7. A adequação da seguridade social aos anseios do sistema capitalista.
Como dito acima, os entes federativos, em especial a União, descuram da formação de fundos públicos para suportarem as despesas da seguridade social, primando pelo desvio de recursos para outras áreas e pela geração de resultados primários satisfatórios para atrair o mercado especulador financeiro gerando um círculo vicioso que se sustenta pela potencialização contínua do "investimento" e lucro, até que haja um colapso e o processo se reinicie em outro patamar, mas, sempre, sem levar, nos moldes hodiernos, a qualquer resultado favorável, vez que o atual capitalismo se degenerou, desvinculando-se do fator produção e tendo como arrimo apenas o capital como meio de especulação instantâneo, dinâmico e sem barreiras.
Relevantes doutrinadores apresentam esta faceta e a crise entre o sistema capitalismo e as necessidades sociais que fazem vicejar conflitos que podem redundar em efeitos de repúdio e retomada da direção norteadora de um Estado Social.
Transcrevo:
"Embora seja adequado analisar o capitalismo contemporâneo em termos de alguns setores (os setores privados competitivos e oligopólicos, e o setor público, etc), é impressionante como os destinos de muitas empresas e indústrias são interrelacionados. A rede de interdependência assegura, no máximo, um equílibrio econômico delicado. Qualquer distúrbio ou rompimento da vida econômica pode ramificar-se potencialmente através de todo o sistema. A falência de uma grande firma ou banco, por exemplo, tem implicações para numerosas empresas aparentemente saudáveis, para comunidades inteiras, e, por conseguinte para a estabilidade política. Assim, para que se mantenha a ordem das sociedades contemporâneas, é necessária a ampla intervenção do Estado. O florescimento da atividade estatal no século XX, a expansão da "máquina intervencionista", pode ser visto, sob esse ângulo, como inevitável. Os efeitos extensivos crescentes de mudanças no seio do sistema (índices elevados de desemprego e a inflação nas depressões e picos do ciclo econômico) e/ou o impacto de fatores externos (escassez de matérias-primas como consequência de eventos políticos internacionais, por exemplo) tiveram de ser cuidadosamente manejados.
O Estado está envolvido em contradições: a intervenção na economia é inevitável e, no entanto, o exercício do controle político sobre a economia arrisca-se a desafiar a base tradicional da legitimidade de toda a ordem social: a crença de que os objetivos coletivos só podem ser adequadamente consumados se os indivíduos privados agirem em isolamento competitivo e perseguirem seus propósitos com interferência mínima do Estado. A própria intervenção do Estado na economia e em outras esferas chama a atenção para as questões de escolha, planejamento e controle. A "mão do Estado" é mais visível e inteligível do que a "mão invisível" do mercado. Mais e mais áreas da vida são encaradas pela população em geral como áreas politizadas, isto é, passíveis de estarem sujeitas (via governo) ao seu controle potencial. Esse desenvolvimento, por seu turno, estimula demandas sempre maiores apresentadas ao Estado: por exemplo, reivindicações relativas a participação e consulta sobre decisões. Se essas exigências não puderem serem atendidas pelas alternativas existentes, o Estado poderá enfrentar uma "crise de legitimação". As lutas relativas a, entre outras coisas, distribuição da renda, controle das condições de trabalho, natureza e qualidades de bens e serviços públicos estatais, podem ultrapassar as fronteiras das instituições vigentes de administração econômica e controle político. Nessas circunstâncias, a hipótese da transformação fundamental do sistema não pode ser afastada. É improvável, decerto, que venha a resultar de um evento, de uma derrubada insurrecional do poder de Estado. Mas provavelmente será marcada por um processo de erosão continua da capacidade de reproduzir-se da ordem existente e pela emergência progressiva de instituições alternativas." (Teoria Geral do Estado. Textos para uma abordagem crítica. Gil César Costa de Paula, 2010. 18. Crise da Sociedade Capitalista e sua relação com o Estado e o Direito. p.271/272)
"A medida que o capitalismo se espraia por regiões mais vastas e penetra mais fundo em todos os aspectos da vida social e do meio ambiente natural, suas contradições vão escapando mais e mais a nossos esforços de controlá-las. A esperança de atingir um capitalismo humano, verdadeiramente democrático e ecologicamente sustentável via se tornando transparentemente irrealista. Mas, conquanto esta alternativa não esteja disponível, resta ainda a alternativa verdadeira do socialismo." (A Origem do Capitalismo. Ellen Meiksins Wood, 2001, p.129)
"
Tempos de grande crise econômica abrem sempre uma brecha razoável na ordem estabelecida, que não mais tem êxito na distribuição de bens que servira como sua inquestionável justificativa. Tais brechas podem ser alargadas a serviço da reestruturação social ou, de fato, fechadas por um prazo maior ou menor, no interesse da continuada sobrevivência do capital, dependendo das circunstâncias históricas gerais e da relação de forças na arena política e social. (A Crise Estrutural do Capital. István Mészáros, 2009, p. 88).Não escapa a Evilásio Salvador, os artifícios engendrados pelos governos contemporâneos, no sentido de maquiar os orçamentos e adequar a economia, sistema tributário e contas públicas com o fito de favorecer o capital especulativo com a justificativa de "estabilidade econômica", sem qualquer preocupação com as carências públicas sociais e previsões constitucionais.
