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Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário.

Doutrina e jurisprudência

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04/01/2011 às 05:22
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4 GENERALIDADES SOBRE O ABUSO, O DESVIO E O EXCESSO DE PODER ADMINISTRATIVO

CRETELLA (1968: p. 30) traz à colação uma conceituação do tema abuso, excesso e do poder administrativo, subdividindo-o, deixando claro porém que a divisão não é bastante clara:

"Para alguns autores, as três expressões são empregadas como absolutamente sinônimas, ao passo que para outros o desvio de poder é simples modalidade do excesso de poder.

Como quer que seja, o assunto ainda não recebeu dos autores a sistematização desejada. Dentro da linguagem, rigorosamente técnica e precisa que o direito exige, seria conveniente empregar os vocábulos em acepções precisas. Assim, abuso seria empregado em sentido mais genérico; desvio e excesso, em sentido mais específico.

O abuso de direito, em nosso campo, caracterizar-se-ia ou por excesso (diferença quantitativa) ou por abuso (diferença qualitativa)." (grifos no original)

Continua ainda, o mesmo autor, acerca do desvio de poder:

"JÈZE, Gaston define o desvio de poder como ‘todo ato jurídico, regular na aparência, realizado por um agente público com uma finalidade distinta daquela para a qual foi destinado’ (Principios Generales del Derecho Administrativo, trad. Arg.1949, vol. III, p. 79/80. FOIGNET, René: ‘Quando um agente usa de seu poder num caso ou para motivos diferentes daqueles para os quais o poder lhe foi confiado temos o desvio de poder.’ (Manuel Elementáire de Droit Administratif, 16ª ed., 1926, p. 648). Os mais expressivos autores franceses de nossos dias acentuam, sem dissonância, a nota específica que caracteriza o desvio de poder, qual seja, a persecução pelo agente administrativo de fim diverso daquele para o qual o ato deveria ser legalmente executado, mesmo se o fim nada contiver, em si, de chocante." (CRETELLA, 1968, p. 31, nota de rodapé)

A conceituação do excesso de poder, pelo mesmo autor, não verifica o fim a que se destina o agente administrativo, mas apenas se o poder é exercido de modo excessivo, vale dizer, além do que permite a lei.

Mas quais os motivos possíveis pelos quais a Administração Pública, em algum momento, opta – supondo que seja uma opção e não um mero excesso de zelo ação não-intencional na aplicação da lei – por agir ultrapassando o que lhe permite a lei? Dado que o objeto do presente trabalho não comporta maiores voos, permitir-nos-emos algumas ponderações de ordem especulativa, sem respostas definitivas e/ou fechadas.

Inicialmente, impende verificar que a análise do caso concreto de abuso de poder envolve, necessariamente, uma análise dos fins perseguidos com o ato abusivo. A este respeito, indispensável a citação de CRETELLA JÚNIOR, a respeito especificamente do desvio do poder: "Por isto se diz que o desvio de poder envolve uma noção teleológica, isto é, o fim perseguido pelo autor de um ato ébásico para julgar seu autor". (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31.). Não obstante a restrição feita pelo autor, na observação, ao desvio de poder, espécie do gênero abuso de poder, é possível entender que o abuso de poder também se encaixa nesta observação.

Em outra linha de raciocínio, verifica-se que, via de regra, o abuso do poder é tratado em função de interesses pessoais; daí que, como a Administração Pública age de modo impessoal, o tema abuso de poder é matéria típica do Direito Privado, comportando ali um grande arcabouço teórico.

Não obstante, conforme já se verificou, o abuso de poder também ocorre no seio da Administração Pública, em diversas esferas. No que toca ao poder regulamentar, verificar-se-á o abuso do poder sempre que o regulamento restringir direitos dos administrados, o que, conforme é cediço, só poderia ocorrer por meio da lei, e ainda assim, em obediência estrita aos ditames constitucionais.

Neste sentido, ATALIBA (1981: p. 189) explica que:

"[O regulamento] só indiretamente pode atingir os administrados. Daí o asserto de Sérgio Ferraz no sentido de que ‘o regulamento é um ato de eficácia externa, ou seja, sua normatividade não obriga apenas a administração, que por ele se auto-limita, mas confere direito público subjetivo invocável pelo particular (3 estudos de direito, p. 105).

