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Elementos para a interpretação constitucional da prisão disciplinar militar

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03/01/2011 às 16:21
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Resumo: O presente artigo aborda a questão da previsão constitucional das penas privativas de liberdade na esfera disciplinar militar e a sua convivência com o princípio reitor da dignidade da pessoa humana. Realiza uma análise da adequação constitucional do problema, através das premissas em que ele se apoia, a fim de identificar, de forma exploratória, as bases de estudos futuros que orientarão a melhor interpretação nos casos de aplicação de punições privativas de liberdade.

Palavras-chave: 1. Prisão disciplinar militar. 2. Garantias individuais 3. Hermenêutica constitucional.

Sumário: 1. Introdução. 2. O regime administrativo especial da atividade militar. 3. A constitucionalidade do sistema disciplinar militar de restrição da liberdade. 4. Condicionantes da restrição da liberdade disciplinar: elementos para uma exegese. 5. considerações finais


1. Introdução

As penas restritivas de liberdade sempre compuseram o cabedal de punições militares no Brasil. Desde a utilização das ordenações do Reino de Portugal, que vigeram até a instituição dos artigos de Guerra do Conde de Lippe, em 1763, e de outras normas punitivas sucessivas até o presente momento, experimentou-se uma gama extensa de punições rigorosas que incluíam desde a morte e castigos físicos à privação da liberdade.

Em tempos recentes as penas físicas, cruéis, de banimento, de trabalhos forçados e de caráter perpétuo foram extirpadas de todo o ordenamento jurídico, assim como a pena de morte somente passou a ser aplicada em caso de guerra declarada. Persistem, todavia, as penas de restrição da liberdade na esfera penal. Uma outra particularidade no direito constitucional é a manutenção da restrição da liberdade por meio de punições administrativas disciplinares militares.

Ocorre que o status libertatis é condição plena de cidadania e, aliado ao princípio da presunção de inocência, impede que qualquer pessoa seja presa senão por ordem escrita da autoridade judiciária competente, como regra no direito moderno. Ao se depararem com a exceção conferida à prisão disciplinar militar, os operadores do direito se questionam sobre a sua constitucionalidade, ou sobre o modus operandi desse tipo de punição.

Considerando os traços peculiares do regime jurídico das Forças Armadas que se destinam à defesa da pátria, seria leviano ou deveras difícil afirmar categoricamente sobre o obsoletismo ou a necessidade de reformas nestas penas sem um estudo mais aprofundado.

A questão que vem à tona, portanto, é a sustentabilidade jurídica das punições disciplinares de restrição da liberdade, considerando os princípios constitucionais que asseguram a cidadania. Como compatibilizar os fundamentos da República Federativa do Brasil, cuja base está na dignidade da pessoa humana, com a previsão de restrição da liberdade sem um processo judicial cercado das mais amplas garantias? Estas punições soam imprescindíveis às organizações militares? Há pontos de reparo na sua aplicação? Eis o desafio hermenêutico.

Cabe alertar, preliminarmente, que não se está a discutir a constitucionalidade da lei ou dos regulamentos para impor sanções de restrição de liberdade, até porque não é pacífica esta questão [01]. Parte-se do princípio que a previsão de penas disciplinares, da forma como prevista na lei e nos regulamentos, encontra adequado assento constitucional. O debate, portanto, está fundando apenas nos contornos jurídicos de sua aplicação, sem que se discuta a legalidade formal de sua previsão.

Este trabalho pretende identificar, sem qualquer pretensão ou tendência ideológica, a melhor aplicação exegética ao caso, a partir de uma incursão no âmago dos motivos que embasam a opção pelas penas cerceadoras de liberdade e da nova hermenêutica constitucional.


