RESUMO: O presente artigo analisa, por meio de uma discussão que envolve Direito e Literatura, a relação entre a burocracia e a ação do Estado na sociedade capitalista por meio das obras de Franz Kafka e Douglas Adams. Embora se trate de mera obra ficcional cômica, "O Guia do Mochileiro das Galáxias", de Adams, concretiza duras críticas às instituições estatais. Em sentido semelhante está a obra "O Processo", de Kafka, embora o tratamento da questão seja mais sério. Por meio de ambas, os pilares do Estado (a burocracia, o cálculo, a eficiência) são postos à prova. Percebe-se que na obra de Adams, a crítica cômica torna-a mais mordaz ao evidenciar os erros estatais, sem a necessidade de uma avaliação técnica ou de uma opinião de autoridade. Na obra de Kafka, pairam dúvidas sobre o conteúdo ou se realmente é efetivada uma crítica ao Estado, em função das alegorias utilizadas.
PALAVRAS-CHAVE: Crise; Crítica; Direito; Estado-Nação; Literatura.
1. INTRODUÇÃO
Uma obra literária, mesmo sendo apenas uma peça ficcional, possui um fundo de verdade, pois expressa a realidade na qual foi produzida. Em uma sociedade capitalista, que transforma tudo em mercadoria e ícones, o processo de iconização se torna essencial para a compreensão de suas idiossincrasias. Iconizar passa a ser papel fundamental da Literatura e isso colabora para a revisão do modo como se organiza a sociedade, por força da exposição e análise dos erros daquilo que existe.
Douglas Adams, ao produzir "O Guia do Mochileiro das Galáxias" tencionou, mesmo criando situações insólitas, analisar a sociedade inglesa e os problemas associados à sua burocratização. Assim, produziu uma obra que serve como reflexo daquilo que a ocidentalidade experimenta continuamente, na realidade atual. Porém, compreender esse conteúdo, não é algo simples, afinal, trata-se apenas de uma obra de ficcional, ainda por cima, de conteúdo cômico.
Para que se possa observar a burocracia e a legislação e o problema a elas inerente é essencial a análise das obras citadas no título do presente artigo. Elas representam bons exemplos daquilo que a Literatura pode oferecer quando se debruça sobre o Estado e aquilo que é essencial ao seu funcionamento. Mas antes que se possa proceder a essa análise, é preciso observar-se o potencial crítico que a Literatura oferece.
Para tanto, discute-se no primeiro item, a questão da Literatura e sua interação com o Direito. Por meio de tal relação, permite-se observar o papel que estes possuem na sociedade atual. Eles, respectivamente, criticam e possibilitam a manutenção do status quo da sociedade. Essas funções são fixas e intrínsecas a ambos, respectivamente.
Para implementar uma análise em tais termos, Adams foi comparado a outro autor que também busca desvendar a relação entre o Estado e a sociedade: Kafka. Os autores expressam, a seu modo, a complexa relação entre Burocracia e Direito e destes para com a Sociedade. Embora focalizem o Estado em épocas tão distintas, estes autores se aproximam ao mesmo tempo em que divergem no que se refere ao papel e às possibilidades afeitas ao Estado.
2. O LITERÁRIO E A CRÍTICA AO JURÍDICO
De plano, deve-se especificar que Direito e Literatura operam, aparentemente, em pontos distintos da realidade atual. Isso não quer dizer, porém, que se possa abrir mão da segunda, beneficiando o primeiro. Especialmente, quando se busca realizar uma crítica capaz de alterar o status quo. Antes que o Estado atue gerando o Direito, é necessário que alguma força clareie os entendimentos da negatividade do ente estatal e para tanto, pode-se utilizar a Literatura.