Os administrados só são sujeitos aos preceitos regulamentares, na medida em que, pela lei, devam tratar com os servidores públicos, e só nessa medida. Os administrados não são subordinados ao chefe do Poder Executivo. Não devem acatamento às suas ordens."

Deste excerto doutrinário extrai-se regra de inexcedível valor no escopo do presente estudo, qual seja: sempre que o regulamento atingir diretamente, de modo não expressamente previsto na lei, qualquer direito público subjetivo do administrado, verifica-se o abuso de poder regulamentar.

Exemplo claro disto, tipicamente verificado no âmbito do Direito Previdenciário, são as exigências feitas pelos regulamentos da Previdência Social que tendem a limitar o usufruto dos benefícios previdenciários. Concretamente, já se verificou a existência de redação do Regulamento Previdenciário [03] que exigia, para a concessão do benefício salário-maternidade, a existência de relação de emprego, em flagrante usurpação da reserva legal, visto que a lei não fazia qualquer menção a condições a serem impostas para a concessão do referido benefício. Outros exemplos poderão ser encontrados na seção específica destinada à análise da jurisprudência acerca do tema.

Do mesmo texto de ATALIBA (idem, ibidem), extrair-se-á outra observação importante, devida a Pontes de Miranda, acerca da natureza do poder regulamentar: "em se tratando de regra jurídica de direito formal, o regulamento não pode ir além da edição de regras que indiquem a maneira de ser observada a regra jurídica."

Desta pequena citação doutrinária, retira-se relevante conclusão acerca dos caracteres vinculado e discricionário do poder regulamentar, consistindo o primeiro numa estrita vinculação à lei e o segundo numa discricionariedade, de caráter amplo, do modo como se deve realizar a fiel aplicação da lei.

O entendimento da amplitude de cada um destes dois caracteres, no sentido de que, existindo a fiel aplicação da lei, ou por outro ângulo de visão, inexistindo lesão imprevista na lei aos direitos subjetivos do administrado, o modo como ela se dará e de exclusiva escolha do Poder Executivo, parece ser um controle extremamente eficaz dos eventuais abusos do poder regulamentar.

À guisa de critério hermenêutico para a identificação segura do abuso do poder regulamentar, FRANÇA (2000: p. 40) explica que há uma parcela de discricionariedade estatal, que não é do Poder Executivo, mas sim de titularidade do Estado como um todo:

"Sendo a discrição do legislador mais ampla em conteúdo e a primeira a manifestar-se, cronologicamente, no processo de expressão de ‘vontade’ do Estado, a discrição reservada ao administrador e ao juiz pode dizer-se, em certo sentido, residual, sendo exercida no que não tiver sido regulado pela lei. Onde e quando se manifeste, em toda a sua plenitude, a discrição do Poder Legislativo, já não haverá opções confiadas aos Poderes Executivo e Judiciário no processo de expressão da vontade estatal. Exaurindo a lei as possibilidades de escolha, não há outra conduta possível além do estabelecido, devendo ser individualizada tal solução." (grifamos)

Discorrendo sobre o tema, GASPARINI (1978, passim) entende que o poder regulamentar possui, também, fundamentos políticos, os quais residem na conveniência e oportunidade conferida ao Poder Executivo, para disciplinar os comandos legalmente previstos, visando dispor internamente sobre a estrutura da Administração ou pormenorizando o conteúdo de determinadas matérias. Destarte, o exercício da atribuição regulamentar é assegurado ao chefe do Executivo, mesmo que nada disponha o ordenamento jurídico acerca desta competência.

Em contraponto ao que foi dito até aqui, apresentamos a seguir um pequeno estudo sobre aquilo que se tem denominado de crise da legalidade, crise esta que seria passível de explicar a existência dos problemas decorrentes de eventuais abusos do poder regulamentar.


5 A CRISE DA LEGALIDADE

Ainda que todas estas observações venham a ser, eventualmente, pertinentes, não é possível ou desejável demonizar o Estado, como se este agisse, generalizadamente, com o fito de prejudicar os seus administrados.

De fato, sabe-se que a atuação do Estado moderno, em função de sua atuação cada vez maior na vida dos cidadãos, leva a uma maior complexidade em sua atuação; e que a existência desta maior complexidade leva a uma maior quantidade de conflitos.