2. O regime administrativo especial da atividade militar

A atividade militar é caracterizada por grande empenho psicológico do indivíduo, em que se sobressaem o risco de morte, a agressividade e o desenvolvimento de atributos que formulam um perfil de combate inerentes à condição de preparo para a guerra. Estas características têm a sua finalidade funcional, mas podem gerar graves distorções se mal empregadas. Para assegurar a eficiência das forças militares e garantir a sua permanência coesa ao longo dos tempos, lhes é imposto um sistema rígido de controle e de concepção da atividade militar, quer seja na esfera moral, ética, ideológica ou jurídica. [02]

Vale destacar as palavras de Coutinho:

O Exército, como componente das Forças Armadas do país, é instrumento político do Estado e, ao mesmo tempo, é instituição nacional. É um aparelho voltado para a guerra, organizado, equipado e treinado para aplicação da violência, A sua natureza e destinação bélicas impõem que esteja submetido a valores éticos que lhe confiram finalidades morais, que tornem legítimo o uso da violência e que dêem limites toleráveis à sua ação, sem o que, quando empregado, poderá se transformar em um instrumento letal indiscriminado, inescrupuloso e fora de controle da Nação a que serve. (COUTINHO, 1997, p. 63)

O regime jurídico do militar é sui generis, dotado de características, direitos e deveres diferenciados em relação aos servidores públicos civis. Este sistema de normas tenta adequar as peculiaridades militares em face das necessidades trabalhistas, administrativas, previdenciárias e operacionais, ao mesmo tempo em que cria regras de responsabilização para o caso de violação dos padrões estabelecidos.

Esse regime administrativo pressupõe a dedicação integral e exclusiva ao serviço militar que pode ser traduzida pelas seguintes situações: a proibição ao militar da ativa de exercer comércio, a vedação à sindicalização, greves ou qualquer outro tipo de reinvindicação; a proibição de participar de atividades políticas; a obrigatoriedade de mobilidade geográfica pela necessidade do serviço; a participação em atividades militares insalubres como campanhas e manobras sem contrapartida financeira; os serviços (plantões) de escala em período integral sem remuneração extra; dentre outros pormenores.

Um dos mais destacados pontos de diferenciação é a sujeição do militar a preceitos rígidos de hierarquia e disciplina. Pode-se identificar no direito constitucional brasileiro um verdadeiro princípio da hierarquia e disciplina militar [03] do qual irradiam vários outros princípios e regras, constitucionais ou legais. Até mesmo os inativos estão sujeitos à ação disciplinar em casos especiais, podendo inclusive perder o posto, a patente e a graduação.

Segundo o Estatuto dos Militares (Lei 6.880/80), a hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas; já a disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo. Ambos os conceitos estão intimamente ligados de tal forma que um instituto não sobrevive sem o outro. "Não se confundem, como se vê, hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no sentido de que a disciplina pressupõe relação hierárquica. Somente é obrigado a obedecer, juridicamente falando, a quem tem poder hierárquico". (SILVA, 2005, p. 773)

Na verdade, essa feição mais endurecida do sistema hierárquico-disciplinar serve justamente para auxiliar os demais dispositivos de contenção e controle do indivíduo militar. Nas palavras de Coutinho (1997, p. 96): "A hierarquia constitui uma estrutura indispensável à condução da massa de homens que integra a organização. Nela se processa a interação do mando e da obediência. A disciplina confere consistência e estabilidade a esta estrutura e, ao mesmo tempo, nela se apóia."

Assim, a disciplina e a hierarquia militar podem ser lidas e traduzidas sob diversas óticas. Além da visão jurídica, tem-se a psicológica, sociológica, pedagógica, administrativa e, acentuadamente, a vertente operacional de emprego das tropas. Para a consecução dos desideratos embutidos nessas ciências, as Forças Armadas são baseadas em uma estrutura de comando hierarquizada e pormenorizada.

A estrutura de comando militar é o mecanismo diferenciador dos cargos do serviço público no meio civil, dando tintura específica aos cargos de chefia militar. O Estatuto dos militares (Lei 6880/80) aduz no seu art 34 que o comando:  "é a soma de autoridade, deveres e responsabilidades de que o militar é investido legalmente quando conduz homens ou dirige uma organização militar."

