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Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário.

Doutrina e jurisprudência

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04/01/2011 às 05:22
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Muitas vezes é restringido o acesso do contribuinte ao seu direito fundamental à Previdência Social, do que decorre a necessidade de se socorrer no Judiciário para resguardar seu direito.

1 INTRODUÇÃO

Pretende-se, no presente trabalho, realizar uma breve análise da questão do abuso do poder regulamentar no panorama do Direito Constitucional e Administrativo brasileiro, mais especificamente em matéria previdenciária.

O interesse de tal análise decorre do fato de que tais atos decorrentes do poder regulamentar são muitas vezes indevidamente utilizados como uma forma de restringir o acesso do contribuinte ao seu direito fundamental à Previdência Social, do que decorre a necessidade de aquele se socorrer no Poder Judiciário para resguardar seu direito. Tal restrição indevida tem sido inúmeras vezes demonstrada através de decisões judiciais adversas à Autarquia Previdenciária, qual seja, o Instituto Nacional de Seguridade Social, conforme será demonstrado no Anexo Único.

Para compreender como se dá tal abuso de poder, iniciamos com uma breve análise do tema separação dos poderes, desde a sua configuração inicial com Locke e Montesquieu até os dias atuais. Em seguida, abordamos o tema Estado de Direito e o princípio da legalidade, tema intrínseco ao assunto.

Em seguida, abordar-se-á o tema da Previdência Social como um direito fundamental e inescusável, particularmente através do leading case a partir do qual se entendeu deste modo.

Um estudo do poder regulamentar no ordenamento jurídico nacional é o tema seguinte, para que se possa entender o alcance deste instituto, inclusive através de um estudo específico do significado do termo "fiel execução da lei".

Passo seguinte é a análise do tema de modo bastante específico: como e por quais meios se dá o abuso de poder, seguido de estudo acerca das maneiras que cada um dos três ramos do Poder Público, quais sejam, Executivo, Legislativo e Judiciário, tem para sanar tais abusos. A propósito, especificamente, do Poder Executivo, verificar-se-á que tal abuso constitui, em tese e segundo a Constituição Federal, crime de responsabilidade, não obstante não seja tipificado em lei penal.

Finalmente, verificaremos determinados casos concretos de abuso do poder regulamentar em matéria que chegaram ao Poder Judiciário, bem como as soluções que lhes foram dadas.


2 A TEORIA DA SEPARAÇÃO DO PODER

Usualmente, trata-se da teoria da separação/tripartição dos poderes ou da separação/tripartição das funções. Neste trabalho, tendemos a entender que o uso mais correto do termo seria referir-se sempre à separação do Poder, pelos motivos que veremos mais à frente, o que em nada invalida a utilização clássica do termo. No entanto, como este não é o escopo do trabalho, não será necessário, ou mesmo desejável, prender-se a tal minúcia, utilizando-se o conceito conforme o trata cada autor consultado, mantendo-se apenas, simbolicamente, o título do presente capítulo neste sentido mais específico.

Inicialmente, necessário ressaltar que o poder é, em si mesmo, uno: só há um Poder. Nesse sentido, vide FRANÇA (2000: p. 18):

"Hoje em dia não há propriamente uma separação de poderes, mas sim uma separação funcional do poder. O poder é uno e deve residir no povo, como determina o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, ao dizer que todo poder deve dele emanar. Mais que um princípio, junto à cidadania, a soberania popular constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito."

Tal fato é, em si mesmo, uma conseqüência lógica da própria separação de poderes: para que algo seja separado, fracionado, é necessário que seja um só. Neste sentido, GUSMÃO (2000: p. 363):

"A teoria da separação de poderes não deve ser confundida com a questão da divisibilidade ou indivisibilidade do poder do Estado. Poder estatal é uno, indivisível, manifestado nas funções executiva, legislativa e jurisdicional, cujo exercício pode ser atribuído a órgãos diferentes e independentes sem com isso fragmentar-se a autoridade ou o poder do Estado, pois, quando o Legislativo legisla é o Estado que o faz, da mesma forma, quando o Judiciário julga ou quando o Executivo executa ou administra. A distribuição dos poderes do Estado a órgãos diferentes não é da essência do poder estatal, mas exigência da segurança individual, bem como fruto da necessidade de descentralização de funções e serviços, tendo em vista o agigantamento do Estado e a complexidade de suas funções e serviços."