A crítica social e política é elemento significativo da Literatura cômica. Uma prova disso são as análises humorísticas da vida política dos países, realizadas por diversos comentaristas cômicos. Isso é possível, uma vez que a obra de ficcional retrata a realidade na qual ela foi criada e, por isso,
[...] interessa enquanto representação da estrutura social [...] no sentido de que a obra de ficção pode constituir um retrato da realidade social em seus traços fundamentais, em grande medida digno de confiança científica, no que se refere à adequação desse conhecimento à realidade social representada. (VILA NOVA, 2005, p. 13)
Ou seja, a obra literária pode ser um objeto de estudo legítimo de qualquer área do conhecimento. E isso já foi intentado em diversas áreas, que não a jurídica. Fato é que a obra literária representa um "recorte visual" de uma sociedade em um continuum espaço-temporal, por mais que nela se incluam elementos fantásticos. Ela é uma representação de como o social funciona conforme a interpretação de seus elementos constitutivos.
Um exemplo desse tipo de constatação é a análise realizada por BAÊTA NEVES (1979) de "Os sobrinhos do Capitão". O autor realiza um estudo no âmbito sociológico e antropológico de tal obra cômica, por meio do qual consegue observar o
[...] caráter familiar ou comunitário do grupo branco, reconstrução da organização econômica, política e ideológica da tribo e sua integração com os brancos, enfim uma série de questões e proposições que nos poderiam levar à reconstrução de um universo oculto, num trabalho de verdadeira ficção antropológica, em que a imaginação – informada pela antropologia – seria levada às últimas conseqüências. (BAÊTA NEVES, 1979, p. 109.)
Mesmo ficcional, a realidade descrita no âmbito da obra retrata a realidade fora dela. CUNHA e DANTAS, analisando os programas humorísticos no qual se observa a crítica às vississitudes política brasileira, manifestam semelhante opinião, argumentando que "[...] os discursos que permeiam, mesmo que ingenuamente, os programas de humor revelam uma série de preconceitos, noções e tradições da cultura política [...]" (CUNHA e DANTAS, 2002, p. 05.), reproduzindo a sociedade que os cria. Esse mecanismo analítico diminui os conflitos internos, pois "O humor não poupa nenhuma instância da sociedade, seja ela Estado, Sociedade Civil ou Igreja [...]" (CUNHA e DANTAS, 2002, p. 04.), incorporando virtualmente qualquer objeto ou circunstância de análise, permitindo a melhor retratação da sociedade.
Considerada essa condicionante, percebe-se que o cômico possui um efeito profilático. Ele representa uma das melhores maneiras para se expor uma critica, possibilitando maior grau maior de liberdade. Isso fica evidente na reflexão acerca do papel do bobo da corte, nas sociedades europeias: por meio dele a sociedade tinha um remédio para aquilo que não poderia ser dito e que apenas um "paradoxo ambulante", conforme BAÊTA NEVES (1979, p. 53) poderia dizer.
O bobo da corte incorpora a ideia da crítica com liberdade. Porém paga um preço por tanta liberdade: tem essa função social, mas ao mesmo tempo, é condenado a isso. Além do mais, tudo o que ele diz não pode ser levado a sério, enquanto representação da verdade, pois ele é só um bobo da corte. Atualmente a estratificação social deu a certos profissionais a mesma função, porém, incorporando nela um aparato técnico e uma posição própria.
Isso reforça sua capacidade analítica e robustece a representação social do seu discurso. Escritores cômicos ocupam o lugar antes destinado apenas ao bobo. E o fazem com o conhecimento técnico necessário para permitir a avaliação dos problemas da sociedade.
