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A legítima defesa putativa como fato gerador do dever de indenizar à luz da legislação brasileira

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07/12/2010 às 15:45
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A LEGÍTIMA DEFESA COMO CAUSA MOTIVADORA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Legítima defesa putativa é a também denominada legítima defesa ficta. A situação de perigo existe tão somente no imaginário daquele que supõe repelir legitimamente um injusto. Constitui descriminante putativa ou seja, o agente "supõe a ocorrência de uma excludente de criminalidade que, se existisse, tornaria sua ação legítima". [51] Por conseguinte, a ação do que se supõe agredido é revestida de antijuridicidade, em divergência daquele que age em legítima defesa real. Afirma Jescheck que "o fato praticado sob a suposição errônea de uma causa de justificação continua, pois, sendo um fato doloso". [52]

Conforme discorrido nas laudas supra, a legítima defesa é instituto que exclui a antijuridicidade da ação daquele que repele a agressão injusta. Diferentemente, a legítima defesa putativa, por constituir erro sobre a situação fática, pode ser causa justificante através da eliminação da culpabilidade do agente ou causa de diminuição de pena, conforme expõe Bitencourt:

A legítima defesa putativa supõe que o agente atue na sincera e íntima convicção da necessidade (grifo do autor) de repelir essa agressão imaginária (legítima defesa subjetiva). [...] No entanto, se esse erro, nas circunstâncias, era inevitável, exculpará o autor; se era evitável diminuirá a pena, na medida de sua evitabilidade. [53]

A culpabilidade é elemento pressuposto da aplicação da pena, não excluindo a antijuridicidade do fato, incidindo apenas sobre o momento no qual o Estado inflige a punição ao agente. A análise da culpabilidade é um juízo de reprovação subjetivo, acerca do autor do fato típico e antijurídico, e sua presença se perfaz quando o autor do fato, podendo agir em conformidade com o Direito, resolve, voluntariamente, agir em desconformidade com o sistema normativo. [54] A análise do instituto da culpa, em tela, é jurídica, não moral ou religiosa. Excluída a culpa, por conseguinte, verifica-se excluída a aplicação da pena, uma vez que esta é proporcional à responsabilidade subjetiva do autor do fato.

Rememorando os vernáculos supramencionados de Bitencourt, ao destrinchar o caso concreto da legítima defesa putativa, quando o erro for inevitável, não podendo exigir-se do indivíduo conduta diversa, restará excluída a culpa do autor e, quando evitável, o injusto ficto atua como causa de diminuição da pena. O julgador, ao apreciar os fatos, deve ter a cautela de analisar as provas, vincular sua análise ao animus defendendi e às circunstâncias que levaram o autor do ilícito ao erro, buscando assim a verdade real, escopo investigatório do processo penal brasileiro, que leva à aplicação da justiça.

Ante o exposto, poderia o pesquisador ser levado a concluir que a exclusão da culpa penal acarreta na exclusão da culpa civil, ou seja, na exclusão da responsabilidade de indenizar. Este pensamento é errôneo, vez que responsabilidades penal e civil não se confundem. A responsabilidade penal diz respeito a bens jurídicos tutelados tais como a vida e a liberdade, enquanto a responsabilidade civil recai, especialmente, sobre o patrimônio, tanto do responsável pela reparação do dano, quanto daquele que sofreu a lesão patrimonial ou moral. O professor Rafael de Menezes reforça a afirmação quando aponta que o titular da ação penal, no caso das ações penais incondicionadas, é o Ministério Público, enquanto o titular da ação civil é o indivíduo particular que sofreu o dano ou seus representantes legais. [55] Ainda, apenas a legítima defesa real exclui o dever de indenizar o agressor, tendo o indivíduo que agiu em legítima defesa direito de impetrar ação regressiva contra o infrator caso atinja terceira pessoa ou bem de outrem.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese ser o Estado responsável pela tutela dos bens jurídicos dos cidadãos, em especial os bens indisponíveis, se vale aquele de uma ferramenta para exercer essa tutela, ofertando à sociedade, dessa forma, a plena sensação da persecução e concretização da Justiça, em sua acepção filosófica.

Onde o homem vive organizado em grupos, se faz presente Direito e Religião. Daí, infere-se que o Direito é, certamente, mais relevante que a ciência. O propósito do Direito é o justo, a razoabilidade e a resolução dos conflitos de direitos que colidem entre si. Embasado neste objetivo, o Estado, tutor dos bens jurídicos da sociedade e provedor do bem-estar social, confere ao particular a faculdade de agir, em situações específicas, de forma a resguardar bem jurídico que sofre ou possa vir a sofrer agressão ilegítima. A ação do indivíduo, nesta situação, é típica, mas não antijurídica. Ou, ainda, pode ser típica e antijurídica, mas uma conduta tal que não se reveste de culpabilidade, como no caso da legítima defesa putativa.