Portanto, a disciplina e a hierarquia militar estão respaldas na existência do comando militar, cujos detentores possuem uma gama de atribuições morais, administrativas e legais. O poder legal de impor ordens conferido aos comandantes militares permitem às Forças Armadas o cumprimento da sua missão constitucional sem titubeios.

A contrapartida é a subsunção dos militares comandados ao dever irrestrito de obediência e à observância ferrenha de um código de ética rígido e amplo, capaz de regular, inclusive, situações da vida privada do militar, que afetem a eficiência da instituição.

Por sua própria natureza, um Exército é diferente de outras instituições sociais. Como principal agente da violência do Estado, destaca-se e possui características especiais como organização social. Um Exército é uma instituição total, no sentido do termo empregado por Erving Goffman; seus membros distinguem-se de outros que seguem estilos de vida diferentes. Uma "característica central das instituições totais" é a ruptura das barreiras que separam as três esferas da vida – sono, lazer e trabalho – por meio do controle de onde, quando e como elas ocorrem. (Mc CANN, 2009, p. 16-17)

Com esse sistema, tenciona-se obter uma aderência espontânea de todos os militares aos valores julgados imprescindíveis à eficiência da instituição militar. Trata-se da tão almejada disciplina consciente e coletiva. Não obstante, surge a velha e discutida questão, que remonta aos primórdios dos direitos canônico, romano e germânico, no sentido da eficácia das prescrições normativas sem a instrumentalização de sanções adequadas.

Seria possível obter-se tal disciplina consciente sem um respaldo normativo que garantisse em última instância a aplicação coercitiva para os casos de violação? A resposta pode ser obtida com a explicação de Machado (2004) sobre um dos elementos integrantes da estrutura da norma jurídica.

A idéia de sanção está diretamente ligada à de coercibilidade. Na medida em que o ordenamento jurídico alberga uma organização capaz de aplicar as sanções, estas podem ser tidas como instrumentos de eficácia jurídica, vale dizer, as sanções funcionam como instrumentos com os quais o Direito pretende impor-se aos inadimplentes. (MACHADO, 2004, p. 105)

Desse modo, há de se compreender o motivo pelo qual a eficácia jurídica da estrutura de comando e da conseqüente manutenção da hierarquia e da disciplina não é obtida pela simples existência de um código ético recrudescido. Assegura-se a disciplina a partir de um arcabouço de normas penais e disciplinares especializadas [04], tendo em vista a necessidade de manter o militar dentro de padrões controlados, acaso a disciplina consciente não seja alcançada.

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Eis o fundamento do regime diferenciado. A lógica está numa relação inversamente proporcional. Quanto maior o grau de espontaneidade no cumprimento dos valores institucionais, menor será a necessidade de intervenção do poder punitivo do Estado.

Seria extremamente desastroso deixar pessoas, que sofrem derrogações em inúmeros direitos, capacitados e treinados para o combate, com amplo acesso ao manuseio de informações, armamentos e equipamentos de alto poder destrutivo, desprovidas de normas repressivas eficazes. Nesse ponto, as regras de hierarquia e disciplina militar impõem um caráter educativo e ao mesmo tempo repressivo, possibilitando a manutenção ou restauração do padrão almejado.

Em sede específica do poder punitivo do Estado, o corolário é a previsão nos diplomas legais de um sistema disciplinar mais recrudescido, inclusive no que toca às punições. A restrição da liberdade deixa de ser, portanto, sob uma ótica mais ampla, uma simples violação de garantia individual para se tornar um mecanismo necessário de eficiência da força militar.


3. A constitucionalidade do sistema disciplinar militar de restrição da liberdade

Conforme análise retro, a disciplina militar é baseada em um lastro jurídico que permite aos comandantes nos diversos níveis respaldar seus poderes de mando.

