3. Manejo florestal, manejo florestal comunitário e aspectos controversos
A Lei 11.284/2006, que regula a gestão de florestas públicas, conceitua em seu art. 3º manejo florestal sustentável como a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal (inciso VI) [23]. O manejo florestal sustentável tratado pelo referido diploma legal, recai sobre as florestas públicas, isto é, as florestas naturais ou plantadas, localizadas nos diversos biomas brasileiros, em bens sob o domínio da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou das entidades da administração indireta (inciso I).
O art. 4º dispõe que a gestão de florestas públicas para produção sustentável compreende a criação de florestas nacionais, estaduais e municipais, nos termos do art. 17 da Lei 9.985/2000, e sua gestão direta (inciso I) e a destinação de florestas públicas às comunidades locais, nos termos do art. 6º desta Lei (inciso II). O art. 6º, por sua vez, dispõe que as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes, por meio da criação de reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, observados os requisitos previstos da Lei 9.985/2000 (inc. I).
No caso das reservas extrativistas, não se aplica o regime de concorrência previsto na Lei 11.284/2006, já que o uso dos recursos naturais já lhe foi concedido através de contrato de concessão real de uso. Valem, neste caso, as regras do SNUC.
Para a exploração de recursos madeireiros se faz necessário prévio licenciamento ambiental, haja vista o caráter potencialmente degradado da atividade (Constituição da República, art. 225, § 1º, IV). Deverá ser elaborado plano de manejo florestal sustentado, custeado por ente público gestor da unidade ou pela entidade representativa da população tradicional (art. 12, "caput", do Decreto 4.340/2002).
Não existe ainda um delineamento seguro entre os conceitos de plano de manejo florestal sustentável (utilizado no caso de propriedades privadas e florestas públicas) e plano de manejo florestal comunitário (a ser utilizado em RESEX). Entretanto, é certo que este deve possuir como características: exploração em menor escala (ou seja, menor quantidade de madeira extraída), repartição de benefícios entre os membros da comunidade e emprego de mão de obra da comunidade local.
O sistema exige uma base de operação extremamente complexa e de altíssimo custo, exigindo níveis elevados de subsídios, seja através do governo, seja através das organizações não governamentais, acarretando uma sugestiva eterna dependência dos extrativistas aos agentes externos. Aliás, em termos sociais, culturais, econômicos e, em parte, também ambientais, a base técnica do manejo comunitário madeireiro está para as comunidades de extrativistas assim como a base técnica da revolução verde (agricultura convencional) esteve e está para a agricultura camponesa. Sem a tutela do Estado e das entidades civis, dificilmente comunidades de extrativistas se empenhariam em realizar algo tão complexo [24].
Muitos são os argumentos contrários a exploração madeireira nas reservas extrativistas. Em primeiro lugar, existe o entendimento segundo o qual o extrativismo compreende apenas recursos não-madeireiros, já que a madeira não é facilmente renovável em condições naturais. Além disso, segundo a origem da atividade extrativista e o "meio de vida e cultura das populações tradicionais", a madeira não faz parte dos produtos extrativistas (exceto para o consumo próprio), provavelmente pelo reconhecimento intuitivo do seringueiro quanto ao alto impacto resultante de sua exploração, que afetaria a exploração da borracha, da castanha e dos demais produtos florestais [24].
Por outro lado, Vandana Shiva e Wolfgang Sachs apontam como a exploração de madeira, atividade de caráter exógeno, termina por violentar as populações tradicionais, retirando delas, pouco a pouco, o direito a viver da floresta, devido aos impactos resultantes da exploração [25]. Afirmam que a exploração de madeira vem como uma proposta externa, de alguns órgãos técnicos, imbuída de um discurso dogmático e conservacionista, mas que, na verdade, representa um impacto cultural, por não respeitar o significado que a floresta tem para as populações tradicionais, nem seu meio de vida [26].
No âmbito da engenharia florestal, as árvores maiores e mais velhas, que são justamente as prioritárias na exploração, e que tem alta importância ecológica e significação cultural, não são renováveis. Não bastasse isso, não existem estudos mínimos, sistematizados, sobre a ecologia das espécies arbóreas, de forma que se questiona a renovabilidade das espécies exploradas nos ciclos de corte propostos de trinta anos [27]. Lembre-se, ainda, que a retirada da madeira encerra os serviços ambientais que a árvore abatida antes prestava.