Deste modo, verifica-se que embora o poder seja em si mesmo uno, um dos fundamentos do Estado de Direito moderno é a teoria da separação dos poderes ou, como tem sido chamada atualmente, a teoria da separação das funções, conforme se verá. Tal denominação é bastante adequada, até mesmo por representar um resgate do conceito original de divisão do poder, conforme lembra LENZA (2008: p. 291):

"As primeiras bases teóricas para a ‘tripartição de Poderes’ foram lançadas na Antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, através da qual o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos".

Ocorre, porém, que até este momento o poder, embora conceitualmente divisível, era efetivamente concentrado nas mãos de uma só pessoa, que era o soberano. A evolução deste conceito somente viria a ocorrer com Montesquieu, que veio a propor, para efetivação da tripartição das funções, a tripartição do poder em diferentes órgãos, como lembra LENZA (2008: p. 291):

"O grande avanço trazido por Montesquieu não foi a identificação do exercício das três funções estatais. De fato, partindo deste pressuposto aristotélico, o grande pensador francês inovou, dizendo que tais funções estariam intimamente conectadas a três órgãos distintos, autônomos e independentes entre si. Cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos únicas do soberano. Tal teoria surge em contraposição ao absolutismo, servindo de base estrutural para o desenvolvimento de diversos movimentos como as revoluções americana e francesa, consagrando-se na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 16.

Por meio de tal teoria, cada Poder exercia uma função típica, inerente à sua natureza, atuando independentemente e autonomamente. Assim, cada órgão exercia somente a função que fosse típica, não mais sendo permitido a um único órgão legislar, aplicar a lei e julgar, de modo unilateral, como se percebia no absolutismo.

Tal conceito está intimamente ligado não apenas à idéia de um Estado de Direito, ou seja, de um Estado fundamentado na Lei e não no poder de um soberano; é mais amplo que isto, estando vinculado mesmo à idéia de Estado Democrático de Direito, vale dizer, a um Estado fundamentado na lei e onde o titular do Poder é, em última instância, o demos, o povo, e onde os eventuais abusos de poder por parte de cada um dos órgãos são devidamente reprimidos nos termos do denominado sistema de freios e contrapesos, como bem ensina DALLARI (2002: p. 219):

"O sistema de separação de poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à idéia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos. Segundo essa teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou são atos especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se a emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar a uma pessoa ou a um grupo em particular. Só depois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de agir discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos limites de sua respectiva esfera de competência.

Deste modo, vemos que a tripartição das funções pode ser entendida como uma atribuição de competências a cada um dos três órgãos para exercer uma parcela do poder que, em sua essência, é uno, só sendo "dividido" para fins de controle de uns órgãos pelos outros. Tal controle é a razão de tal separação, mas não é ele a principal razão: sua ultima ratio é permitir que, em um estado Democrático de Direito – vale dizer, em um Estado onde o povo é o verdadeiro titular do Poder – a vontade do povo seja realizada.

E é por este motivo que intitulamos este capítulo do presente trabalho como a separação do Poder: para visualizar a separação existente entre o exercício do Poder – separação esta que ocorre entre os órgãos do Estado – e a separação existente entre o exercício e a titularidade do mesmo Poder, o primeiro pertencente ao Estado e o segundo pertencente ao Povo.

É nesse mesmo sentido que leciona ATALIBA (2001: p. 122), ao discorrer sobre o princípio da legalidade, exarando lição essencial no escopo do presente trabalho:

"Se o povo é o titular da res publica e se o governo, como mero administrador, há de realizar a vontade do povo, é preciso que esta seja clara, solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo, exprime a sua vontade. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, estão: o primeiro obedecendo a si mesmo, e o segundo ao primeiro. O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se à sua vontade, expressa na lei. O Judiciário, aplicando a lei aos dissídios e controvérsias processualmente deduzidas perante seus órgãos, não faz outra coisa senão dar eficácia à vontade do povo, traduzida na legislação emanada por seus representantes."