Existem proteções das instituições militares na esfera penal, que tutela os bens jurídicos necessários à sua sobrevivência. A violação das normas que asseguram o cumprimento do dever militar se caracteriza em crime militar e é punida no âmbito judicial. [05]

Da mesma forma, existem normas de cunho administrativo que permitem às autoridades militares reprimirem diretamente as condutas violadoras do dever militar, porém na sua concepção mais simples e corriqueira, pautando-se em assuntos restritos às lides funcionais. [06]

Embora sejam esferas distintas de responsabilização jurídica no cenário atual, a repressão penal e administrativa-disciplinar militar são vertentes do poder punitivo do Estado e adotam pontos de contato em comum, pois possuem as mesmas raízes históricas e o mesmo fundamento de proteção. Outra característica específica do direito militar é que existem conseqüências jurídicas recíprocas nas relações entre as esferas penal e disciplinar, ou seja, um ilícito penal repercute de alguma forma na esfera disciplinar e vice-versa. [07]

Por essa similitude morfológica e finalística dos direitos penal e disciplinar militar brasileiro e ainda pelas origens históricas comuns, a restrição da liberdade ainda remanesce em ambos os sistemas punitivos, judicial e administrativo, como medida de contenção da indisciplina. Seja para segregar temporariamente aquele que comete infrações violadoras do dever militar ou para desestimular novas condutas por si ou pela coletividade, as punições restritivas de liberdade, tão questionadas no meio jurídico-acadêmico e no meio forense, têm permanecido nos diplomas disciplinares a fim de manter o status quo das Forças Armadas brasileiras ao longo das últimas décadas.

A Carta Magna, coerente com seus princípios e postulados, ressalva que nos casos de crime propriamente militar ou de transgressão militar, definidos em lei, será possível a aplicação de prisão sem a necessidade de mandado judicial. [08] Assim, haverá casos de prisão penal por crime propriamente militar de acordo com o Código Penal Militar (CPM) e de prisão disciplinar por transgressão militar, conforma preceitua o Estatuto dos militares (lei 6.880/80), executadas diretamente pela autoridade militar competente.

Relembre-se, por oportuno, que não se discute neste trabalho a constitucionalidade ou legalidade da previsão de penas restritivas de liberdade pela via do regulamento disciplinar, assunto para outras paragens. Procura-se neste tópico apenas identificar a adequação da hermenêutica constitucional em dar uma interpretação ampliativa ou restritiva à incidência de prisões disciplinares. Ou seja, indaga-se se o que está escrito no inciso LXI do art 5º é aplicável na sua plenitude, e se dele deflui mais alguma conseqüência que possa restringir ou ampliar o modo de aplicar as prisões disciplinares na prática da caserna.

Com isso, afirma-se que não há vedação constitucional para a supressão da liberdade em termos administrativos. Muito pelo contrário, quando se proíbe o manejo do habeas corpus contra as punições disciplinares militares [09], a Constituição Federal fortalece o sistema disciplinar militar.

Muitos estudiosos se utilizam da prevalência da dignidade da pessoa humana para dar uma interpretação constitucional que restrinja a incidência de penas disciplinares de cerceamento da liberdade.

Neste ponto cabe uma reflexão. O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da nossa República dotado de alto valor interpretativo. Isso é fato e não há possibilidade de discussão. Toda a hermenêutica constitucional deve partir dessa ótica e sempre privilegiar as garantias e os direitos individuais. Todavia, essa direção da interpretação não pode criar absurdos jurídicos ou desprestigiar outras normas constitucionais quando aplicadas.

Sarmento (2002, p. 60) aduz que "o princípio em questão é que confere unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na idéia de respeito irrestrito ao ser humano – razão última do Direito e do Estado". Portanto, a sua finalidade é de harmonização e não de exclusão.

