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Breve análise acerca da conduta de posse de drogas para uso pessoal

06/12/2010 às 13:00
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Sabidamente, a Lei 11.343/2006, a Lei de Drogas, inaugurou, a bem ou mal, nova política criminal no tratamento do usuário de substâncias entorpecentes. Após sua edição, debates, por vezes acalorados, se seguiram entre doutrinadores, juristas e mesmo leigos.

Um dos mais controvertidos aspectos do novel diploma legal está contido no seu art. 28, o qual reza, ipsis verbis:

Art. 28.

Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

A conduta do referido artigo é a mesma do revogado art. 16 da Lei 6.378/76 (a Lei Antitóxicos): a posse de drogas para uso pessoal.

Não poucos doutrinadores, quer louvando, quer tecendo críticas, apressaram-se em afirmar que o art. 28 da nova lei teria descriminalizado a aludida conduta. Isso equivale a dizer que a posse de tóxicos para uso recreativo pessoal, sem configurar a traficância, a partir da Lei 11.343/2006, não seria mais considerada delito.

Consideramos, de pronto, tal tese absolutamente equivocada pelo que passaremos, com a devida vênia, a expor.

Invocam os partidários da suposição de que a conduta descrita no art. 28 foi, pelo mesmo artigo, descriminalizada, que o art. 1º da Lei de Introdução Código Penal (LICP) conceitua "crime" como a infração penal punida com pena de reclusão ou detenção, de modo isolado, alternativo ou cumulativo, com multa. O mesmo artigo estabelece ser contravenção (o chamado "crime-anão", nas palavras de Nelson Hungria) a infração a que a lei comina prisão simples, ou multa, ou ambas.

Ora, o art. 28 da lei em comento não prevê nem prisão simples – o que caracterizaria a conduta como de contravenção penal –, muito menos reclusão ou detenção. E a multa prevista no § 6º, alegam, é somente aplicada para garantia do cumprimento das medidas educativas descritas nos incisos do caput. Dessa forma, não haveria de se falar em crime. A conduta continuaria ilícita, mas não se aplicaria o pleno conceito de delito da LICP.

O argumento parece plausível. Entretanto, há que se refutá-lo, dado não ser a LICP uma lei acima do restante do ordenamento jurídico. Se matérias conflitantes existem entre leis ordinárias ou assemelhadas (como os antigos decretos-leis), resolve-se o caso pela aplicação de dois princípios clássicos do Direito Penal: lex specialis derogat lex generali, e lex posterior derogat lex prior.

Bem sabemos que a LICP é lei geral em confronto com a Lei de Drogas, sendo esta a lei especial, dado que regula matéria específica, e aquela expõe princípios. Nesse sentido, a Lei 11.343/2006 poderia, perfeitamente, estabelecer um tipo penal sem necessidade de observância do conceito na LICP emitido, derrogando, nesse particular, o enunciado anterior.

Por outro lado, como se não bastasse, a Lei de Drogas é posterior à LICP, e isso é igualmente fundamento para derrogação.

Embora os princípios gerais da LICP devam ser ordinariamente, observados, ela não é um mecanismo de congelamento legal. A LICP não é imutável. Nem mesmo a Constituição Federal, máxima lei pela qual o ordenamento se regula, o é, salvo nas cláusulas pétreas. A LICP dá um conceito de crime que torna essencial uma pena que não está presente no art. 28? Paciência, isso não a descriminaliza. Aliás, o texto do art. 28 é claro ao denominar as medidas que prevê de penas. E penas são punições do Direito justamente Penal: noutros termos, a lei mesma diz ser crime.

Não é outro o entendimento da Suprema Corte, aliás:

"A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário." (STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007).

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Ademais, a Lei 9.099/95, ao igualar, na prática, a contravenção ao crime de menor potencial ofensivo, golpeou, gravemente, a diferenciação dada pela LICP, a qual, aliás, era a razão de ser de seu conceito.

Não contentes com tal arrazoado, os defensores de que não é mais considerada crime a figura do art. 28 sustentam a idéia de que ao delito não pode escapar a possibilidade de aplicação da pena privativa de liberdade. Mesmo a Lei 9.099/95 não a afasta totalmente, ao passo em que a nova Lei de Drogas o faz.

Por mais que concordemos que ao usuário de drogas se deva dar um tratamento mais rigoroso do que a leniência da atual lei, não há que se desconsiderar que o conceito de punição penal evolui com a sociedade. A pena privativa de liberdade ou a multa não são as únicas a serem consideradas criminais. O crime não pode ser conceituado pelo tipo de punição que encerra, e sim pela vontade do Estado em considerar tal conduta como criminosa (o antigo "fato típico, ilícito e culpável").

Na seara pela qual nos enveredamos, como que em um parêntese, cabe comentar justamente a excessiva tolerância do art. 28. Embora, como dissemos, a pena de prisão não seja, de si, necessária para caracterizar uma conduta como criminosa, no caso em tela, seu afastamento absoluto gera, por outro lado, uma inaplicação prática de abissais proporções.

Fez bem o legislador em optar, em um primeiro momento, pela reeducação do mero usuário. Esquecendo-se, sem embargo, que, além disso, é um financiador do tráfico, cometeu um dos mais graves equívocos rechaçando qualquer tipo de prisão, seja a simples, seja a detenção, seja a reclusão, ao menos para garantir a aplicação das medidas que prescreve. A ineficácia do artigo não é apenas social, na sensação de segurança da população, mas bem prática, de caráter eminentemente técnico-jurídico.

Ilustremos com Guilherme de Souza Nucci (cf. Leis penais e processuais penais comentadas, Ed. RT, 4ª ed., p. 328). Ao usuário de drogas, constrangido a cumprir uma das penas previstas no art. 28, e negando-se a cumpri-las, será imposta uma multa, após submetê-lo à admoestação verbal. Ora, se tal usuário for economicamente hipossuficiente, não pagará a multa, eis que, não possuindo bens valiosos, se impedirá a execução forçada. De outra sorte, sendo o usuário opulento, não se incomodará em, na mesma situação, ser continuamente admoestado e forçado a pagar as multas impostas: para ele, haverá sempre dinheiro para comprar drogas e para saldar as coimas. Em ambos casos, o resultado será reincidência sem possibilidade concreta de ação do Estado na coibição do tipo criminoso.

A reeducação, e, para assegurá-la, a admoestação e a multa, são bons instrumentos, porém apenas em um primeiro momento. Melhor seria, conclui Nucci, "deveriam ser dadas muitas oportunidades ao usuário de drogas, mas com um limite qualquer, acarretando a aplicação de pena privativa de liberdade, como medida final, em caso de insucesso de todas as anteriores. Não é possível continuar considerando crime essa conduta (art. 28, caput, desta Lei) e, concomitantemente, afastar, por completo, a viabilidade de prisão do condenado recalcitrante e insistente." (p. 328)

Nucci aqui, é bom que se fale, não está colocando a possibilidade de pena de prisão como substancial ao conceito de crime, mas apenas registrando que, no tema, trata-se de um mandamento desprovido de força estatal real.

Infelizmente, o caminho escolhido pelo legislador foi da mais pura atecnia, o que gerou incontáveis problemas, a serem resolvidos, mais uma vez em nosso Brasil já farto de tantas leis socialmente ineficazes e infindamente multiplicadas, em uma futura, porém necessária, reforma do diploma.

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Sobre o autor
Rafael Vitola Brodbeck

Delegado de Polícia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRODBECK, Rafael Vitola. Breve análise acerca da conduta de posse de drogas para uso pessoal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2714, 6 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17910. Acesso em: 24 abr. 2024.

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