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Controle da publicidade infantil em Direito Comparado

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03/12/2010 às 05:55
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2.O sistema legal brasileiro de controle da publicidade infantil

A Lei 8078/90, do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, faz pouca consideração à proteção do menor contra a "publicidade abusiva", prevendo apenas no § 2º do artigo 37 que um dos exemplos desse tipo de publicidade é aquele que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança. Considerou o legislador brasileiro que a criança faz parte do público consumidor hipossuficiente. Hipossuficientes são "certos consumidores ou certas categorias de consumidores, como os idosos, as crianças, os índios, os doentes, os rurícolas, os moradores da periferia" que merecem uma proteção especial por sua condição "físico-psíquica, econômica ou meramente circunstancial" (BENJAMIM, 2001, p.303). A criança, por sua vulnerabilidade exacerbada, mereceu proteção especial no CDC brasileiro. Entretanto, muito vaga é essa proteção, se comparada às normas estrangeiras analisadas anteriormente.

No âmbito do controle privado, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária faz várias referências à proteção do menor diante de mensagens publicitárias a ele dirigidas. Além da sua falta de eficácia geral, considerando que apenas se submetem às regras do CONAR as entidades que a ela se filiem, da análise de suas previsões verifica-se que, apesar das constantes atualizações, esse diploma é demasiadamente permissivo.

A análise do código de autorregulamentação brasileiro permite que sejam compreendidas as percepções do próprio mercado publicitário acerca dos impactos da publicidade dirigida às crianças. Como as demais legislações estrangeiras acerca do assunto, o Código de autorregulamentação brasileiro condena mensagens publicitárias que desmereçam valores sociais universais; provoque deliberadamente qualquer tipo de discriminação; associe crianças e adolescentes a situações incompatíveis com sua condição, sejam elas ilegais, perigosas ou socialmente condenáveis; imponham a noção de que o consumo do produto proporcione superioridade ou, na sua falta, a inferioridade; incentivem situações de constrangimento aos pais, responsáveis ou terceiros, com o propósito de impingir o consumo; induza a acreditar que produto conte com características peculiares que, em verdade, são encontradas em todos os similares; utilize situações de pressão psicológica ou violência que sejam capazes de infundir medo (artigo 37, I e alíneas).

Ao regulamentar a publicidade infanto-juvenil, o código de autorregulamentação reconheceu duas classes de publicidades potencialmente danosas aos menores: as publicidades de produtos distribuídos diretamente ao público infantil (artigo 37, II) e a publicidade de qualquer produto ou serviço de público alvo indistinto, cuja oferta publicitária alcance também os menores (art. 37, I).

Ao tratar do uso de menores em publicidades, o referido diploma desestimula "empregar crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo" para ao final admitir, entretanto, "a participação deles nas demonstrações pertinentes de serviço ou produto" (artigo 37 alínea "f"). Da análise desse dispositivo, podemos concluir que jovens e crianças brasileiras podem ser intervenientes em anúncios de qualquer produto, inclusive aqueles não destinados ao seu consumo exclusivo, o que de certa forma, abusa da figura inocente, pura e ingênua da criança. Por mais cuidadosa e bem intencionada que seja a publicidade, o uso de menores em propagandas de produtos e serviços destinados a adultos poderia ser explicitamente condenado pelo Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária ou pelo Código de Defesa do Consumidor.

Até Outubro de 2003, aos olhos do CONAR, menores poderiam participar até mesmo em anúncios de bebidas alcoólicas conforme previa o item 1 do Anexo A ("desde que sua presença seja natural e espontânea e que fique claro que não esteja bebendo"). Atualmente, o Anexo A do referido diploma, um pouco mais rigoroso na sua versão de 10 de Abril de 2008, prevê, no seu item 2, que "crianças e adolescentes não devem figurar, de qualquer forma, em anúncios; qualquer pessoa que neles apareça deverá ser e parecer maior de 25 anos de idade". A única publicidade onde já era totalmente proibida a presença de menores como atores é a que anunciava armas de fogo (Anexo S, item 2, alínea "d"). Ainda assim, a análise dos dispositivos da legislação do CONAR justifica a afirmação de que o Código de Autorregulamentação brasileiro é ainda bastante permissivo se comparado ao de outros países.


