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Noções introdutórias sobre Direito Urbanístico

24/12/2010 às 14:29
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1. Introdução

Desde a antiguidade é possível verificar a existência de normas disciplinando assuntos referentes ao urbanismo.Entretanto, o incremento dos estudos sobre direito urbanístico somente ocorreu a partir da Revolução Industrial, devido ao intenso processo e urbanização que dela decorreu.

Atualmente, pode-se afirmar que o direito urbanístico representa disciplina jurídica ainda sem total autonomia, com normas jurídicas dispersas, mas que já detém institutos e princípios próprios.

O presente artigo intenta apresentar noções introdutórias sobre o direito urbanístico, dissertando, ao final, sobre os princípios que regem a matéria.


2. Direito e Urbanismo

A urbanização das cidades criou problemas urbanos que necessitavam de correção, o que se daria mediante a urbanificação, com a ordenação dos espaços habitáveis, de onde nasceu o urbanismo como técnica e ciência.

Pode-se definir o urbanismo como "um conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade" (MEIRELLES, 2007, p. 511). Em artigo sobre o tema, Caetano Lima (RODRIGUES, 2007, p. 65) complementa tal conceito, afirmando que o urbanismo também compreende o diagnóstico dos problemas das cidades e a avaliação dos meios mais eficazes para solucioná-los.

Ressalte-se que o conceito de urbanismo sofreu significativa evolução com o correr do tempo, passando de estético-espacial para econômico-social (PIOVEZANE, 1981, p. 54).

O urbanismo é, em suma, elemento de importante transformação das cidades, promovido através de atividades próprias, destinadas a aplicar seus princípios e realizar seus fins.

Impossível não relacionar o conteúdo do direito urbanístico com o da ciência urbanismo. Com efeito, o direito urbanístico traz para o sistema jurídico a problemática urbana, através da positivação de normas disciplinando o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo urbano, as áreas de interesse especial, a ordenação urbanística da atividade edilícia e a utilização dos instrumentos de intervenção urbanística (SILVA, 2008, p. 32).

Constituem, em verdade, o urbanismo e o direito urbanístico, duas ciências cujo objeto de estudo é o mesmo, porém, avaliado sob óticas peculiares. Ambas se debruçam sobre o fenômeno urbano, propriamente sobre a utilização do espaço nos centros urbanizados e rurais.


3. Autonomia do Direito Urbanístico

Questão discutida na doutrina é se seria o Direito Urbanístico um ramo autônomo do direito ou uma disciplina de outro ramo.

Há aqueles que consideram o direito urbanístico parte do direito administrativo, sob fundamento de que as normas de direito urbanístico constituem-se em normas administrativas, especiais ou não, mas sempre referentes ao poder de polícia (SILVA, 2008, p. 40). Essa é a posição predominante na doutrina.

Outros autores, como Jacquignon (1975 apud JACQUIGNON; SILVA, 2008, p. 41), entendem o direito urbanístico como ramo do direito econômico. Segundo seu entendimento, se considerarmos o direito urbanístico como conjunto de regras que regem as relações do estado ou seus representantes e pessoas proprietárias de terrenos, ele estaria inserido no direito administrativo, mas, pelas implicações do direito urbanístico na economia da nação, está ele melhor inserido no direito público econômico. Também Farjat (1971 apud FARJAT; SILVA, 2008, p. 41) considera o direito urbanístico como parte do direito econômico.

Para que se considere autônomo um ramo do direito, necessária se faz a presença de alguns requisitos de forma cumulativa, como uma legislação própria voltada a seu objeto de estudo, podendo ser extraídos desse conjunto de normas princípios e institutos próprios, a existência de diversos profissionais especializados no estudo da matéria e a adoção freqüente da disciplina nos currículos dos centos de estudos jurídicos (RODRIGUES, 2007, p. 68).

Sobre a autonomia de um ramo do direito, dispõe José Afonso da Silva (2008, 42):

A autonomia, assim, caracteriza-se sob dois aspectos: autonomia dogmática, quando certo ramo ou subdivisão do direito apresenta conceitos e princípios próprios; autonomia estrutural, porque aqueles princípios e conceitos dogmáticos inspiram a elaboração de institutos e figuras jurídicas diferentes das pertencentes a outros ramos do Direito e não utilizáveis por estes – conforme observa Rubens Gomes de Souza. Nisso é que se configura a chamada ‘autonomia científica’, que, em verdade, só será alcançada pela existência de normas específicas, razoavelmente desenvolvidas, que regulem condutas ou relações conexas ou vinculadas a um objeto específico, conferindo homogeneidade ao sistema normativo de que trata.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Melo, considera-se uma disciplina juridicamente autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e regras que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito (MELLO, 2001).

A maioria dos autores não considera o direito urbanístico como uma disciplina jurídica autônoma, já que só recentemente suas normas começaram a desenvolver-se em volta de objeto específico, qual seja, a habitação dos espaços habitáveis ou a sistematização do território. Além disso, a legislação sobre o tema é ainda dispersa, sendo sua compreensão sistemática produto de esforço quase que exclusivamente doutrinário (RODRIGUES, 2007, p. 69). Com efeito, as normas urbanísticas, especialmente no Brasil, ainda não adquiriram unidade substancial, formando conjunto coerente e sistematizado legislativamente. Encontram-se dispersas em diversas leis e apenas guardam, entre si, conexão material em função do objeto regulado.

Entretanto, já é possível verificar a existência de institutos, princípios e conceitos exclusivamente urbanísticos, os quais inclusive foram ampliados com o Estatuto da Cidade.

Para José Afonso da Silva (2008, p. 44) constitui o direito urbanístico um conjunto de normas que compreende normas gerais, de competência legislativa da União, hoje consubstanciadas no Estatuto da Cidade; normas suplementares de cada Estado de pouca expressão; normas municipais, também de caráter suplementar. Conclui o autor citado que, apesar disso, deve-se considerar ainda, por prudência, o direito urbanístico como um ramo multidisciplinar do direito, o qual com o tempo irá consolidando suas próprias instituições.


4. Conceito de Direito Urbanístico

A necessidade de ordenação da cidade para resolver os problemas advindos da intensa urbanização ocorrida a partir da Revolução Industrial tornou necessária a criação de medidas de limitação e regulamentação de direitos individuais, em benefício da coletividade, as quais se materializaram, dentre outras formas, em diversas normas jurídicas a respeito da ocupação do solo, da organização do transporte e serviços públicos, do saneamento e da limitação da propriedade, constituindo tais matérias o objeto do Direito Urbanístico.

Pode-se afirmar que há três características necessárias para se construir o conceito de Direito Urbanístico (RODRIGUES, 2007, p. 72):

1) Disciplina que objetiva exercer uma atividade de harmonização dos conflitos que advém do uso e ocupação do solo, através da ponderação dos interesses aí identificados; 2) disciplina caracterizada por uma função pública; 3) disciplina que tem como instrumento principal de atuação o planejamento urbano.

José Afonso da Silva (2008, p. 49) define o direito urbanístico sob dois aspectos, quais sejam, o direito urbanístico objetivo e como ciência.

O direito urbanístico objetivo consiste no conjunto de normas que tem por objetivo organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade.

O direito urbanístico como ciência é o ramo do direito público que tem por objetivo expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios disciplinadores de espaços habitáveis.

Hely Lopes Meirelles (2007, p. 513) conceitua o direito urbanístico como "o ramo do direito público destinado ao estudo e formulação dos princípios e normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo".


5. Princípios do Direito Urbanístico

Constituem os princípios o "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico" (MELLO, 2001, p. 771).

O Direito se vale de princípios com o objetivo de melhor adaptar as regras jurídicas à realidade social, sendo que os princípios não precisam estar expressos em normas, podendo ser inferidos do sistema (princípios implícitos).

Sendo o direito urbanístico disciplina em formação, seus princípios ainda não estão totalmente consolidados. Considerando sua relação próxima com o Direito Administrativo, pode-se afirmar que os princípios deste são aplicáveis à atividade urbanística. Entretanto, dada a tendência de aquisição de autonomia pelo direito urbanístico, já são a ele reconhecíveis princípios e características particulares.

O professor Antonio Carceller Fernandez (RODRIGUES, 2007, p. 75) extrai da Lei do Solo Espanhola de 1956 alguns princípios, os quais tendem a inspirar o direito urbanístico de modo geral.

O primeiro deles é o princípio de que o urbanismo é uma função pública, que ressalta o direito urbanístico como instrumento normativo através o qual o poder público ordena a realidade no interesse coletivo, atuando como condutor da atividade urbanística.

De acordo com José Afonso da Silva (2008, p. 45), o princípio de que o urbanismo é função pública "fornece ao Direito Urbanístico sua característica de instrumento normativo, pelo qual o poder público atua no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse coletivo, sem prejuízo do princípio da legalidade."

Dentre as principais normas constitucionais tratando do princípio de que o urbanismo é uma função pública é possível citar o art. 6º, que se refere ao direito social à moradia; o art. 21, inciso IX, que trata da competência da União de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; o art. 30, inciso VIII, que dispõe sobre a competência dos municípios em promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; os artigos 182 e 183, que tratam da política urbana.

Outro princípio seria o da planificação urbana, "o qual ressalta ser o planejamento urbanístico o instrumento normativo básico para a ordenação urbana, o mecanismo principal de realização das metas do urbanismo" (RODRIGUES, 2007, p. 75).

José Afonso da Silva afirma que "o planejamento, em geral, é um processo técnico instrumentado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos" (2008, p. 89).

Dentre os instrumentos de planejamento urbano destaca-se o Plano Diretor como instituto que estabelece as exigências fundamentais de ordenação da cidade, sendo ele positivado na legislação brasileira como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. É que o dispõe o §1º do artigo 182, da Constituição Federal de 1988:

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Art. 182. (...)

§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Terceiro princípio é o da função social da propriedade, o qual permite ao poder público exigir o cumprimento dos deveres do proprietário de aproveitar o solo urbano em benefício da coletividade, o que implica no atendimento ao interesse social.

Ressalte-se que, no ordenamento brasileiro, a função social da propriedade não é novidade. Nas legislações pátrias, além de institutos de limitação da propriedade, a função social da propriedade já na Constituição de 1937 aparecia implicitamente. No entanto, somente com a Constituição Federal de 1988 é que função social da propriedade foi elevada ao patamar de princípio importante da política urbana. O artigo 5º da CF/88, em seus incisos XXII e XXIII, que não podem ser interpretados isoladamente, estabeleceu o direito à propriedade, a qual atenderá à sua função social.

O princípio da função social da propriedade permite a instrumentalização e a adequada ordenação da cidade, possibilitando a intervenção direta do Estado na propriedade particular, sempre obedecendo ao princípio da legalidade, visando o interesse supremo da coletividade em detrimento do particular, constituindo, desta forma, o principal meio para solucionar os problemas que assolam as grandes cidades.

Também consiste em princípio enumerado pelo citado autor espanhol o da afetação das mais-valias ao custo do sistema de execução das obras urbanas, "segundo o qual os proprietários dos terrenos devem satisfazer os gastos da urbanificação, dentro dos limites do benefício dela decorrente para eles, com compensação pela melhoria das condições de edificabilidade que dela deriva para seus lotes" (SILVA, 2008, p. 45).

Enumera o autor também o princípio da justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes da norma urbanística, que intenta preservar a igualdade de atuação da norma urbanística.

Observe-se que tal princípio é corolário do princípio da isonomia, consagrado no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. Constitui, pois, um direito fundamental de qualquer brasileiro.

Por último, tem-se o princípio da participação dos interessados, "sem o qual restaria inalcançável o objetivo de compatibilização dos múltiplos interesses envolvidos na ordenação do território urbano" (RODRIGUES, 2007, p. 75).

O plano diretor revela referido princípio através de seu art. 40, § 4º, incisos I a III, ao determinar a garantia de participação dos cidadãos nos processos de elaboração, fiscalização e implementação do plano diretor.

Art. 40.O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.

(...)

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:

I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;

II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;

III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.

A participação dos indivíduos, ressalte-se, não se limita a emitir sugestões, mas sim debater, formular planos, enfim, o cidadão é elemento ativo em todas as fases do plano diretor.

Conforme afirma José Afonso da Silva (2008, p. 45), pode-se afirmar que atualmente referidos princípios foram acolhidos, implícita ou explicitamente, pelo Estatuto da Cidade, especialmente pelas diretrizes constantes de seu art. 2º.

Pode ser ressaltado, ainda, como princípio que rege o direito urbanístico, o da dignidade da pessoa humana, que está presente no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Segundo tal princípio, o ser humano deve ser respeitado simplesmente por se tratar de ser humano. Com efeito, não há dignidade sem moradia, sem condições de habitação, sem instrumentos urbanos que garantam a circulação, o lazer e o trabalho.


6. Considerações finais

O urbanismo constitui ciência que estuda a nova organização das cidades, a fim de solucionar os principais problemas decorrentes da crescente urbanização experimentada nos últimos séculos, principalmente a partir da Revolução Industrial.

Dessa necessidade de organizar o espaço habitável, surgiu o Direito Urbanístico, para legitimar as intervenções do Poder Público na propriedade e na cidade, com o objetivo de garantir a supremacia do interesse coletivo. Constitui, portanto, o direito urbanístico, disciplina que intenta transpor os problemas urbanos para o campo da juridicidade.

O Direito Urbanístico está diretamente ligado ao Direito de Propriedade. Este, objeto de proteção e de disputa ao longo da história do mundo ocidental, passa por momento de "coletivização", o que significa que seu conteúdo não mais se justifica pela utilidade que proporciona a um indivíduo, o proprietário, mas a toda a sociedade. No sistema jurídico brasileiro isso está expresso através dos princípios da função social da propriedade, da dignidade da pessoa humana e da justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes da norma urbanística, por exemplo.

A doutrina traz como princípios aplicáveis ao direito urbanístico em geral aqueles trazidos por Antonio Carceller Fernandez como extraídos da Lei do Solo Espanhola de 1956. Tais princípios inclusive foram acolhidos pelo Estatuto da Cidade, de modo implícito ou explícito.

Para a maior parcela dos autores, constitui o direito urbanístico parte do direito administrativo, não detendo, portanto, autonomia. No entanto, já é possível identificar a ele institutos jurídicos e princípios próprios, havendo uma tendência de que haja uma consolidação destes, com a conseqüente aquisição de autonomia pelo direito urbanístico.


7. Referências bibliográficas

GUIMARÃES, Nathália Arruda. O direito urbanístico e a disciplina da propriedade. Net, Rio de Janeiro, jan. 2004. Disponível em: < http://www.fcaa.com.br/site/o%20direito%20urban%C3%ADstico%20e%20a%20disciplina%20da%20propriedade.pdf>. Acesso em 30 mai. 2010

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

PIOVEZANE, Pedro de Milanelo. Elementos de Direito Urbanístico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.

PIRES, Luis Manuel Fonseca. Loteamentos Urbanos. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

RODRIGUES, Francisco Luciano Lima (Org.). Estudos de Direito Constitucional e Urbanístico. São Paulo: RCS, 2007.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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Sobre a autora
Karla Ludimila Vieira Costa

Estudante de Direito da Universidade Federal do Ceará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Karla Ludimila Vieira. Noções introdutórias sobre Direito Urbanístico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2732, 24 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18108. Acesso em: 24 abr. 2024.

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