E, enquanto analistas da realidade, como refere BERGSON (2007), os escritores fazem com que a comunicação supere a sua função na superestrtura, passando a atuar na infraestrutura social, como indica RUBIM (2000). Note-se que comicidade e jocosidade quebram, graças à sua ambivalência, o status quo: de coisa posta, a sociedade é reapresentada como versão negativa de si. Isso pode permitir que uma ciência dura como o Direito possa sair do seu lugar. Que faça uma análise de seus valores. A Literatura, nesse sentido, age como campo integrador do mundo social e, como observa GODOY,
Em tempos pretéritos [...] o homem das leis era também o das letras, e Cícero pode ser o exemplo mais emblemático. A racionalização do direito (WEBER, 1967, p. 301 e ss.), a burocratização do judiciário (FISS, 1982), bem como a suposta busca de objetividade por meio do formalismo (cf. UNGER, 1986) podem ter afastado esses dois nichos do saber. Ao direito reservou-se entorno técnico, à Literatura outorgou-se a estética. Tenta-se recuperar o elo perdido. (GODOY, 2007, p. 01)
A crítica por meio da Literatura não é objeto e nem mesmo faz parte da função "racional", que possui o Direito na sociedade atual, pelo menos em tese. Dessa forma, Direito e Literatura tendem a se manter logicamente isolados, seja pelas funções que desempenham, seja pelo modo como observam a realidade social. No entanto, a relação entre Direito e Literatura deve ser umbilical. Principalmente considerando-se que, como salienta SOUZA,
O direito não é um campo estanque, imobilizado pela armadura conceitual que nos acostumamos a vestir sem questionar. O direito é um sistema parcial, vivo, auto-reflexivo e auto-reprodutivo, e se deve entendê-lo sob o prisma de operações que acontecem faticamente, isto é, enquanto comunicações dele com ele mesmo e com outros sistemas parciais que formam o espaço social, bem como com o ambiente que o envolve. (SOUZA, 2004, p. 02)
Direito e Literatura estão intrinsecamente ligados, por força dos conteúdos e temas que podem desenvolver. Esses âmbitos fazem parte do mesmo universo de ações e de análises possíveis do humano. Tanto é verdadeira essa relação estreita entre Direito e Literatura que BORGES NETTO (2000), ao se debruçar sobre a obra "O Processo", de Kafka, informa que
Analisando o texto, constatamos que se trata de uma parábola em que se destaca a dificuldade que tem o cidadão comum para ter acesso ao Poder Judiciário. Isto é relevado pela imensa dificuldade em interpretar e compreender a mensagem expressa pelo porteiro que estava diante da lei (ou tribunal). (BORGES NETTO, 2000, p. 03)
A relação Direito-Literatura gera mais pânico e dúvida, quanto mais complexa é a análise: quanto melhor descrita a realidade, melhor é a análise. Isso permitem entender que aquela obra é, em si, uma crítica à sociedade que a produziu. Em especial, a obra cômica é prolífica, pois possui naturalmente a função de gerar alento para o espírito humano. Ele age tornando possível que a crítica seja absorvida da maneira mais fácil e prática. A crítica que se realiza é tanto mais real quanto mais fantasiosa aparentemente é, como explica ECO:
[...] para que a informação histórica passe, ela deve assumir o aspecto de uma reencarnação. Para falar das coisas que se pretende conotar como verdadeiras, essas coisas devem parecer verdadeiras [grifo colocado]. O "todo verdadeiro" identifica-se com o "todo falso". A irrealidade absoluta se oferece como presença real [grifo colocado]. No gabinete reconstruído, a ambição é fornecer um "signo" que se faça esquecer enquanto tal: o signo aspira ser a coisa, e a abolir a diferença do remeter, a mecânica da substituição. Não a imagem da coisa mas seu decalque, ou melhor, seu duplo. (ECO, 1984, p. 13)
Para que uma obra literária possa oferecer uma crítica, ela deve ser a melhor representação possível daquela realidade que ela busca criticar. Melhor até, que o modo como a coisa é na realidade. E essa é uma característica marcante da sociedade atual, na qual só é real aquilo que é representado, noticiado e criticado como tal.
VILA NOVA (2005), percebendo tal questão, informa que ficção e realidade devem se misturar na Literatura, pois isso iria garantir a possibilidade de que a crítica que vai ser realizada possa ter maior aceitação. Mas deve ser uma mistura a tal ponto, que não seja permitido ao leitor identificar os limites entre realidade e ficção. Só assim, a crítica encontrará o significado e a representação da realidade. E a realidade da Literatura será per se a plena representação do real fora dela.
