criada (de lege ferenda), não poderá haver a aplicação das cominações formalmente prevista em tais delitos. Acredita-se, mais, que àqueles que foram condenados como incursos em tais crimes fazem jus à indenização por erro judiciário (Art. 5º, LXXV, CRFB / 88). Isto parece obedecer à melhor técnica e não deve causar comoção nem arrepios. Isto porque em um Estado que se pretenda Constitucional e Humanitário de Direito (ECHD), deve ser observada claramente a concepção garantista do delito, e a indenização por erro judiciário conta com apoio, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Art. 8º, in verbis:

Todo o homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. (Sem grifos nos original)

O modelo penal, em síntese, deve ser racional, e não escatológico, como o atual entorno jurídico nacional. Enquanto os interesses políticos suplantarem os sócio-jurídicos, não haverá o necessário respeito aos direitos fundamentais, hostilizando-se, a cada nova oportunidade, as tão almejadas garantias constitucionais.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Raphael Ferreira de Souza

Analista Judiciário 01 - Área Judiciária. Especialista em Direito Tributário, Ciências Penais, Direito Previdenciário e Direito do Estado.Pós-Graduando em Direito do Estado, em Direito Previdenciário e em Gestão Pública Municipal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Raphael Ferreira. Da não-recepção pela Constituição da República de 1988 dos crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária de instituições financeiras.: Art. 4º, caput e parágrafo único, da Lei nº 7.492/86. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2702, 24 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17893. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos