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O reforço da legitimidade democrática das agências reguladoras

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5. Comentários sobre a pesquisa de Paulo Todescan Lessa Mattos

Paulo Todescan Lessa Mattos observou por meio de pesquisa empírica (de campo) [21] que nas intervenções populares na produção normativa das agências reguladoras predominam as contribuições feitas pelo setor regulado, estando em segundo lugar as participações de particulares em geral (interesses difusos) e, por último, a participação de associações de defesa do consumidor e outros órgãos não governamentais.

Foi observado que, em relação ao grau de incorporação das contribuições, apesar da predominância quantitativa das contribuições do setor regulado, não houve evidência de que estas propostas tiveram maior aceitação que as oriundas da sociedade. [22] Pelo contrário, na amostragem considerada, o índice de incorporação das sugestões da coletividade foi superior, o que desqualifica a tese de que o setor regulado teria maior poder de influência do que a sociedade. De qualquer modo, o índice geral de aceitação e incorporação das propostas dos participantes das consultas públicas ainda é muito baixo.

A pesquisa revelou também que ainda existem graves deficiências procedimentais na consulta pública, dentre as quais: a) contraditório inexistente (não há possibilidade de réplica); b) ausência de motivação dos julgamentos das contribuições; c) ausência de publicidade. [23] Estas falhas implicam em uma baixa legitimidade procedimental e certamente desestimulam a participação da coletividade. Como fator positivo apontou o autor que, no caso da Anatel, agência pesquisada, o processo decisório é bem elaborado e prevê a obrigatoriedade das consultas internas (para contribuição dos servidores da agência) e das consultas públicas.

A conclusão do estudo de Mattos é a de que os mecanismos de participação pública têm um bom potencial democrático, com base na teoria deliberativa da democracia de Habermas. Este potencial, entretanto, pelo menos no caso da ANATEL, não foi atingido completamente, tendo em vista as deficiências mencionadas.

Marcelo Rangel Lennertz elabora uma crítica parcial ao pensamento de Mattos. Segundo ele, qualquer análise sobre a legitimidade democrática das agências deve ter uma etapa descritiva, voltada para a investigação da obediência às decisões das agências por parte de seus destinatários e dos fatores que influenciam a aceitação de tais decisões. Só então se partiria para uma segunda etapa, de análise normativa, a fim de se fundamentar normativamente a legitimidade democrática destes entes públicos. [24]

Assim, ele enumera duas preocupações a serem observadas neste estudo:

A primeira é a adoção de um enfoque descritivo, voltado para a investigação da aceitação desse poder na sociedade. Importa verificar em que medida suas decisões são obedecidas por seus destinatários, bem como os fatores que, efetivamente, sustentam essa obediência ou desobediência. A segunda é a realização de uma análise normativa sobre os dados empíricos levantados, que leve em conta a gênese democrática do poder – isto é, que procure examinar, qualitativamente, se, entre aqueles que devem obedecê-lo, se verifica o reconhecimento da existência de boas razões para a obediência e se há a possibilidade de influência ou até mesmo alteração das decisões às quais devem obedecer caso delas discordem. [25]

Assim, apesar de concordar com a parte principal do estudo de Mattos, Lennertz defende que a pesquisa empírica realizada sobre os processos internos da ANATEL (inclusive as consultas públicas), carece de rigor metodológico, além de não ter considerado, com a devida profundidade, os parâmetros de investigação por ele propostos. Assim, apesar de importante, esta parte da pesquisa de Mattos não seria representativa.

Apesar da crítica, o autor não apresenta uma solução factível. Apenas defende que a verificação in concreto (medição) da legitimação democrática com base no modelo de Habermas carece de um modelo empírico de experimentação, o qual ainda não foi completamente idealizado e, muito menos, experimentado. [26]

Feitas estas considerações, nosso pensamento está em consonância com a tese de Mattos acerca da legitimação das agências, pois não há duvida de que a participação popular no processo regulatório imprime um caráter democrático apto a reforçar a legitimidade dos atos regulatórios. Por outro lado, também consideramos procedente a crítica feita por Lennertz, pois a parte empírica desenvolvida no estudo de Mattos realmente é falha, não se prestando para medir de forma efetiva o grau de legitimidade democrática das agências.


6. Conclusão

Pelo visto, no Brasil a questão da constitucionalidade do poder normativo das agências reguladoras já foi bem pesquisada, sendo certo que as principais correntes doutrinárias defendem que estes atos normativos são terciários, subordinados à Constituição, às Leis (atos normativos primários) e aos Regulamentos (secundários).

Tais teses se tornam melhor embasadas se forem combinadas com outras, capazes de ressaltar o grau de legitimidade democrática das agências. É justamente este o pensamento de Paulo Todescan Lessa Mattos, o qual propõe a tese de que a legitimidade das agências pode ser reforçada por meio do desenvolvimento de meios institucionais de participação democrática na produção normativa destes entes.

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Essa teoria é embasada na Teoria da democracia discursiva de Habermas, o qual defende que a legitimidade democrática das complexas ações do Estado pode ser aferida por meios dialéticos diversos, e não apenas seguindo o critério de origem no Poder Legislativo.

Assim, figuras tais como as consultas públicas, audiências públicas, denúncias e a ouvidoria funcionam, sob este enfoque, como meios viáveis de participação democrática do cidadão na produção normativa das agências. Tal participação, pelo menos no modelo brasileiro, não vincula a autoridade reguladora, porém tem o mérito de influir positiva e construtivamente na formação do convencimento da autoridade.

O desenvolvimento destes mecanismos certamente pode contribuir para o fortalecimento das instituições reguladoras e para a aceitação voluntária da normatização.

A pesquisa de Paulo Todescan Lessa Mattos aponta para o fato de que os meios de participação pública precisam ser aperfeiçoados, para que se tornem mais efetivos e acessíveis ao cidadão. Do mesmo modo, necessário um aprofundamento do próprio estudo, como bem destacou Marcelo Rangel Lennertz, de modo a ser possível teorizar meios de verificação do efetivo grau de legitimidade destas importantes instituições públicas.

Deste modo, a participação popular na produção normativa das agências, além de ser um excelente meio de exercício da cidadania, influi positivamente na atividade normativa dos órgãos reguladores e lhes conferem maior legitimidade.


REFERÊNCIAS

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CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007.

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LENNERTZ, Marcelo Rangel. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

MARTINS, Marcio Sampaio Mesquita. O poder normativo das agências reguladoras como instrumento de implementação de políticas públicas. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.

MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Editora Singular, 2006.

MORAES, Alexandre de (org.). Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002.

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VASCONCELOS, J. Democracia Pura: História e atualidade, reforma política, teoria e prática sobre governo sem políticos profissionais. São Paulo: Nobel, 2007.


Notas

  1. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADin-MC n° 1.668-DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, julgado em 20 de agosto de 1998. Publicado no Diário da Justiça em 31 de agosto de 1998. Para ilustrar, segue um trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence: "[...] nada impede que a Agência tenha funções normativas, desde, porém, que absolutamente subordinadas à legislação, e, eventualmente, às normas de segundo grau, de caráter regulamentar, que o Presidente da República entenda baixar. Assim, [...] entendo que nada pode subtrair da responsabilidade do agente político, que é o Chefe do Poder Executivo, a ampla competência reguladora da lei das telecomunicações. Dou interpretação conforme para enfatizar que os incisos IV e X referem-se a normas subordinadas à lei e, se for o caso, aos regulamentos do Poder Executivo.
  2. Cf. ARAGÃO. Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 218-219.
  3. LENNERTZ, Marcelo Rangel. Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, p. 116.
  4. LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 48.
  5. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Editora Singular, 2006, p. 339.
  6. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 171.
  7. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 28.
  8. Esta teoria está sistematizada na obra: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vols. I e II. 2ª Ed. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
  9. O pensamento liberal se funda em dogmas tais como o da legitimação por meio do sistema representativo eletivo e o da tripartição dos poderes. O modelo tripartite, por exemplo, é uma abstração científica que jamais chegou a ser empregada em sua forma pura, sendo certo que na prática, mesmo nas nações com perfil liberal mais exacerbado, sempre se observou instrumentos políticos de interferência entre os Poderes (checks and balaces).
  10. HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 67, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 62.
  11. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Transl. Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984, p. 298, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 60.
  12. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 121, apud LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 60.
  13. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit.
  14. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 25.
  15. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 109-154.
  16. Trata-se do fenômeno que O’Donnel denomina de democracia delegativa, consistente na idéia de que o governante, após ser eleito, teria o poder onipotente de decidir qual seria o interesse público do país, de modo que os mecanismos de controle do seu poder, bem como as próprias pressões da sociedade, seriam obstáculos inconvenientes à plena autoridade que acabara de receber por delegação. Cf. O’DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa. In: Revista Novos Estudos, n. 31, outubro de 1991, apud MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 23.
  17. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 24-25.
  18. Estes conselhos são compostos total ou parcialmente por membros da sociedade.
  19. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 25.
  20. Ressalte-se que existem várias propostas teóricas de participação política popular, com diferentes níveis de cientificidade, a exemplo da democracia direta, democracia semi-direta, democracia líquida, democracia participativa, democracia emergente, democracia pessoal, etc. Uma proposta muito interessante e que foi posta em prática na Suécia é a do partido independente DEMOEX, onde os seus representantes eleitos votam no parlamento com base nas diretrizes estabelecidas diretamente pela sociedade, por meio de um sistema de votação eletrônico na internet. O partido conseguiu eleger uma única candidata para a Câmara Municipal de Vallentuna (cidade do subúrbio de Estocolmo) em 2002, a qual se reelegeu em 2006. A experiência foi denominada democracia direta eletrônica ou e-democracy, tendo se originado nos pensamentos de Karl Popper e Henri Bergson sobre a chamada sociedade aberta. Sobre o tema, cf. VASCONCELOS, J. Democracia Pura: História e atualidade, reforma política, teoria e prática sobre governo sem políticos profissionais. São Paulo: Nobel, 2007, e o próprio site do partido: <http://demoex.net/en>.
  21. Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Op. cit., p. 262. O autor fez uma pesquisa nas consultas públicas realizadas pela ANATEL no período de 1998 a 2003, relativas à universalização dos serviços de telecomunicações, o que importou no total de dez procedimentos. Trata-se de uma amostragem pequena em relação à quantidade de normas expedidas pela Agência no mesmo período, mas permite uma visão aproximada de como estes instrumentos estão sendo utilizados na prática.
  22. O autor ressalta que as propostas apresentadas pela sociedade e pelo setor regulado não são necessariamente contrapostas, podendo haver coincidência de interesses.
  23. Fizemos uma consulta ao site da ANATEL (www.anatel.gov.br) em julho de 2010 e constatamos que as falhas apontadas pelo autor se perpetuam até a atualidade. Observamos, ainda (por amostragem e sem qualquer pretensão metodológica rigorosa), que na imensa maioria das consultas não há qualquer resposta por parte do ente regulador.
  24. LENNERTZ, Marcelo Rangel. Op. cit., p. 10.
  25. Ibid., p. 10.
  26. Cf. Ibid., p. 147-149.
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Sobre o autor
Marcio Sampaio Mesquita Martins

Procurador Federal, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, pesquisador e autor de livros e artigos sobre temas de Direito Administrativo e de Direitos Fundamentais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Marcio Sampaio Mesquita. O reforço da legitimidade democrática das agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2734, 26 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18121. Acesso em: 16 abr. 2024.

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