Se a idéia é a de harmonização, pode-se dizer, em conseqüência, que há relatividade do princípio da dignidade humana em face de outros princípios no caso concreto, incluindo-se o da hierarquia e da disciplina militar. "Das reflexões de Dworkin infere-se que um princípio, aplicado a um determinado caso, se não prevalecer, nada obsta a que, amanhã, noutras circunstâncias, volte ele a ser utilizado, e já então de maneira decisiva". (BONAVIDES, 2004, p. 282)

Quando a própria Constituição Federal estabelece a previsão de prisão disciplinar, o muito que a exegese jurídica poderá abrandar reside no campo da aplicação, ditando injunções mais adequadas à proteção dos administrados militares. Não se pode entender que a letra da constituição viola a própria constituição, tornando certas normas inconstitucionais. [10]

Como forma específica de garantir um julgamento justo aos acusados, a Constituição Federal exige o devido processo legal para a aplicação das punições, em consonância com a máxima efetividade dos direitos e garantias individuais. Uma vez que a restrição da liberdade pode redundar na violação desses direitos, a sua aplicação deve ser interpretada a partir de outros princípios que induzem a uma maior necessidade de formalização, de modo a assegurar ao militar eventualmente punido o máximo possível de garantias. Esta é a verdadeira lógica do sistema, em que os princípios interagem e chegam a um ponto ótimo dentro do caso concreto.

Sim. Tratou-se aqui de erigir o caso concreto como ponto de partida de toda a interpretação jurídica. Em face do mundo prático, as regras disciplinares de outrora devem ser revistas ou reinterpretadas, sem perder os fundamentos da disciplina-base, sempre de acordo com as características culturais da Nação brasileira.

Há que se compreender, portanto, os motivos que podem interferir na necessidade de retenção da liberdade na esfera disciplinar militar e, conseqüentemente, no modo de interpretar as normas de aplicação desse instituto. São os elementos do mundo concreto que já existem e que condicionarão a hermenêutica constitucional em futura aplicação prática.


4. Condicionantes da restrição da liberdade disciplinar: elementos para uma exegese

A discussão dos valores sociais que se debruçam sobre as penas restritivas de liberdade no direito disciplinar militar permite uma dialética dos fatos com a lógica jurídica. [11] Nesse sentido, faz-se necessário rememorar dados, características e conseqüências de ações que envolvem as instituições militares brasileiras.

Em uma rápida investigação, posto que este trabalho não comporta maiores digressões históricas ou incursões doutrinárias em função do seu caráter exploratório, foram identificados fatores sociológicos e jurídicos intervenientes à aplicação e à evolução normativa da privação da liberdade na esfera disciplinar.

O atual desenvolvimento sócio-cultural do brasileiro-militar, a etnografia brasileira e a capacidade operacional das Forças Armadas não permitem que se altere o quadro de penas disciplinares sem uma base integrada de estudos sociológicos ou antropológicos, aliados ao panorama jurídico.

Conforme se deflui de uma investigação histórica da evolução militar do Brasil [12], as análises devem se assentar em multifárias questões: quadro estratégico de defesa; grau de adestramento das forças; sistema de recrutamento para o serviço militar; a miscigenação populacional e a pulverização étnica no território nacional; grau de civismo e tradição militar da população; questões políticas, rede de privilégios e corrupção no serviço público; aspectos da história militar com reflexos atuais; aspectos logísticos e econômicos; formação dos quadros profissionais; aspectos hodiernos de aplicação da justiça e da disciplina, dentre outros.

A partir destas premissas, deve-se identificar o perfil cívico do brasileiro em correlação com a atividade de defesa da nação. Será que o brasileiro é cônscio de seus deveres como cidadão e está pronto para garantir a estrutura militar nos moldes em que se encontra? Possuímos, no Brasil, um elevado padrão moral de conduta independente da ameaça repressiva contida em um código disciplinar? As respostas obtidas vão endossar o grau de disciplina consciente e coletiva de que se pode dispor e, em conseqüência, permitir uma maior ou menor possibilidade de se reduzir o espectro de penas de cerceamento de liberdade no momento atual. Relembre-se que há relação inversamente proporcional entre o grau de disciplina consciente e a intensidade da repressão disciplinar.