REFERÊNCIAS

BRITTO, Igor Rodrigues. Infância e Publicidade: proteção dos direitos fundamentais da criança na sociedade de consumo. Curitiba: CRV, 2010, 226 p.


Notas

  1. O primeiro registro de regulamentação da oferta de bens a menores se encontra no Código de Hamurabi. Na primeira Dinastia Amorita da Babilônia, o Código de Hamurabi foi promulgado prevendo como crime punível com a morte a venda de qualquer produto a uma criança (SOARES, 2004,p.203).
  2. Conforme já apresentado na introdução, o método de microcomparação utilizado no nosso estudo buscou a aproximação de legislações estrangeiras que tratam do mesmo instituto jurídico comparável: o controle público da publicidade dirigida às crianças. Por essa razão foram descartados os sistemas jurídicos dos países latino americanos, com exceção do Brasil, onde não foi identificado tal instituto específico. A título de exemplo, nem o México (por sua Lei Federal de Proteção ao Consumidor, ou pela Lei Federal de Radio e Televisão), nem a Argentina, (que possui um marco normativo da Publicidade, composto pela Lei de Defesa do Consumidor, Lei de Lealdade Comercial, e pela Resolução da Publicidade de Bens e Serviços), e nem o Chile (que além de uma Lei do Consumidor, possui uma Lei sobre Abusos da Publicidade) regulamentaram de forma específica, mesmo que superficial, a publicidade infantil por meio de leis ordinárias. Na América-latina, o assunto é sempre tratado por meio de regras de autocontrole das entidades privadas mantidas por publicitários, o que não garante eficácia de tutela jurídica e, por isso, não serve para a presente comparação. Destacam neste estudo as legislações de alguns Estados-Membros da União Europeia que transpuseram de formas diversas as diretivas europeias sobre controle da publicidade, regulamentando distintamente a publicidade dirigida às crianças. Também foram alvo de comparação os sistemas jurídicos de alguns países de cultura jurídica anglo-saxã que souberam compatibilizar de forma eficiente o controle público e privado da publicidade, num eficaz sistema misto de controle da publicidade infantil.
  3. No Brasil, como será melhor apresentado no capítulo 4 deste livro, recentemente uma significativa doutrina também vem defendendo esta mesma ideia.
  4. Como exemplo, o programa para a proteção da infância na Internet, recomendado pelo ERICA (Pesquisas Europeias em Casos de Consumidores) para a proteção das crianças na Internet, adotado pelo Comitê Econômico e Social da UE, onde se lê na recomendação 4.7: "A União Europeia devia garantir que a atividade comercial em linha não se aproveita da impulsividade e inexperiência das crianças".
  5. "O primeiro Código da C.C.I. sobre Práticas da Publicidade foi publicado em 1937, de forma a organizar um quadro globalmente aceite para uma criatividade e comunicação responsáveis. Desde então, este código geral tem sido regularmente actualizado e enriquecido com códigos distintos dedicados à promoção de vendas, patrocínios, marketing directo, meios electrónicos, publicidade ambiental assim como o estudo de mercado e venda directa. Uma série de orientações complementares resultam de linhas directrizes e de interpretações" (ICC, 2008, p. 6). Mais de 130 países possuem companhias e associações filiadas a ICC (MOBERGER, 2002, p.75).
  6. De acordo com o artigo 189 do Tratado da União Europeia, "para o desempenho das suas atribuições e nos termos do presente Tratado, o Parlamento Europeu em conjunto com o Conselho, o Conselho e a Comissão adoptam regulamentos e directivas, tomam decisões e formulam recomendações ou pareceres. [...] A directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios". Neste sentido, após a adoção de uma diretiva pelo Parlamento Europeu, cada país membro destinatário escolhe a forma em que a norma será transposta ao ordenamento jurídico nacional. A 89/552/CEE não se opõe a uma disposição nacional que prevê regras mais estritas para emissoras de televisão, estabelecidas no território do mesmo Estado-Membro, o que permite a verificação de diferentes níveis de rigor no controle da publicidade de cada Estado-Membro.
  7. Criado pelo Decreto-Lei nº 421/80, e hoje já extinto.
