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Constitucionalidade de cláusulas de convalidação em medidas provisórias

01/09/2000 às 00:00
Leia nesta página:

          Em recente julgamento, como veremos a seguir, o Supremo Tribunal Federal evidenciou, mais uma vez, a dimensão dos problemas causados pelo mau e excessivo uso das medidas provisórias.

De fato, além da polêmica causada pela possibilidade de reedição destas normas pretensamente provisórias, ainda existe no ordenamento jurídico pátrio a discussão acerca de um de seus aspectos mais controvertidos, que diz respeito à inserção de cláusulas de convalidação.

Tão gravosa é sua extensão que atualmente podemos afirmar que de todos os problemas suscitados pela reedição deste instituto, não há dúvidas de que o de maiores conseqüências é aquele referente aos efeitos da medida provisória não convertida em lei, e ao qual está ligada esta malfadada cláusula.

É fato notório que se tornou prática corrente a inclusão pelo Poder Executivo no corpo das medidas provisórias reeditadas – porque não foram objeto de deliberação do Congresso Nacional – de cláusula convalidadora das disposições da medida provisória predecessora.

Assim, a medida provisória reeditada, ao final de seu texto, convalida os atos praticados sob a égide da medida provisória antecessora ou das antecessoras, contrariando expressamente a disposição constitucional, segundo a qual: "as medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes" (art. 62, parágrafo único).

Há, no entanto, além de um evidente erro de interpretação do texto constitucional, um grave equívoco terminológico, consagrado pelos três poderes. No termo "convalidação"(1) está presente a idéia de conferir validade. Confere-se validade, no caso das medidas provisórias, ao que não tem validade ainda ou perdeu a que teve. Medida provisória não convertida em lei não tem validade. Medida provisória não convertida em lei não teve validade – é como se nunca tivesse tido.

A convalidação é termo usado em Direito Administrativo, e nele está presente a noção de supressão de vício existente em um ato ilegal. Esclarece bem Maria Sylvia DI PIETRO(2):

          Convalidação ou saneamento é o ato administrativo pelo qual é suprido o vício existente em um ato ilegal, com efeitos retroativos à data em que este foi praticado.

          A convalidação é ato discricionário, porque cabe à Administração, diante do caso concreto, verificar o que atende melhor ao interesse público: a convalidação, para assegurar validade aos efeitos já produzidos, ou a decretação de sua nulidade, quando dos efeitos produzidos sejam contrários ao interesse público.

Quando se fala em cláusula de convalidação em medida provisória, não está presente a idéia de sanar um vício, mas tão-somente de ratificar o termo anterior.

Ao afirmar que se admitida fosse, pela Constituição, qualquer operação destinada a preservar a validade dos efeitos produzidos por atos praticados com base em medida provisória, não-convertida em lei, certamente que a técnica jurídica reclamaria a substituição do termo convalidação pelo vocábulo confirmação(3).

Na verdade, este termo se assemelha mais ao caráter dado pela reedição da medida provisória, uma vez que a "confirmação", que também é vocábulo de Direito Administrativo, difere da convalidação, porque ela não corrige o vício do ato; ela o mantém tal como foi praticado(4).

Entrementes, a despeito de todas as dúvidas e desconfianças suscitadas pelo uso sucessivo desta cláusula, parece que sua inconstitucionalidade é assente nos tribunais pátrios. Com efeito, em sessão do dia 26.04.00, a Corte Suprema julgou o Recurso Extraordinário nº 254.818/PR que foi interposto contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O referido acórdão declarou extinta a punibilidade do recorrido pelo pagamento de dívida, com base no art. 7º, §7º da Medida Provisória nº 1.571/97 (dispositivo que suspendia a aplicação da norma penal prevista na alínea "d" do art. 95 da Lei nº 8.212/91 para aqueles que comprovassem o parcelamento de dívida decorrente do não recolhimento de contribuições previdenciárias e, em conseqüência, após a sua quitação, declarava a extinção da punibilidade do fato) que não foi reproduzido em suas reedições posteriores, mas que teve os atos praticados com base no seu conteúdo convalidados pela Lei nº 9.639/91.

De tal sorte, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator, votou no sentido de não conhecer do recurso, ao entendimento de que, como a lei de conversão declarou a validade dos efeitos da medida provisória revogada, anteriores à sua revogação, a norma de extinção da punibilidade perdeu a sua eficácia somente a partir da sua revogação pela medida provisória convertida em lei, e não desde a data da sua edição originária.

Ou seja, esta Corte ratificou entendimento pelo qual admite a inserção de cláusulas de convalidação em medidas provisórias, o que seria reconhecido como uma conseqüência natural e lógica, tendo em vista que anteriormente já havia permitido sua sucessiva reedição, desde que presentes os requisitos de "relevância e urgência".

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Assim, este procedimento posterga, ao arrepio da disposição constitucional, sem solução de continuidade, a reedição da medida provisória, uma vez que a cláusula de convalidação exclui a reaplicação da anterior legislação com elas incompatível, convalidando os atos praticados com base em norma provisória.