Tal excerto doutrinário tem o condão de, através de uma interpretação bastante simples de seu sentido, entender que o sentido último da tripartição é, através de uma junção com o princípio da legalidade, permitir o controle do Poder pelo Poder: afinal, se os Poderes são "harmônicos e independentes entre si", nos termos do art. 2º da Carta Política, não é menos verdade que estão, todos eles, submetidos a um poder maior, extraído do Princípio da Legalidade: o Império da Lei ou, contemporaneamente, ao Império da Juridicidade, esta mais ampla que a lei e compreendendo todo o sistema normativo, particularmente e supremamente o sistema constitucional.

Claro está, ainda, que se os Poderes constituídos estão submetidos ao controle da lei, outro não é o destino do próprio povo, o qual também há de obedecer à lei, conforme o mesmo ATALIBA (2001: pp. 122-123):

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"O evolver das instituições publicísticas que informam a nossa civilização culmina com a consagração do princípio segundo o qual ‘ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei’ (art. 5º, II), que, no nosso contexto sistemático, aparece como a conjugação do princípio da supremacia da lei e exclusividade da lei como forma inovadora e inaugural (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello) da vontade estatal. Daí que só a lei obrigue e nada além da lei o possa fazer. Em conseqüência, nenhuma expressão de vontade estatal será compulsória se não amparada em lei. Se só a lei obriga, tudo que não seja lei não obriga, salvo as exceções expressas, que devem ser restritivamente interpretadas. Mas a lei, no nosso sistema, não é só o ato formal do Poder Legislativo assim batizado. Para ser válida, a lei brasileira há de ser abstrata, isonômica, impessoal, genérica e irretroativa (quando crie ou agrave encargos, ônus, múnus).

É este, em última instância, o sentido mesmo do presente capítulo: demonstrar como se dá a relação entre o princípio da separação do poder e o princípio da legalidade. pedra fundamental do Estado Democrático de Direito.

Tema de fundamental importância, no que diz respeito à separação dos poderes, é a questão da incapacidade, por parte tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, de garantir um cumprimento racional dos preceitos constitucionais, conforme afirma Andreas Krell, citado por ESTEVES (2008: p. 79).

Isto porque, de um lado, o Poder Executivo não tem recursos para atender a todas as demandas que lhe são apresentadas; e, por outro lado, o Poder Legislativo não é, em função de sua característica de colegiado, dotado da rapidez necessária para assegurar tais direitos. Tal tema adquire importância ainda maior quando se verifica que o Poder Legislativo não tem o hábito de exercitar a competência que lhe é atribuída para sustar os atos do Poder Executivo que se verifique serem exorbitantes do poder regulamentar; deste modo, resta apenas o Poder Judiciário como competente a realizar o controle de tais abusos.

Critica-se, porém, determinadas atuações do Poder Judiciário, com fundamento na teoria da separação dos poderes, sob a alegação de se tratarem as mesmas de interferências indevidas deste nas competências do Poder Executivo, e alegando ainda uma suposta atuação política por parte do Poder Judiciário.

Neste sentido, em crítica à utilização do princípio da separação dos poderes como maneira de evitar o controle daqueles Poderes pelo Poder Judiciário, escreve ESTEVES (2008: p. 74):

"Todos os órgãos estatais, nos quais se inclui o Poder Judiciário, têm função política. A argumentação de que o Judiciário é um órgão estatal incumbido de uma função meramente jurisdicional, incompatível com a atividade política atribuída ao Executivo e ao Legislativo -, e que por esse motivo deve permanecer estritamente vinculado a uma interpretação que ‘revele’ o direito contido nos pressupostos legais, doutrinários e jurisprudenciais, dando-lhe uma característica de neutralidade diante das posições políticas que envolvem o conjunto da sociedade -, somente teria sentido em uma construção jurídico-ideológica que tentasse esconder a existência da discricionariedade da jurisdição. Tanto a lei quanto as posições doutrinárias e a jurisprudência encontram-se formuladas com base em posicionamentos ideologicamente definidos. Mesmo um posicionamento doutrinário que nega esse viés político da jurisdição o faz mantendo posicionamento de ordem político-ideológica."