Apesar de conter a obra elementos fantásticos, uma boa representação da realidade envolve o uso de tais elementos sem o objetivo de espetacularizar o "fantástico". Os elementos fantásticos são utilizados para exacerbar a crítica, de modo que ela fique mais palatável. A análise da obra de Adams se mostra assim, elemento relevante para discutir a questão da crise do Estado e do Direito. O mesmo ocorre com Kafka, embora ele seja um pouco mais sério na sua narração, quer das situações, quer dos elementos fantásticos nela incluídos. Essa questão é foco do próximo item do presente artigo.
3. ENTRE JOSEPH K. E ARTHUR DENT: DELÍRIOS DE UMA BUROCRACIA
Como visto, a Literatura pode oferecer uma crítica ao Direito que este não consegue fazer, uma vez que não é capaz de visualizar as discrepâncias e idiossincrasias que lhe são inerentes. É essencial, portanto, para que se possa realizar uma boa critica ao Estado e ao Direito, não ficar restrito apenas à linguagem do próprio mundo estatal e jurídico. Isso só corroboraria o insulamento da própria crítica que se deseja realizar.
Interessante é perceber-se que o uso de uma estrutura fantástica para realizar uma crítica política, não é exclusividade de Adams. Kafka, embora com um tom mais sério, também explica e exemplifica os erros e acertos do Estado. E o faz como apenas um analista do social e do político poderia fazer.
Voltando-se as atenções para Adams, inicialmente, comparando-o com Kafka, vê-se que o autor pressupõe não apenas a existência de uma burocracia, motor da estrutura estatal, mas também a existência de uma lei de teor fixo. É nesse momento que a percepção de Adams se aproxima daquela exposta por Kafka. Porém, há importantes questões a serem levantadas. BORGES NETTO (2000), analisando o texto "Diante da Lei", percebe que
[...] o texto revela as dificuldades que surgem nos relacionamentos humanos diariamente, tudo porque às vezes não desvendamos corretamente as mensagens transmitidas por nossos interlocutores.
Isso também ocorre com as mensagens normativas (até com bastante freqüência) [...](BORGES NETTO, 2000, p. 04)
A lei é apresentada por Kafka como opressora, restando ao indivíduo curvar-se ante sua força e sua dureza, uma vez que é exatamente para isso que ela serve: gerar comportamento e estabilidade. O Estado, para Kafka, é opressor e requer do indivíduo um comportamento que ele não consegue entender, pois não entende a gramática do Estado. E isso é essencial para a existência de um comportamento que fere a lei: a falta de compreensão do teor da lei é, no limite, a fonte para o seu descumprimento.
Na análise da relação legislação-burocracia-indivíduo, Kafka, segundo ANDERS (2007), não assume uma efetiva crítica ao Estado. A incompreensão do papel da lei não necessariamente é a evidência de problemas. Pode apenas ser que a lei seja imprescindível ao Estado e que o cidadão deva segui-la de modo irrestrito. Afinal, o papel do Estado é estabelecer normas que devem ser seguidas, para a manutenção da sociedade.
Porém, ela pode ser deixada de lado pelo Estado, quando fixa limites para a liberdade do cidadão. Esse é o modo de agir puro e natural do ente estatal, para Kafka. A cena de abertura de "O Processo" demarca essa posição:
Alguém devia ter caluniado a Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã. [...] e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um homem esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto, que emprestava à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviam aquelas coisas.
- Quem é você? – perguntou K., erguendo-se a meio no leito. O homem, contudo, ignorou a pergunta, como se se devesse desculpar sua aparição naquela casa, e limitou-se por sua vez a indagar:
- Você chamou?
- Ana precisa trazer-me o desjejum [...]
- Quer que Ana lhe traga o desjejum.
No quarto pegado seguiu-se a isto uma risota [...]
- É impossível. [...]
- Desejo falar com a senhora Grubach [...]
- Não – retrucou o homem que estava junto à janela, deixando seu livro sobre uma mesinha e pondo-se de pé. – Você não pode sair; está detido.
- É o que parece – disse K. –, e por quê? – perguntou depois.