  8. O diploma sofreu 12 alterações, sendo que a última trouxe avanços significativos quanto ao controle da publicidade de alimentos e bebidas geradores da obesidade infantil. Sobre a lege ferenda portuguesa, os comentários do nosso Professor Mario Frota, presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo, em sua obra publicada no Brasil sob o título A Publicidade Infanto-Juvenil – perversões e perspectivas. 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2006, p.80 a 86.
  9. A legislação francesa que transpôs a referida Diretiva Europeia apresenta conteúdo muito semelhante ao Código da Publicidade Português (Décret no 92-280 de 1992, art. 7º: "La publicité ne doit pas porter préjudice aux mineurs. A cette fin, elle ne doit pas: 1º Inciter directement les mineurs à l'achat d'un produit ou d'un service en exploitant leur inexpérience ou leur crédulité; 2º Inciter directement les mineurs à persuader leurs parents ou des tiers d'acheter les produits ou les services concernés; 3º Exploiter ou altérer la confiance particulière que les mineurs ont dans leurs parents, leurs enseignants ou d'autres personnes; 4º Présenter sans motif légitime des mineurs en situation dangereuse").
  10. Disponível em: <http://www.auc.es/Documentos/Legislacion/Ley>. Acesso em: 18 jul. 2008.
  11. Desde 2004, os anunciantes, publicitários e veículos de comunicação espanhóis contam com um serviço criado por um acordo entre o Ministério da Indústria Espanhol e a Associação para a Autorregulamentação da Comunicação Comercial da Espanha, por meio do qual podem consultar a adequação legal e ética dos seus anúncios antes da emissão. De acordo com Norminanda Vilar (2007, p.80) a publicidade infantil foi a mais vigiada pelo sistema e seus anunciantes e criadores foram instados a modificar seus conteúdos.
  12. Seção 4 do Capítulo 7 da Lei de Rádio e Televisão da Suécia (Swedish Radio and Television Act). Disponível em: <http://www.rtvv.se/_upload/Publikationer/Radio>. Acesso em: 16 jul. 2008.
  13. The Broadcast Code for Advertising to Children (CANADIAN ASSOCIATION OF BROADCASTERS, 2007, p.3)
  14. Disponível em: <http://www.acma.gov.au>. Acesso em: 20 dez. 2009.
  15. Disponível em: <http://www.adstandards.com.au>. Acesso em: 20 dez. 2009.
  16. O controle da Publicidade na Inglaterra é realizado por um sistema misto muito bem "entrosado". O Office of Communication é a entidade independente de caráter público competente para a realização das políticas gerais de controle da publicidade, e aplicação das normas britânicas que transpõem as Diretivas Europeias reguladoras dos meios de comunicação de massa. É competência do OFCOM realizar o controle sobre a quantidade, distribuição, programação e apresentação da publicidade nos meios de comunicação britânicos (cujas regras estão compiladas no Ofcom Code). Mas o controle sobre o conteúdo dos anúncios publicitários é de responsabilidade da Advertising Standards Authority (por meio do seu TV Advertising Standards Code e Radio Advertising Standards Code) entidade independente de caráter privado. Ambos os sistemas de controle, público e privado, convivem em harmonia no ordenamento jurídico inglês (OFCOM. Rules on the amount and distribution of advertising. Disponível em: <http://www.ofcom.org.uk/tv>. Acesso em: 10 jan. 2010.
  17. Comentários iniciais (Background nº 1 e 2) à secção 7 do TV Advertising Standards Code combinado com o OFCOM Code.
  18. Os comentários ao Código informam que um brinquedo é caro quando seu preço for acima de £25 (http://www.asa.org.uk/asa/codes/tv_code/tv_codes/Section+7+-+Children.htm).
  19. Como exemplo, temos a publicidade de bonecos de guerra em que comumente o boneco é apresentado em sua forma real nas mãos das crianças e, na sequência, surge o mesmo boneco como personagem de desenho animado. Tal mensagem pode suscitar na mente infantil que o brinquedo se movimenta ou fala por si só, ou pode iludir o consumidor sobre o tamanho e demais características físicas do produto. O mesmo ocorre nos comerciais de carros de controle remoto, em que a forma em que são realizadas as filmagens ou fotografias pode induzir o consumidor a acreditar que o brinquedo é muito mais veloz do que na realidade. Ou ainda, quanto aos brinquedos e "kits" de construção e montagem para os quais devem os publicitários cuidar para que os menores percebam que eles deverão montar os brinquedos que aparecem como exemplo, mostrando, caso necessário, as peças separadas sem a sua intervenção ou como se faz para montá-los.
  20. Como exemplo, o anúncio inglês que teve sua divulgação proibida por apresentar um bebê dormindo sobre uma máquina de lavar roupas no intuito de atestar o reduzido barulho produzido pelo produto (SOARES, 2004, p.211).