"O que ocorre no âmago da "crise fiscal do Estado" é uma disputa entre os recursos destinados à reprodução do capital e os fundos destinados à manutenção das políticas sociais.
"As empresas transnacionais são usuárias contumazes do planejamento tributário, ou seja, escapam da tributação doméstica por meio de arranjos legais e ilegais, fazendo uso da elisão e sonegação fiscal, de forma que o sistema tributário em países da periferia torna-se cada vez mais regressivo, aumentando a carga sobre a classe trabalhadora e as camadas de menor poder aquisitivo."
"Na prática, a liberação de recursos ocorre somente com o pagamento de juros e encargos de dívidas e com o cumprimento de metas econômicas (INESC, 2005), o que significa uma subordinação dos gastos que efetivam direitos para a maioria da população à lógica do mercado financeiro."
"Portanto, por meio da DRU ocorre uma perversa "alquimia" que transforma os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por consequência, os utiliza para pagar juros da dívida (Boschetti e Salvador, 2006). (Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. Evilasio Salvador, 2010, p.134/135., 189 e 233)
Percebe-se claramente que com a DRU (Desvinculação das Receitas da União), os governantes do ente federativo central vêm ao longo dos anos, pouco a pouco, desvirtuando a política securitária social para atender ao capital especulativo, sem qualquer pudor, valendo-se da inconsciência pública, de premissas falsas e em nome de uma sustentação política que enseja a perpetuação de segmentos no poder.
8. A reforma nefasta de FHC e a intenção de incremento do desvalor social da seguridade social por Lula.
O governo de FHC intentou reformas no âmbito infraconstitucional que adequaram o sistema da seguridade social aos interesses capitalistas, tornando o arcabouço securitário vinculado tenazmente a contribuição desobrigando o governo e tornando temerariamente sustentável a tese de incompatibilidade do sistema nos moldes existentes, fazendo prevalecer como premissa verdadeira a falência do sistema, em especial o previdenciário, sendo que na verdade existe um despudor no controle dos recursos oriundos por força da seguridade social.
O governo Lula, busca, agora, de forma definitiva, desvincular totalmente os tributos com faceta securitária, levando todos os recursos, formalmente, para a receita da União, tornando mais fácil a manipulação do orçamento e desfigurando por completo a Constituição de 1988 no que tange a formação de um Estado Social.
Mais um vez cito Evilasio Salvador que, de forma percuciente, denuncia estes fatos em sua lapidar obra:
"Mas o legado mais perverso de mudanças no sistema tributário foi engendrado no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Ao longo do governo FHC foi sento alterada, paulatinamente, a legislação infraconstitucional, solapando ou tornando nulos os princípios básicos da reforma tributária realizada na Constituição de 1988, agravando as distorções e, sobretudo, aprofundando a regressividade do sistema tributário brasileiro. As modificações realizadas nos anos neoliberais no Brasil constituem verdadeira contrarreforma tributária, conduzida de forma sorrateira."
"Reforma tributária e desmonte do financiamento da seguridade social. ...o governo Lula apresentou uma nova proposta de reforma tributária em 2008 que traz graves consequências às bases de financiamento da seguridade social.
Essa modificação é o sepultamento da diversidade das bases de financiamento da seguridade social inscrita no artigo 195 da Constituição Federal de 1988, que ampliou o financiamento da previdência, saúde e assistência social para além da folha de salários, incluindo a receita, o faturamento e o lucro.
Ainda que seja garantido um repasse à seguridade social com base em parte do orçamento fiscal, deixarão de existir as receitas próprias da seguridade social previstas em orçamento exclusivo, como determina a CF.
Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos avanços da Constituição, em termos de políticas sociais, foi a vinculação de recursos como uma das formas de enfrentar a perversa tradição fiscal existente no Brasil, cuja aplicação dos recursos do orçamento público sempre priorizou a acumulação do capital, submetendo as politicas sociais à lógica econômica." (Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. Evilasio Salvador, 2010, p.195 e 261/263).