- Não nos cabe explicar isso. Volte para seu quarto e espere ali. O inquérito está em curso, de modo que se inteirará de tudo em seu devido tempo. (KAFKA, 2004, p. 37-39)
Os representantes do Estado não querem ou não podem responder o que Josef K. pergunta. Isso é uma verdade. Mas a dúvida que fica é se eles não podem responder pois não devem ou se é porque não sabem como fazê-lo, dada a falta de conhecimento sobre a situação. Trata-se de um Estado no qual, estando o cidadão em conflito com aquele, não há respostas possíveis.
Além disso, o mundo no qual Josef K. vive é complexo: esta-se diante do perigo iminente de um "denuncismo". Porém tal situação só passa a ser uma preocupação para o personagem, quando é ele próprio alvo de um inquérito e de um futuro processo. A vida de Josef K. seria eternamente normal, não fosse o seu problema inominável com a lei.
Embora se possa atribuir aos burocratas algumas características positivas, eles têm tantas explicações a dar sobre o funcionamento do Estado, quanto aqueles que dominam os corredores e escritório escuros da obra de Adams. E essa é a descrição crítica do objeto: burocracia e funcionamento do Estado não se irmanam positivamente. E ao cidadão, cabe o dever de adaptar-se ao "rangido" que as engrenagens que formam o mundo fazem, quando tentam se movimentar.
Tanto isso é verdade que, logo em seguida, ao descrever a guarda dos objetos de um "processado", os guardas explicam a K.:
- É melhor que nos confie suas coisas – disseram – freqüentemente no depósito acontecem fraudes e além do mais costuma-se ali, depois de certo tempo, vender tudo sem que ninguém se incomode em verificar se o inquérito em questão terminou ou não. E quão demorados são os processo deste tipo, especialmente nos últimos tempos! Claro está que, em última instância, você receberia o dinheiro obtido da venda que certamente seria bem pouca coisa, visto que na operação o preço não é determinado pela importância da oferta, mas pelo montante de suborno; além do mais, ao passar de mão em mão, conforme a experiência o demonstra, tais somas se vão tornando a cada ano menores.(KAFKA, 2004, p. 39)
É uma clara demonstração de que o Estado, burocratizado, deixa espaço para ineficiência administrativa e para falta de controle. E mais, é justamente essa condilção o que impede a efetivação dos direitos. Mas a culpa, para Kafka, é das pessoas e das estruturas, não do Estado per se: Não se pode esperar que mudanças sejam implementadas, pois o ente estatal não se reformula pela mera vontade da população. O que não quer dizer que Kafka seja contra a ideia de Estado ou que a aceite sem reservas. Especialmente quando expõe que o problema do Estado são as pessoas, seus burocratas, parte fundamental do modo como a máquina funciona.
Em Adams, há uma crítica mais explícita: um Estado descontrolado não pode e nem consegue ordenar uma sociedade que almeja a auto-satisfação. A única forma de gerar as mudanças necessárias é construindo soluções a partir do indivíduo. Exemplo dessa ineficiência das coisas do Estado é a descrição do verdadeiro papel do Presidente Imperial da Galáxia, pois:
[...] o centro do poder foi deslocado de forma simples e eficaz para os escalões inferiores, sendo agora aparentemente atribuição de um órgão cujos membros antes atuavam como simples conselheiros do imperador – uma assembléia governamental eleita, chefiada por um presidente eleito por ela. [...](ADAMS, 2004, p. 46)
Ou seja, o Poder Executivo padece pela total dependência das ordens e vontades de um Poder Legislativo que realmente manda. Embora lhe coubesse apenas a função de legislar, segundo a teoria clássica da separação dos poderes é no legislativo, conforme elaborado por Montesquieu (2000), que se concentra o verdadeiro poder do Estado. Além disso, o cargo de presidente guarda relação direta com a realeza inglesa, uma vez que
O presidente, em particular, é simplesmente uma figura pública: não detém nenhum poder. Ele é aparentemente escolhido pelo governo, mas as qualidades que ele deve exibir não têm a ver com liderança. Ele deve é possuir um sutil talento para provocar indignação. [...] Não cabe a ele exercer o poder, e sim desviar a atenção do poder. (ADAMS, 2004, p. 46)
Deve-se perceber, porém, que o cargo de "Presidente" subverte a proposição do príncipe, de MAQUIAVEL (1998), uma vez que o controle da galáxia é de um príncipe não exerce poder. O poder encontra-se distribuído na estrutura ao qual ele, pela posição que ocupa, não pode acessar e não na posição, que ele pode acessar. Aliás, no parlamentarismo, a posição de poder é um elemento condicionado pelo arranjo de forças políticas que o constituem.