A presença nacional das Forças Armadas nos mais inóspitos rincões do país, em que o Estado com seus poderes formalizados ainda não se faz presente, torna-se um outro fator de ampliação da capacidade de controle dos comandantes em todos os níveis. A necessidade de recolhimento disciplinar viria inexoravelmente a reboco.

Vastas fronteiras são povoadas por tropas militares, em que riscos diplomáticos, violação a direitos humanos e possível comprometimento da operacionalidade da força devem ser geridos diretamente pelos comandantes militares. Como lidar com fatos não tipificados na lei penal ou de difícil enquadramento imediato, somente detectados pelo aparato de polícia judiciária em investigação rotineira e constante? Como devem os comandantes proceder em casos de séria afronta a disciplina? Estas questões são capazes de ratificar a proposição das prisões disciplinares.

Percebe-se claramente que seria extremamente difícil controlar a disciplina sem os mecanismos punitivos de restrição de liberdade.

Nada obstante, há um fator jurídico a se somar ao contexto sociológico. A restrição da liberdade em nível disciplinar é conveniente ao princípio da intervenção mínima do direito penal militar, uma vez que se destina a aplicar uma resposta eficaz com menor lesividade social. Todos os caracteres sociológicos citados acima fazem com que a abrangência do direito penal possa se tornar desarrazoada, para menos ou para mais, por ineficácia ou por contundência.

Nesse tipo problema – déficit do sistema tipificador, diversidade cultural e abrangência demasiada de casos concretamente diversos, mas abstratamente idênticos – , insere-se o caráter fragmentário do Direito Penal, fincando a questão: Como solucionar, por meio de descrições pontuais e abstratas, todos os variados problemas penais?

A resposta se impõe, com o reconhecimento prévio da existência da fragmentariedade e da necessidade de empregar critérios reparadores das falhas de todo o sistema, dentre os quais o da intervenção mínima. (CAPEZ, 2005, p. 21)

O direito penal é concebido para atuar somente quando as mazelas sociais carecem de um remédio mais eficaz. Prefere-se, no campo do direito, que se esgotem todos os mecanismos repressivos antes de se infligir a coerção penal, incriminando condutas e aplicando penas. A aplicação de penas disciplinares, principalmente as restritivas de liberdade, gera em muitas ocasiões resultados satisfatórios sem a deflagração da ação penal do Estado.

Cite-se o exemplo de um indivíduo que reiteradamente se ausenta do quartel por vários dias, mas que se apresenta pouco antes de findar o prazo dos oito dias necessários à consumação da deserção. Embora não tenha cometido crime militar, o dever militar de assiduidade e de prontidão restou violado seriamente, cabendo uma repressão imediata. Nesse caso, a pena restritiva de liberdade torna-se eficaz para intimidar tanto o transgressor quanto a coletividade militar que o cerca. Na mesma linha de raciocínio se encontram as faltas residuais nos delitos de recusa de obediência, do abandono de posto, dentre outros. Muitas ações podem não caracterizar os elementos do fato típico penal militar, mas em todos os casos existem condutas que, de forma residual, podem e devem ser reprimidas imediatamente através de uma coerção disciplinar mais contundente, sob pena de séria afronta à pronta disciplina coletiva.

Isso não implica na esquiva ou desídia na aplicação do direito, mas em uma ferramenta jurídica de funcionalidade convincente. Não se advoga, da mesma forma, a preterição da esfera penal pela disciplinar, posto que aquela é prevalente quando deflagrada concomitantemente. [13] Apenas se demonstra que o direito se socorre de alternativas técnicas para evitar uma situação de "tudo ou nada jurídico". Nesse compasso, parece irrefutável que a prisão disciplinar vem colmatar uma possível lacuna punitiva com a repressão proporcional.