A legislação e a certificação da madeira manejada contemplam, basicamente, critérios sociais, sendo dispensada pouca ou nenhuma atenção ao critério ecológico. Por exemplo, os danos à fauna resultantes da operação das motosserras e da abertura de estradas e pátios não são estudados ou mitigados. Os critérios básicos do manejo são, e sempre foram desde a origem da engenharia florestal, ou seja, critérios econômicos. Todavia, a sustentabilidade a ser exigida, na extração de madeira de reservas extrativistas, deve ser a ambiental (ecológica) e não econômica. Estudos prévios recomendam maior cautela, com maiores zonas preservadas, monitoramento do impacto ecológico, menores índices de exploração e reflorestamento (plantio e acompanhamento de mudas no pós-exploratório) [28].
No aspecto social, a exploração de madeira acaba sendo concorrente dos produtos não-madeireiros, desestimulando a atividades extrativistas e de turismo, incrementando a transfiguração cultural de populações outrora tradicionais. Roberta Graf e Arlindo Gomes aduzem que os impactos socioambientais têm sido significativos nas áreas já sujeitas ao manejo madeireiro no Acre, ainda que na modalidade "comunitária". Poucas famílias são incluídas em cada projeto, o que causa desagregação social. Ao redor das áreas manejadas, instaura-se um cinturão de crimes ambientais diversos, inclusive com acentuada venda ilegal de madeira, pela influência dos atrativos comerciais abertos na região. O manejo madeireiro também abre acesso a áreas protegidas, e dá margem à expansão da pecuária, tendo sido chamado de "desmatamento oculto". Tem sido comum, no Acre, posseiros de áreas manejadas plantarem capim nas estradas, clareiras e pátios abertos [29].
Alem disso, deve-se destacar que, diante da incapacidade do Poder Público de fiscalização dos planos de manejo em propriedades privadas, seria muito pouco prudente autorizar tal espécie de atividade em áreas protegidas como as reservas extrativistas.
Na verdade, o manejo florestal madeireiro pode servir para substituir práticas predatórias das empresas madeireiras, mas não para ser aplicado como política de desenvolvimento socioambiental em unidades de conservação.
O atrativo econômico da madeira, aliado à lentidão do desenvolvimento do extrativismo não-madeireiro enquanto fonte de renda consolidada, explicam o caminho adotado por governos e comunidades. Porém, é necessário ressaltar que a renda aliada à conservação da floresta tende, inevitavelmente, a aumentar no futuro próximo, dado o interesse mundial pela Floresta Amazônica. A tendência de desenvolvimento da cadeia produtiva de uma maior variedade de produtos não-madeireiros (incluindo beneficiamento local, certificação e agregação de valor), aliado ao ecoturismo e turismo cultural, à remuneração pelos serviços ambientais, à repartição de benefícios pelo conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, à bioprospecção e a biotecnologia, gerarão cada vez mais renda, e dependerão da floresta conservada [30].
4. Casuística
Como quase tudo que se produz no Brasil, a casuística da exploração madeireira nas reservas extrativistas é extremamente diversificada. No Acre, já se encontram em execução inúmeros planos de manejo, financiados por entidades sem fins lucrativos ou pelo Estado. Estes projetos têm de alguma forma gerado renda para as populações locais, embora estas reinvistam o capital em atividades de grande potencial degradador como pecuária extensiva [31], que é proibida pelo art. 18 da Lei 9.985/2000, evidenciando total desestruturação do modo de vida tradicional.
Já em Rondônia, como seria de se esperar, o grau da patologia mais profundo. Há o exemplo da RESEX estadual do Rio Pacaás Novos, na qual o custoso plano de manejo florestal foi custeado pelas associações representativas de seringueiros, todavia mediante empréstimos tomados junto a empresários do setor madeireiro, e garantidos mediante compromisso de venda futura de madeira. Não bastasse isso, tudo licenciado pelo gestor estadual. De um modo geral, em Rondônia as entidades de seringueiros associara-se a madeireiros, consentindo com a exploração da madeira em padrões empresariais, recebendo pagamento da madeira in natura, tudo com a chancela do Estado. Felizmente tais condutas vem sendo combatidas pelo Ministério Publico através de ação civil publica, estando referido plano de manejo suspenso liminarmente por decisão judicial [32].