Não há perda de eficácia ab initio das medidas não convertidas em lei nos trintídios respectivos. Neste caso especificamente, a lei anterior à medida provisória deveria ser restabelecida, inclusive durante o tempo em que teve existência a medida provisória, o que efetivamente não ocorre.

Manoel Lacayo VALENTE(5), em ensaio sobre as medidas provisórias, manifestou-se com as seguintes palavras a respeito da questão:

          Essa perda da aptidão para produzir efeitos jurídicos ab initio permite a sobrevida da legislação anterior atingida pela medida provisória que caduca. Ocorre nesse caso não a represtinação da legislação anterior, já que a mesma não fora revogada com definitividade, mas a sua reaplicação temporariamente afastada pela norma provisória cujos efeitos se extinguiram. Por força dessa situação jurídica singular, há que ser entendido que, durante o trintídio de vigência da medida provisória, a anterior legislação, por ela atingida, fica, transitoriamente, sem aplicação, não resultando daí nenhuma revogação ou alteração definitiva no universo legal, salvo se convertida em lei a respectiva norma provisória.

Com a indeclinável perda de eficácia ab initio da medida provisória, segundo interpretação estrita do texto constitucional, a prorrogação de validade da medida provisória não encontra amparo constitucional, pois a única forma de atingir este objetivo seria pela conversão em lei.

Como afirma Marco Aurélio GRECO(6) ao convalidar-se "ato" praticado na vigência da medida provisória não convertida, esta ato terá o status de "ato jurídico perfeito" com todas as conseqüências decorrentes, o que não se compatibiliza de forma alguma com sua provisoriedade.

De fato, a preservação, no tempo, dos efeitos de medidas provisórias não apreciadas pelo Congresso Nacional revela-se em manifesta colidência não só com o que expressa e literalmente dispõe o texto constitucional, mas, também, com a própria mens constitucionis, que quis suprimir a possibilidade de sua subsistência no mundo jurídico(7).

É de inteira precisão, neste sentido, a argumentação do Ministro Celso de MELLO(8) que admite que a convalidação, por deliberação executiva, de atos praticados com fundamento em medida provisória não convertida afronta o preceito consubstanciado constitucionalmente, que prevê a desconstituição integral e radical, com eficácia ex tunc, das conseqüências geradas pelo ato normativo não convertido em lei.

Não se pode, assim, a partir da interpretação da Constituição, encontrar um significado que seja mais conveniente ao caso concreto, partindo-se de um "malabarismo jurídico" como é a possibilidade de inclusão da cláusula de convalidação.

Sobre os cuidados que devem ser observados na interpretação da Constituição é extremamente elucidativo o entendimento de Inocêncio COELHO(9):

          No campo específico da interpretação constitucional – onde as normas positivadas sequer traduzem decisões inequívocas do legislador, nem muito menos uma suposta ou imaginária vontade da própria Constituição – limitando-se, o mais das vezes, a enunciar princípios ou a indicar objetivos a serem comunitariamente alcançados e/ou renovados ao longo do tempo–, nesse domínio hermenêutico parece disparatado conceber-se o intérprete como um psicanalista que, no divã do seu consultório, procure descobrir o cliente verdadeiro que se esconde atrás do paciente de carne e osso. Ao contrário, é precisamente nesse âmbito da hermenêutica jurídica onde mais se manifesta a criatividade dos aplicadores do direito.

Portanto, não é possível dar interpretação diversa do que está literalmente disposto. Admitir a cláusula de convalidação seria simplesmente extrapolar a força normativa da Constituição para permitir a continuidade de um provimento normativo que já não tem mais validade alguma no ordenamento jurídico.


NOTAS

  1. ROCHA, Valdir. Disciplina das Relações Jurídicas Decorrentes da Não-Conversão de MP em Lei. Repertório IOB Jurisprudência. n. 4 , p. 70-68, fev. 1992., p. 70.
  2. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo : Atlas, 10 ed., 1998, p. 203.
  3. VALENTE, Manoel, Cláusula de Convalidação em Medidas Provisórias, Revista de Informação Legislativa, vol. 33, nº 130, abr./ jun., 1996, apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo: Atlas, 1996, p. 206.
  4. Acrescenta ainda Maria Sylvia DI PIETRO, op. cit, p. 204, que a confirmação somente é possível quando não causar prejuízo a terceiro, uma vez que estes, desde que prejudicados pela decisão, poderão impugná-la pela via administrativa ou judicial.
  5. VALENTE, Manoel Adam Lacayo, op.cit, p. 36.
  6. GRECO, Marco Aurélio, Medidas provisórias. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 48.
  7. VALENTE, Manoel, op.cit., p. 43.
  8. Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.610, Relator Ministro Sydney Sanches.
  9. COELHO, Inocêncio. "Interpretação Constitucional" . Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 54/55.
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Sobre a autora
Janine Malta Massuda

Advogada em Brasília. Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília - UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASSUDA, Janine Malta. Constitucionalidade de cláusulas de convalidação em medidas provisórias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/181. Acesso em: 22 dez. 2024.

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