Verifica-se a inconsistência do argumento de interferência na separação dos poderes, tanto pelo argumento apresentado pelo autor, quanto pelo apelo a outro princípio, tido como princípio fundamental no panorama constitucional brasileiro, qual seja, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, previsto no art. 5º, inc. XXXV da Constituição Federal: de fato, e ao menos aparentemente, uma aplicação rígida da teoria da separação dos poderes teria o condão de deixar à míngua de qualquer possibilidade de tutela jurisdicional o cidadão que se sentisse vítima de indevido abuso pelo Poder Executivo, incluídos aí os atos decorrentes de eventual abuso da competência regulamentar.


3 O ESTADO DE DIREITO E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Neste capítulo, pretendemos abordar o princípio da legalidade como sendo algo ínsito ao Estado de Direito. Para tanto, a idéia fundamental consiste em seguir uma linha baseada nas relações entre ambos os conceitos.

Para José Afonso da Silva (SILVA: 2004, p. 116), são características básicas do Estado de Direito:

[...] ‘submissão ao império da lei’, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo cidadão; ‘divisão de poderes’, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; enunciado e garantia dos direitos individuais (grifo do autor).

BIELSA (1964, p. 83-86) faz importante explanação acerca da distinção entre lei formal e lei material, sendo esta distinção fundamental no âmbito do presente trabalho:

"A legislação expressa, em geral, a idéia de um conjunto de leis de um Estado (v.gr., da Nação ou das províncias), e de uma maneira mais especial, o conjunto das leis relativas a um ramo do direito positivo (v. gr., civil, comercial, processual, administrativo, etc), o que denota sempre uma idéia de unidade (de conjunto). Porém quando se dá a noção de lei, este conceito pode tomar duas acepções diferentes, pelo que importa uma distinção preliminar que convém assinalar. Tais acepções são: a) lei em sentido material, conceito objetivo da norma jurídica; b) lei em sentido formal, como um ato legislativo que tem forma constitucional de lei. A distinção é clara. A lei em sentido material ou substancial (critério objetivo) está determinada pela natureza da atividade do Estado e não pelo órgão do qual ela emana. E assim, ao enumerar as fontes do direito administrativo, visualizamos os regulamentos ditados pelo Poder Executivo no campo das leis materiais e que são, não obstante, atos administrativos. Ao contrário, a lei em sentido formal é aquela que emana do Poder legislativo, porém uma lei desta natureza pode não conter norma jurídica; é, então, a lei pela forma constitucional que a reveste.

(…)

Sobre a concepção da lei, há na doutrina uma certa coincidência conceitual; considera-se, or principio, a lei como a regra geral e abstrata, com a qual se expressa a idéia de objetividade e impessoalidade da norma legal. Estes caracteres têm evidentemente seu fundamento nos princípios políticos, sendo comuns os seguintes a supremacia do Estado, órgão de interesse geral; a igualdade dos habitantes situados na norma jurídica do Estado, e por isto a igualdade perante a lei, a qual, por ser necessariamente estabelecida no interesse geral, e pela vontade geral, é obrigatória. (tradução nossa)

Desta explanação realizada pelo doutrinador portenho, impende extrair dois conceitos essenciais, quais sejam:

a)a classificação da lei pelo critério de sua origem – lei material reconhecida pela atividade material do Estado (critério objetivo), e lei formal quando emanada do Poder Legislativo (critério subjetivo);

b)e, como características da lei, tanto em sua dimensão material quanto formal, esta deverá ser: geral, abstrata, impessoal, isonômica, decorrente do interesse geral e da vontade geral.