É reproduzido, desse modo, o modelo de servidão que sempre vigorou entre os seringueiros amazônicos. Se antes se endividavam com o seringalista ou com o comerciante do "regatão" [33], os quais pagavam com o recurso natural do látex da seringa, agora estão endividados com madeireiros em milhões de reais (valor gasto em elaboração do plano de manejo florestal, construção de estradas para escoamento da produção, etc.) e pagarão com a preciosa madeira. Nasce uma servidão de longo prazo que será paga com recursos naturais da coletividade difusa.
Em verdade, é fato notório que os madeireiros sempre zombaram da figura legal das Florestas (nacionais ou estaduais), haja vista a facilidade de exploração predatória e sem limites. Todavia, com a escassez de madeira e aumento da fiscalização, a pressão sobre os recursos naturais aumentou sobremaneira, levando autoridades públicas a chancelar a predação no interior de unidades de conservação, usando ainda o argumento pífio de que isto acarretará melhoras na condição social das populações tradicionais, lançadas à penúria pela ausência de política socioambiental governamental [34].
Em suma, ao arrepio da lei, o que se está pretendo implantar em inúmeras reservas extrativistas é, em poucas palavras, um projeto de bases empresariais que outorga a particular a exploração de recursos públicos. Para isso o SNUC prevê a figura da Floresta Nacional [35]. De fato, empresas madeireiras, em conluio com entidades seringueiras construíram, em alguns casos com a chancela dos órgãos ambientais estaduais, um meio de burlar a necessidade de processo licitatório para a concessão do uso de Florestas Nacionais ou Estaduais, propiciando que particulares se apoderem de bem público (o patrimônio florestal) sem se submeterem à concorrência pública.
Para isso, associações representativas dos seringueiros concordam em serem utilizadas como "testas-de-ferro" para que empresas madeireiras possa explorar florestas intocadas das reservas extrativistas, mediante pagamento do valor da madeira bruta à lideranças, como se fosse a simples venda de madeira de uma propriedade privada.
Entretanto, ainda que a ilegalidade não atinja tal magnitude, o problema não é exclusivo do Brasil e vivencia-se em toda a América Latina, na África, Austrália e Nova Zelândia. Na África, o sistema de manejo comunitário refletiu a adoção do paradigma socioambiental e tendeu a valorizar muito mais o aspecto humano, em detrimento da conservação, que passou a ser finalidade secundária. O mesmo sistema foi implantado na Austrália (a partir no modelo africano), porém sem êxito, assim como ocorreu no Zimbábue. Isto porque tanto na Austrália como na África as populações tradicionais demonstraram má-vontade em participar da conservação da vida silvestre, o que se verificou mais acentuadamente nas áreas mais pobres e nas áreas em que a natureza era considerada um empecilho à agropecuária [36].
Como constata Adrián Monjeau, "Ante las presiones sociales por el uso de recursos dentro de áreas protegidas, los manejadores se ven impulsados a bajar la categoría de protección en parte del área protegida" [37]. Em outras palavras, diante dos interesses imediatos de poucos, sacrificam-se os interesses presentes e futuros de muitos.
Além do simples problema da exploração madeireira, a própria figura das reservas extrativistas encontra-se em discussão, dada a complexa problemática envolvida na gestão, que não agrada nem aos que buscam a conservação da biodiversidade e nem os que almejam a dignidade das populações tradicionais. De fato, se as populações não desenvolvem mais o extrativismo, mas atividades majoritariamente agropecuárias, não há sentido na existência desta modalidade de unidade de conservação.
Chega-se a cogitar a transformação das reservas ou de parte destas em assentamentos, solução a absolutamente inconstitucional, porque viola o princípio da proibição da retrogradação ambiental. Nos termos da Lei 6.938/1981, degradação ambiental é a "alteração adversa das características do meio ambiente" (art. 3º, II), ou seja, é a resultante dos processos de danos ao meio ambiente, pelos quais se perdem ou se reduzem algumas de suas propriedades [38]. Como da degradação ambiental advém conseqüências negativas para a qualidade de vida, o princípio da proibição da retrogradação visa proteger os processo ecológicos e o respectivo equilíbrio, essencial à vida sadia nos termos do caput do art. 225 da Constituição.
Neste caso, a melhor solução seria, especialmente em obediência ao art. 225, caput, e § 1º, III, da Constituição da República, o assentamento das populações em outros imóveis localizados fora da reserva extrativista e a transformação desta em unidade de conservação de proteção integral.