CABRAL DE MONCADA (2002: p. 22) disserta sobre o tema nos seguintes termos:

"Estão pois maduras as condições para se poder afirmar que o entendimento clássico da legalidade administrativa está em crise. Para este, a acção administrativa justiçava-seenquanto execução fidedigna da lei por aí se medindo a sua legitimidade de base nessa mesma medida democrática. Sucede, contudo, que a complexidade da moderna acção administrativa, a que já se aludiu, modificou por dentro o alcance da legalidade administrativa ao mesmo tempo que colocou em novos moldes a questão da legitimidade da actividade adminstrativa, como não podia deixar de ser. A moderna acção administrativa não pode configurar-se como uma mera execução da lei e por assim ser não pode esperar-se que a lei seja a única fonte de sua legitimidade. Carece pois a moderna actividade administrativa de novas fontes de legitimidade capazes de lhe emprestar uma remoçada dignidade."

A razão para tal dificuldade apontada, conforme explicitado no texto, é que a atuação do Executivo se torna cada vez mais complexa à medida que a própria sociedade como um todo se torna mais complexa. É nesse sentido que BARROSO (2003: p. 204) afirma:

"No Direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria lei caiu no desprestígio. No Direito Público, a nova onda é a da governabilidade. (grifamos)   

Ainda discorrendo sobre esta tendência, o professor José Reinaldo de Lima Lopes, (apud MARQUES: 2004, p. 2) afirma que:

"É possível narrar a história do Direito Administrativo não de modo ingênuo,da defesa do cidadão comum – pessoa natural – contra um poderosíssimo Leviatã, mas de modo um pouco mais realista, como a história da definição de um campo em que estão lado a lado grande política eleitoral, grande política econômica, grandes finanças e grandes negócios. São as mudanças neste jogo e nas interações destes grandes atores que definem afinal a sorte do direito Administrativo."

A explicação para tal tendência, notadamente na vigência do Welfare State ou Estado-Providência, decorre da existência de uma transmutação das demandas normativas do Estado contemporâneo, demandas estas que o Parlamento não teria a capacidade material de fazer face; desta incapacidade decorreria, segundo MARQUES (2004: p. 5) uma alteração na dinâmica do Poder Executivo.

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Esta alegada alteração na dinâmica do Executivo, se não justifica os abusos decorrentes do abuso do poder regulamentar, ao menos os explica. A respeito do assunto, e citando a professora Maria Paula Dallari Bucci, vide MARQUES (idem, ibidem):

"Na verdade, a formulação técnica do Direito Administrativo que define a administração, enquanto parte do Poder Executivo, como mera executora da lei é reconhecida pelos próprios administrativistas como ‘simplista e insatisfatória’, especialmente com o Estado social de direito, de que resulta um Poder Executivo fortalecido. O próprio direito administrativo é profundamente afetado, pois, embora se continue a proclamar o princípio da legalidade como uma de suas vigas mestras, na realidade a lei a que se obriga a Administração compreende também atos normativos de diferentes modalidades editados pelo próprio Poder Executivo."

Em um ambiente jurídico pós-positivista, como parece ser necessariamente o existente no Estado Democrático de Direito, no qual os direitos decorrem não mais simplesmente da lei, mas sim do sistema jurídico como um todo, tendo em seu ápice o a Norma Máxima, qual seja, a Constituição Federal, já se fala na substituição do princípio da legalidade pelo princípio da "juridicidade".

Nesta nova forma de visão, o que hoje se denomina como "império da lei" seria substituído por um "Império da Justiça", sendo superado o paradigma positivista em favor de um paradigma pós-positivista, o qual seria mais capaz e mais tendente a corrigir as inevitáveis imperfeições do sistema jurídico como um todo através de um entendimento ampliado do conceito de Justiça.

FRANÇA (2000: p. 50), discorrendo sobre o princípio da indisponibilidade do interesse público, afirma serem dele decorrentes, entre outros subprincípios, o princípio da juridicidade administrativa, o qual seria, por sua vez, composto pela junção dos conceitos de legalidade administrativa, impessoalidade ou finalidade e proporcionalidade. Partindo desta visão, fica claro que, de um ponto de vista da supremacia do interesse público vista de modo mais atento, eventuais abusos do poder regulamentar têm o condão, não apenas, de não atendê-lo, mas antes de afrontá-lo; isto, ainda que à primeira vista um tratamento "rigoroso" do contribuinte/cidadão pareça ser benéfico à primeira vista, pode acabar por tornar-se nefasto, em vista das consequências jurídicas daí advindas.