A junção destes dois conceitos é o que vem a formar o núcleo da idéia de princípio da legalidade, legalidade esta que é ínsita ao Estado Democrático de Direito, como explica CANOTILHO (2003: p. 251):

"O princípio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do direito público e a doutrina da separação dos poderes, foi erigido, muitas vezes, em ‘cerne essencial’ do Estado de Direito, pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, sobretudo dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado"

Para DALLARI (2002: p. 151), o Estado Democrático de Direito baseia-se em três pontos, a saber:

"A supremacia da vontade popular, que colocou o problema da participação popular no governo, suscitando acesas controvérsias e dando margem às mais variadas experiências, tanto no tocante à representatividade, quanto à extensão do direito de sufrágio e aos sistemas eleitorais e partidários; a preservação da liberdade, entendida sobretudo como o poder de fazer tudo o que não incomodasse o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem qualquer interferência do Estado; a igualdade de direitos, entendida como a proibição de distinções no gozo de direitos, sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais."

ATALIBA (1981: p. 185) afirma, ressaltando a absoluta importância, especificamente no direito brasileiro, do princípio da legalidade:

"No contexto do nosso sistema constitucional, o modo exigente como foi posto o princípio da legalidade melhor faz valorizado o conceito de estado de direito, tal como concebido por Balladore Pallieri, ao defini-lo como "aquele que se submete à lei e à jurisdição independente e imparcial (Diritto Costituzionale, 3ª ed., Milão, Giuffrè, p. 85).

Efetivamente – é observação do notável constitucionalista de Milão – de muito pouco valeria o estado obedecer à lei, se pudesse manipulá-la seja na elaboração, seja na aplicação." (grifamos)

Grifada a última frase da citação, essencial no escopo do presente trabalho, para ressaltar o papel importante do momento da aplicação da lei, tarefa esta cumprida, no que diz respeito ao Direito Administrativo, sob a égide não apenas da lei em si, mas também do poder regulamentar do Poder Executivo.

Neste mesmo contexto, o mesmo doutrinador cita Pontes de Miranda, lembrando a sua criação do termo legalitariedade, utilizado para "distinguir o suave e programático princípio do direito constitucional comparado e sublinhar a rigidez, estreiteza e imperatividade com que nós o consagramos" (idem, ibidem, p. 185)

Claro que a questão da supremacia da lei como valor absoluto encontra temperamentos, particularmente no que diz respeito à evolução da sociedade como um todo. Cabral de Moncada (MONCADA: 2002, p. 11) afirma que:

"A preferência da lei continua a significar o predomínio do poder legislativo de base parlamentar no contexto dos poderes do Estado. Muito embora não se possa imputar nos nossos dias ao legislativo e ao executivo a mesma posição relativa do século passado, parece claro que o significado essencial da preferência da lei continua inalterado. É pois sobretudo a reserva da lei que se alterou e através dela o princípio da legalidade. A alteração deu-se em várias direcções. Desde logo, a introdução no conteúdo legislativo de novos processos de regulamentação das questões, sem retirar ao dispositivo legislativo o seu lugar na hierarquia das fontes e a sua importância como manifestação inicial do poder, roubou-lhe algo do seu caráter preceptivo. A lei limita-se com freqüência a fornecer um quadro geral inoperante enquanto tal ou um repositório de directivas inexeqüíveis a pedir intervenções secundárias. Em boa verdade, a dificuldade das questões a tratar e a incidência imediata dos conflitos de interesses sobre o legislador levam-no por vezes a uma compreensível atitude de retraimento que diminui a capacidade operativa da lei. Também por esta via se alterou profundamente a posição da administração perante a lei." (grifamos)

ALMEIDA, no longínquo ano de 1959, já observava o abuso do poder regulamentar como uma constante no ordenamento jurídico nacional como "um mal da terra e dos tempos" (p. 29); afirmava ainda

"Dos Poderes do Estado, é o Executivo o que se apresenta com maior continuidade e fixidez, dentre os três Poderes. O Legislativo dá-nos as leis e o Judiciário distribui justiça. Porém, um e outro não atuam ininterruptamente junto à massa de governados, por modo que sintam de perto os ditames das necessidades sociais. Lei e sentença, ainda quando admiravelmente apresentadas, só por feliz acaso podem descobrir o caminho do que convém à solução de problemas. Nasce disto uma vantagem para o Executivo, que é a experiência contínua. Mas, desta vantagem, também, nasce um adiantamento de soluções constantes, as quais, com tardança, vêm a ser adotadas nas normas jurídicas formais. Esse adiantamento, seja de má-fé, seja de boa-fé, surge ora mal disfarçado, ora bem disfarçado nos regulamentos, transformados parcialmente em leis materiais [01].