Em meio a esse arranjo de forças, vontades e vaidades, constituem-se estruturas de poder inacessíveis àqueles que não dominarem a "gramática técnica" estatal. O Presidente da Galáxia também não domina essa gramática e, portanto, fica impedido de acessar esse poder. Dessa forma, ocorre, como bem observa MORAIS (2002), a "fantochização da democracia":
[...] desaparece o caráter representativo do sistema, diluído na homogeneidade de respostas. Quando a incerteza, própria do jogo político eleitoral, produz o pânico econômico e se a este cabe a função de estabelecer as pautas políticas, o sistema representantivo, calcado na diferença, na alternância, na incerteza dos resultados, etc., a representação política cede espaço às certezas [grifo original] econômicas e desfaz-se o espaço próprio da política e de seus mecanismos [...] impõe-se caminhos únicos de salvação. (MORAIS, 2002, p. 56)
Além de tudo isso, a posição adotada por Adams se assemelha àquela interpretação acerca do papel do Estado, que foi expressa por GALTUNG (1998). Segundo Galtung, o Estado requer do homem uma contrapartida muito maior do que o benefício potencialmente propiciado, caracterizando-se em uma prestação desproporcional, muitas vezes. Assim, o Estado excede suas funções e rompe com a ligação fundamental que o torna necessário à regulagem da vida em sociedade.
Tanto Adams quanto Kafka têm dúvidas acerca do cumprimento do papel do Estado. Porém, a forma como cada um apresenta suas dúvidas é distinta. Em Adams, a realidade é mensurada em cenas gradativamente surreais, o real se torna fantástico, cada vez que o homem se aproxima do Estado e vice-versa. Já para Kafka, o mundo é surreal per se.
A fisionomia do mundo kafkiano parece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal. (ANDERS, 2007, p. 15)
O mundo de Kafka é naturalmente surreal e o surreal é exposto de modo tão natural, que constitui a sua essência. Em Adams o mundo também é surreal. Porém, só é surreal, pois esconde coisas que fogem à percepção normal do homem comum. Em Kafka, uma vida normal pressupõe que o mundo está louco. Pode-se perceber que a realidade adamsiana não é "kafkiana", como na obra de Kafka. O que não quer dizer que ela não apresente resíduos e derivações, que lembram as constrições tipicamente kafkianas.
O Direito, enquanto fruto de um Estado-Nação burocratizado, está fora da esfera dos homens, mesmo que regule a vida destes, para Kafka. O homem é escravo das regras do Estado e, ao mesmo tempo, não consegue ou não está apto compreende-las. Além disso, o homem só atinge o entendimento das leis, à medida que entende que as aceita.
Para Adams, ao contrário, a integração com as regras do Estado, só ocorre à medida que o homem percebe que as regras não oferecem a totalidade de respostas necessárias. Aceitar incontestavelmente o Estado, não é admissível para Adams. Os erros e crises, intrínsecas à atividade do Estado demonstram que há muito a ser consertado, para que a sociedade se desenvolva corretamente. O Direito, desse modo, é regra a ser respeitada, porém, não há necessidade de um respeito pacífico e incontestável.