Assim, a pena privativa de liberdade na esfera disciplinar se considerada isoladamente seria uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Após sopesada com os princípios de aplicação do direito penal, torna-se um verdadeiro fiador da coerência e da harmonia do sistema punitivo militar, proclamando a harmonização social. Ironicamente e contrariando discursos humanistas tradicionais, pode-se perceber uma utilidade da sua existência, quando invocamos o princípio da fragmentariedade. "A intervenção mínima e o caráter subsidiário do Direito Penal decorrem da dignidade humana, pressuposto do Estado Democrático de Direito, e são uma exigência para a distribuição mais equilibrada da justiça." (CAPEZ, 2005, p. 22)

Por fim, cabe erigir um possível ponto, que desde logo deve ser refutado. Alguns Estados da Federação tiveram abrandamentos das penas disciplinares nos estatutos policiais militares. Particularmente no Estado de Minas Gerais, não há mais a punição administrativa de restrição da liberdade resultante de processo administrativo disciplinar [14], exceto como medida cautelar [15]. Um eventual sucesso do modelo de punições adotado naquele Estado poderia ser tomado como uma espécie de benchmarking [16] e utilizado como parâmetro de comparação. [17]

Apesar da louvável tendência, as condicionantes e o contexto da atividade policial não podem embasar estudos comparativos com as Forças Armadas em termos de aplicação de padrões disciplinares. As Polícias e Corpos de Bombeiros Militares são voltados para outra missão institucional, qual seja a segurança pública, e não a preparação para a defesa externa e a destruição de inimigos. [18] Rosa (2007) [19], ao tratar da delicada questão de aplicação de punições privativas de liberdade, já declarou que "As atividades de polícia não podem e não devem ser confundidas com as questões militares federais, segurança nacional, que tem por objetivo a preservação e a defesa do território nacional contra o inimigo externo".

Entretanto, deve-se frisar que apesar de a restrição da liberdade na esfera disciplinar ser constitucionalmente prevista e não sofrer restrições atuais, a interpretação evolutiva do direito nos conduz a um caminho inevitável de futuro abrandamento desse instituto punitivo, mesmo no âmbito das Forças Armadas. Em 1987, Jarbas Passarinho já prenunciava o avanço da disciplinar militar:

Novos critérios de valores morais, revelações científicas revolucionárias, particularmente no domínio psíquico, outros conceitos de liberdade e de direitos humanos, mudaram de modo radical a feição dos exércitos, pondo em relevo como nunca a responsabilidade dos chefes, no tocante a obterem integral cooperação de seus soldados. (PASSARINHO, 1987, p. 20)

Pela análise da evolução das penas militares nos últimos dois séculos, torna-se extremamente lógico concluir que as penas disciplinares militares restritivas de liberdade serão substituídas por outras menos gravosas, em um período razoável, que não se consegue aquilatar de imediato. Mas enquanto esse processo inexiste, a evolução da prisão disciplinar deve ser interpretada e sentida no mundo prático com a máxima eficácia das garantias constitucionais que incidem na sua aplicação.

O princípio da dignidade da pessoa humana deverá ser privilegiado na interpretação e na aplicação do direito disciplinar militar. Com toda certeza, ao invocar a necessidade de punir disciplinarmente, os comandantes militares estarão convictos do seu papel disciplinador, sem que isso possa significar afronta a direitos e garantias individuais.

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Sobre o autor
Jocleber Rocha Vasconcelos

Oficial Superior do Exército Brasileiro; Mestre em Operações Militares;Pós graduado em Direito Processual Civil, em Direito em Administração Pública e em Psicopedagogia e Orientação Educacional; Pós-graduando em Direito Militar; Bacharel em Direito e em Ciências Militares.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VASCONCELOS, Jocleber Rocha. Elementos para a interpretação constitucional da prisão disciplinar militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2742, 3 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18187. Acesso em: 19 abr. 2024.

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