9. A questão dos excluídos em face do Poder Público e do Estado Social.
Um Estado com forte cunho social busca atender as demandas de sua população independente de sua condição de contribuição ou não, como citado no início deste trabalho com base nos países escandinavos.
Nossa carga tributária é alta e, portanto, se justifica sob o ponto de vista de que deve prover uma igualdade real, substancial, no acesso aos benefícios securitários, dentre eles, inclusive, os não contributivos, "verbi gratia", a saúde e a assistência social. As deficiências orçamentárias deste sistema não podem ser empecilho a sua implementação que, sempre se dará por conta da contribuição direta para este sistema ou pela indireta através dos impostos arrecadados pelos entes federativos.
Não obstante, vige ainda entre nós a predominância de um hiato social que segrega alguns cidadãos.
Importante a opinião de Evilasio Salvador neste ponto:
A previdência social, regida pela lógica do seguro social, é a forma encontrada pelo capitalismo para garantir um mínimo de segurança social aos trabalhadores "não proprietários", ou seja, àqueles que só dispõem de sua força de trabalho para viver. Mas essa lógica só se materializa se os trabalhadores estiverem inseridos em relações estáveis de trabalho que assegurem o acesso aos direitos previdenciários. Para os trabalhadores excluídos do acesso ao emprego e para aqueles que não contribuem com a previdência estabelece-se uma clivagem social: eles não têm proteção previdenciária porque não contribuem e não têm acesso à assistência social porque esta é reservada aos pobres "incapacitados" de exercer uma atividade laborativa: idosos, crianças e pessoas portadoras de deficiência (Boschetti, 1998 e 2001). (Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. Evilasio Salvador, 2010, p. 137/138).
A nossa realidade sócio-jurídica imprime a situação onde ou o cidadão é miserável e detém no núcleo familiar renda mensal inferior ou equivalente a ¼ do salário-mínimo "per capita" para fazer jus a assistência social, ou então deverá contribuir para ter direito assistencial diverso da saúde gratuita.
Ou seja, se o núcleo familiar ostentar renda "per capita" superior a R$ 127,50 (cento e vinte e sete reais e cinquenta centavos), p.e.,, R$ 130,00 (cento e trinta reais), não terá direito ao benefício. Continuará miserável e dependente da ajuda de terceiros, mas, o Estado não o assistirá.
Castel, com o termo "desfiliação" construiu interessante obra que trata desta massa excluída que, por motivos vários, desde a incapacidade física ou psicológica, até questões étnicas, se vê desprovida do âmbito de solidariedade que deve ser imposto por todo Estado que avoca para si o dever de bem estar social. Transcrevo a propositura deste insigne autor no que tange a formação de um Estado que amaine esta segregação.
"O poder público é a única instância capaz de construir pontes entre os dois pólos do individualismo e impor um mínimo de coesão à sociedade. As coerções impiedosas da economia exercem uma crescente pressão centrífuga. As antigas formas de solidariedade estão esgotadas demais para reconstituir bases consistentes de resistência. O que a incerteza dos tempos parece exigir não é menos Estado – salvo para se entregar completamente às "leis" do mercado. Também não é, sem dúvida, mais Estado – salvo para querer reconstituir à força o edifício do início da década de 70, definitivamente minado pela decomposição dos antigos coletivos e pelo crescimento do individualismo de massa. O recurso é um Estado estrategista que estenda amplamente suas intervenções para acompanhar esse processo de individualização, desarmar seus pontos de tensão, evitar suas rupturas e reconciliar os que caíram aquém da linha de flutuação. Um Estado até mesmo protetor porque, numa sociedade hiperdiversificada e corroída pelo individualismo negativo, não há coesão social sem proteção social. Mas esse Estado deveria ajustar o melhor possível suas intervenções, acompanhando as nervuras do processo de individualização. (As metamorfoses da questão social. Uma crônica do Salário. Robert Castel, 1998, p.141)
Nesta esteira vale citar a conclusão de Ivo Dantas com relação ao posicionamento do Estado atentando-se às facetas várias que se identificam entre a população e suas necessidades, que não podem ser atendidas pela implantação de um sistema capitalista nos moldes tradicionais, ou pior ainda, no atual formato que faz fenecer o elemento produção, ruindo a própria necessidade do emprego, passando a mera exploração financeira.
"Com esta busca a um modelo intermediário entre o Estado Liberal e o Estado Socialista, passa-se da Democracia Política para a Democracia Social, ou seja, da Ideologia Constitucional Liberal à Ideologia Constitucional Social. (Teoria do Estado Contemporâneo. Ivo Dantas, 2008, p. 55)