Isso é evidente quando Adams observa o burocrata intergaláctico, um figura peculiar do universo desenvolvido pelo autor. Segundo este,
Não chegam a ser malévolos. Mas são mal-humorados, burocráticos, intrometidos e insensíveis. Seriam incapazes de levantar um dedo para salvarem suas próprias avós da Terrível Besta Voraz de Traal sem antes receberem ordens expressas através de um formulário em três vias, enviá-lo, devolvê-lo, pedi-lo de volta, perdê-lo, encontrá-lo de novo, abrir um inquérito a respeito, perdê-lo novamente e finalmente deixa-lo três meses sob um monte de turfa, para depois recicla-lo como papel para acender fogo. (ADAMS, 2004, p. 61)
Algumas regras, segundo a lógica de Adams, podem ser descartadas, pois servem apenas para manter o Estado e o status quo, sem que possam produzir benefício direto à população. Subvertê-las, portanto, não é algo incomum, pois a própria burocracia não sabe se deve respeitar tais regras. Saber os limites que cada regra carrega, em termos dos efeitos da falta da sua aplicação é essencial, pois isso liberta o homem de uma vida comum e ordinária.
O problema é ter o discernimento suficiente para reconhecer quais são as regras que merecem ser respeitadas. E isso é uma verdade na obra dos dois autores. Em Kafka, porém, a pena para o erro é a morte, enquanto que em Adams, envolve, na maior parte das vezes, um pedido formal de desculpas em três vias.
4. CONCLUSÕES
Feitas as observações até o momento, cabe ressaltar alguns elementos. A Literatura pode reverter as expectativas do status quo de tal modo, que pode ser utilizada para criticar a burocracia e o Direito. Principalmente considerando-se que um ente estatal em crise mantém um Direito e uma burocracia igualmente em crise.
Para Adams, a crise do Direito é uma experiência vívida, pois os próprios burocratas param de respeitar a lei quando isso se demonstra interessante. Para Kafka, não há crise real: burocracia e Direito apenas são assim e a crise lhes é intrínseca. Da comparação entre Kafka e Adams, percebe-se que os dois possuem semelhanças e dissensos. No que se refere às semelhanças, para ambos a lei possui critérios rígidos, que requerem determinados comportamentos que precisam ser seguidos à risca.
No que se refere aos dissensos, percebe-se que para Kafka a obediência à Lei é a única forma de o indivíduo se integrar à perspectiva do Estado. Para Adams, tal situação existe, mas não é absoluta. Ela envolve a diferenciação entre as leis cujos conteúdos são úteis ao homem e aquelas cujos conteúdos são úteis apenas à burocracia e sua continuidade.
As primeiras devem ser respeitadas, visto que concretizam direitos (naturais e humanos). As segundas concretizam apenas a dependência da sociedade em relação a um Estado em crise. As primeiras são obrigatórias, enquanto que as segundas, não.
5. REFERÊNCIAS
ADAMS, Douglas Noel. O Guia do Mochileiro das Galáxias. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
ANDERS, Günther. Kafka: Pró e Contra - Os Autos do Processo. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BAÊTA NEVES, Luis Felipe. O Paradoxo do Coringa e o Jogo do Poder e Saber. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
BORGES NETTO, André Luiz. Franz Kafka e o difícil acesso à Proteção Jurisdicional: uma releitura jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n 38, jan. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/773>. Acesso em: 09. jul. 2008.
CUNHA, Jorge; DANTAS, Tereze. Paródia e Política: o Casseta & Planeta nas Eleições 2002. Salvador: UFBA, 2002.
ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
GALTUNG, Johan. Direitos Humanos - uma Nova Perspectiva. Coleção Direito e Direitos Humanos. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Os Pais Fundadores: John Henry Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Jus Navigandi. Teresina, ano 11, n. 1438, 9 jun. 2007. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/9995>. Acesso em: 14 mar. 2008
KAFKA, Franz. O Processo. Coleção "a obra prima de cada autor". vol. 41. São Paulo: Martin Claret, 2004.
Maquiavel, Nicolau. O Príncipe. (trad.) Antonio Caruccio-Caporale. Coleção L&PM Pocket. Porto Alegre: L&PM, 1998.
MORAIS, José Luiz Bolzan de. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
RUBIM, Antônio Augusto Canelas. Comunicação e Política. São Paulo: Hacker, 2000.
SOUZA, Antônio Marcelo Pacheco de. O paradoxo em torno da Democracia em tempos de Globalização. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 337, 9 jun. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5319>. Acesso em: 23 abr. 2007.
VILA NOVA, Sebastião. A Realidade Social da Ficção. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2005.