O choque de dois ramos do Direito que versam distintamente sobre bens tutelados pode levar o estudioso a falsamente crer na tese da exclusão da responsabilidade civil no caso da legítima defesa putativa, por conta da não imposição de pena, no sentido criminal (quando dessa forma couber a aplicação do direito). A exclusão da culpabilidade no âmbito penal não exclui a culpa na esfera cível, consequentemente não esmaecendo o dever de reparar o dano causado, este decorrente de erro do agente ao apreciar a situação fática.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de setembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/del2848.htm>. Acesso em: 24 de set. de 2010.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 de set. de 2010.

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PAULA, Carolina Bellini Arantes de. As excludentes de responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Atlas, 2007.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 6.ed.ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.


Notas

  1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 313.
  2. Ibidem.
  3. WELZEL, Hans apud ibidem. p. 314.
  4. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 6.ed.ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 379.
  5. WELZEL, Hans apud loc.cit.
  6. PRADO, Luiz Regis. Loc. cit.
  7. Ibidem.
  8. BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 171 et seq.
  9. Idibem. p. 183.
  10. Loc. cit.
  11. PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 380.
  12. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 327.
  13. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de setembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/del2848.htm>. Acesso em: 24 de set. de 2010.
  14. Ibidem.
  15. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 de set. de 2010.
  16. BRANDÃO, Cláudio. Loc. cit.
  17. ASÚA, Luis Jiménez de apud BRANDÃO, Cláudio. Op. cit. p. 191.
  18. BRANDÃO, Cláudio. Loc. cit.
  19. PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 389.
  20. BETTIOL, Giusepe apud BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 340.
  21. BRASIL. Op. cit. Acesso em 27 de setembro 2010.
  22. BRANDÃO, Cláudio. Loc. cit.
  23. PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 391.
  24. BRANDÃO, Cláudio. Op. cit. p. 192.
  25. PRADO, Luiz Regis. Loc. cit.
  26. ROXIN, Claus apud ibidem.
  27. BRANDÃO, Cláudio. Loc. cit.
  28. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 341.
  29. Ibidem. p. 342.
  30. HUNGRIA, Nelson apud ibidem.
  31. Nomenclatura utilizada atualmente para referir-se a indivíduo menor de 18 anos.
  32. PRADO, Luiz Regis. Op. cit., 392.
  33. Ibidem.
  34. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 343.
  35. Ibidem.
  36. MESTIERI, João apud BRANDÃO, Cláudio. Op. cit. p. 193.
  37. BITENCOURT, Cezar Roberto. Loc. cit.
  38. Ibidem. p. 344.
  39. AZEVEDO, Álvaro Villaça apud AZEVEDO, Marcos de Almeida Villaça. AIDS e responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2002. p. 17.
  40. PAULA, Carolina Bellini Arantes de. As excludentes de responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Atlas, 2007. p. 09.
  41. Ibidem. p. 12.
  42. Loc. cit.
  43. Ibidem. p. 13.
  44. Ibidem. p. 08.
  45. MENEZES, Rafael de. Ato ilícito e responsabilidade civil. Disponível em: <http://www.rafaeldemenezes.adv.br/artigos/responsabilidade.htm>. Acesso em 12 de nov. de 2010.
  46. AZEVEDO, Marcos de Almeida Villaça. Op. cit. p. 18.
  47. DICIONÁRIO WEB. Disponível em: <http://www.dicionarioweb.com.br/dano.html>. Acesso em 12 de nov. de 2010.
  48. MENEZES, Rafael de. Op. cit.
  49. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 81.
  50. MENEZES, Rafael de. Op. cit.
  51. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit.p. 400.
  52. JESCHECK, H. H. apud ibidem. Loc. cit.
  53. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. p. 345.
  54. BRANDÃO, Cláudio. Op. cit. p. 200.
  55. MENEZES, Rafael de. Op. cit.
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Sobre a autora
Bruna Fernandes Coêlho

Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco, pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Gama Filho (RJ); pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Magistrados de Pernambuco; graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COÊLHO, Bruna Fernandes. A legítima defesa putativa como fato gerador do dever de indenizar à luz da legislação brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2715, 7 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17980. Acesso em: 24 abr. 2024.

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