O mesmo autor, discorrendo sobre interesse e sobre interesse público, afirma (FRANÇA: 2000, pp. 63-64):

"A ação do Estado é determinada pelas diretrizes e fundamentos da Constituição e da legislação infraconstitucional dela decorrente. É evidente que existem interesses próprios da administração, que refletem a vontade de quem está no exercício da competência administrativa. Entretanto, devem estes ‘interesses públicos’ estar submetidos ao interesse público consolidado pelo constituinte e expresso no texto normativo.

(...)

"Inexiste um sentido pronto e acabado para o interesse público. É preciso compreendê-lo como uma resultante de um processo de concretização normativa do texto legal, para que nos limites da situação dada, orientando-se pela utilização coerente, harmônica e lógica dos princípios e regras jurídicas abstratamente previstas no ordenamento jurídico, satisfaça-se uma finalidade pública. É no caso concreto que os pressupostos fáticos e jurídicos previstos no texto normativo ganham vida (se devidamente identificados pelo operador jurídico), permitindo ao administrador concretizar o texto normativo."

Tal princípio, por muito mais amplo, eventualmente teria o condão de atender à maior complexidade do Estado moderno, porém ainda não há uma solução definitiva entre tal princípio doutrinário e jurisprudencial e a norma constitucional vigente, a qual não o prevê de forma expressa; é, no entanto, importante ferramenta a ser utilizada na evolução do Estado moderno, o qual certamente terá que, em futuro próximo – ou, talvez, não tão próximo -, rever alguns de seus paradigmas, sob pena de não ser capaz de solucionar os problemas decorrentes de sua própria evolução, sob pena de ser incapaz de continuar sua evolução e de chegar a um impasse.

Isto fica claro na observação do jurista português Gomes Canotilho (apud MARQUES: 2004, p. 6):

"O princípio da legalidade já não é mais o que era. A lei perdeu prestígio e importância. As razões são várias. Como atrás se salientou, as leis transportaram, por vezes, elas próprias os lenhos da injustiça e do não direito. Noutros casos, as leis enredaram-se na solução de casos concretos, perdendo as dimensões mágicas da generalidade e da abstração. Acresce que,perante as derivas do legalismo estatal, as modernas constituições reivindicam o caráter o seu caráter de lei superior, vinculativo de todos os poderes do Estado, inclusivemente dos poderes que fazem as leis. (...) O Estado de direito é informado e conformado por princípios radicados na consciência jurídica geral e dotados de valor ou bondade intrínsecos. Não basta, para estarmos sob o império do Direito, que o Estado observe as normas que ele ditou e actue através de formas jurídicas legalmente positivadas." (grifos no original)

No entanto, o mesmo doutrinador deixa claro que a lei, se está em crise, ainda é um consectário necessário do Estado de Direito, e que ainda é, em certa medida, correspondente à idéia rousseauniana de ser, se não "a expressão da vontade geral" em seu sentido mais estrito, ao menos uma expressão da vontade comunitária, conforme deixa expressamente consignado (idem, ibidem):

"A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porque ela permanece como expressão da vontade comunitária veiculada através de órgãos representativos dotados de legitimação democrática directa. Por outras palavras: a lei emanada dos órgãos da sociedade – parlamentos – converte-se ela própria em esquema político revelador das propostas de conformação jurídico-política aprovadas democraticamente por assembléias representativas democráticas."

Verifica-se, assim, a existência de um impasse, no que diz respeito à lei formal em contraposição ao regulamento: ainda que aquela, em virtude da lentidão e morosidade de sua produção, características estas decorrentes do caráter político e colegiado de sua produção, não seja capaz de atender às necessidades do Poder Executivo, por sua própria natureza mais célere e dinâmico, não há ainda uma solução à vista, à exceção da solução doutrinária e jurisprudencial consistente no princípio da juridicidade, nos termos citados.

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Sobre o autor
Fábio Roberto Sefrin

Físico. Funcionário Público Municipal. Estudante de Direito na Universidade Estadual de Londrina - PR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEFRIN, Fábio Roberto. Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário.: Doutrina e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18194. Acesso em: 19 abr. 2024.

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