  21. Conceito dado pela ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Criança e ao Adolescente, no Programa de Redução de Comportamentos Agressivos entre Estudantes, em parceria com a Petrobrás, que pode ser lido em http://www.bullying.com.br.
  22. Disponível em: <http://www.caru.org>. Acesso em: 12 ago. 2009.
  23. A percepção que a CARU tem sobre a publicidade infantil é: "CARU’s self- regulatory program sets high standards for the industry to assure that advertising directed to children is not deceptive, unfair or inappropriate for its intended audience. The standards take into account the special vulnerabilities of children, e.g., their inexperience, immaturity, susceptibility to being misled or unduly influenced, and their lack of cognitive skills needed to evaluate the credibility of advertising" (Self-Regulatory Program for Children’s Advertising, p.3, disponível em: <http://www.caru.org>. Acesso em: 12 ago. 2009).
  24. Marita Ulvskog, ministra sueca da Cultura em entrevista ao Diário de Notícias (disponível em: <http://www.truca.ptl>, reportagem de Cátia Almeida, acesso em: 15 jul. 2008). No mesmo sentido, o Diretor Geral da Agência Sueca de Consumidores, Axel Edling, em discurso na conferência de 23 de Novembro de 1999 em Londres sobre "Publicidade Televisiva e Crianças" (Disponível em: <http://lists.essential.org>. Acesso em: 15 jul. 2008).
  25. Tradução nossa para "Commercial advertising in a television broadcast may not be designed to attract the attention of children less than 12 years of age. Individuals or characters who play a prominent role in programmes which are primarily aimed at children under 12 years of age may not appear in commercial advertising in a television broadcast". Disponível em: <http://www.rtvv.se/_upload/Publikationer/Radio>. Acesso em: 16 jul. 2008.
  26. Tradução nossa para "Notwithstanding the provisions of Section 7 and Section 7a, religious services or programmes primarily aimed at children under 12 years of age may not be interrupted by advertising". Disponível em: <http://www.rtvv.se/_upload/Publikationer>. Acesso em: 16 jul. 2008.
  27. Como, por exemplo, o Seminário "A infância e a juventude e os novos media", realizado em Estocolmo em Fevereiro de 2002, em que o tema foi definido como uma das áreas prioritárias da presidência da UE pela Suécia, sendo a sua posição temida por profissionais da maioria dos demais Estados membros. Naquela ocasião, nenhum país demonstrou apoio aos suecos e apenas a Grécia se mostrou simpatizante às suas ideias (Associação Portuguesa de Imprensa. Comissão Europeia enterra projecto sueco de proibição de publicidade infantil. Disponível em: <http://www.aind.pt/meios2001/çrevmarco/comissao_europeia.html>. Acesso em: 15 jul. 2008).
  28. HENRIQUES, 2006, p.174-187; CRIANÇA E CONSUMO, 2009, p.64-67; MOMBERGER, 2003, p. 75-141; FROTA, 2006, p. 49-59; VILAR, 2007, p.79-100.
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Sobre o autor
Igor Rodrigues Britto

Autor do Livro "Infância e Publicidade: proteção dos direitos fundamentais da criança na sociedade de consumo". Professor de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito de Vitória - FDV (Vitória, ES). Professor colaborador da Escola Nacional de Defesa do Consumidor do Departamento Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor, Ministério da Justiça, Brasil. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Pós-Graduado em Direito do Consumo e em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e Pós-Graduado em Direitos Fundamentais e Transformação do Estado pela Universidad Carlos III de Madrid. Foi colaborador voluntário da Associação Portuguesa de Defesa do Consumidor (Coimbra, Portugal) e pesquisador convidado do Centro de Estudos do Consumo da Universidad de Castilla -La Mancha. Pesquisador Bolsista da Fundação Carolina (Espanha) no tema "Consumo Infantil e Controle da Publicidade". Membro da rede de trabalho do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana (São Paulo, Brasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITTO, Igor Rodrigues. Controle da publicidade infantil em Direito Comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2711, 3 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17961. Acesso em: 10 mai. 2024.

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