(...)

Essas circunstâncias, estimuladas pela histórica tendência dos chefes do Executivo, qual a de interferir insensivelmente em matérias estranhas à sua competência, como criaram a psicologia daquele que, para empregar uma metáfora, de usar o cachimbo, ficou com a boca torta." (grifos nossos) (ALMEIDA, 1959, p. 29)

A circunstância de compreender tal "psicologia do Executivo" não impediu, contudo, o mesmo doutrinador de entender que a atividade constituísse não apenas abuso, mas também ilícito propriamente dito:

"De onde se pode dizer que, emanando-as [normas jurídicas], o Executivo realiza atividade ilícita, porquanto os atos administrativos, que, tendo a forma de regulamentos, contêm normas jurídicas, são ilícitos, visto resultarem de uma simulação de que resulta a obtenção de um fim diverso daquele que é atribuído ao regulamento." (grifos nossos, exceto quanto ao último, original do autor) (ALMEIDA, 1959, p. 31)

Vivesse o vetusto jurista em nossa contemporânea "Era dos Direitos", como a denominou Norberto Bobbio, certamente consideraria ainda mais grave que o regulamento atingisse direitos previstos diretamente na Carta Magna e que podem, assim, ser compreendidos como fundamentais, irrenunciáveis e inalienáveis, a qualquer pretexto; é o que nos lembra Francisco Campos, apud BARROSO (2002: p. 181):

"Por maior a amplitude que se queira atribuir ao poder regulamentar da administração, esse poder não está apenas adstrito a operar intra legem e secundum legem, mas não poderá, em caso algum e sob qualquer pretexto [02], ainda que lhe pareça adequado à realização da finalidade visada pela lei, editar preceitos que envolvam limitações aos direitos individuais. Este domínio é, de modo absoluto, reservado à legislação formal, ou aos preceitos jurídicos editados pelo Poder Legislativo."

Não é assim, porém, que costumam agir os detentores do poder. Não discorrendo sobre o poder regulamentar de modo específico, mas sobre a legislação tributária, MARTINS, (apud MARTINS: 2009, p. 169), afirma que:

"Os beneficiários do tributo – os governantes – mesmo sendo também contribuintes, são seus grandes receptores e destinatários, motivo pelo qual, embora com uma visão não tão sectarista quanto os agentes fiscais encarregados da cobrança, não deixam de exaltar o tributo e criar legislação cada vez mais apenadora, no mundo inteiro, para assegurar o cumprimento das obrigações fiscais impostas, sem grande contestação." (MARTINS, 2009, p. 169)

Ou seja, parece ser um consenso que os governantes, desde longo tempo, têm o hábito de "apenar" os governados, de modo abusivo, através do uso do poder normativo, e não apenas através do poder regulamentar strictu sensu. Tal hábito vem de longe, conforme já visto antes, já tendo sido designado de um "mal da terra". TÁCITO afirma, a respeito da origem do abuso de poder:

"O abuso de poder surge com a violação da legalidade, pela qual se rompe o equilíbrio da ordem jurídica. Tanto da legalidade externa do ato administrativo (competência, forma prevista ou não proibida em lei, objeto lícito) como da legalidade interna (existência dos motivos, finalidade)." (TÁCITO, 1959, p. 28)

O mesmo autor cita (1959, p. 29) a lei 221/1894, que previa a chamada "ação sumária especial para anulação dos atos administrativos", nos moldes do que seria hoje o mandado de segurança, ressaltando mais uma vez a existência, desde muito tempo, da necessidade de tal controle dos atos administrativos no país.

Posto este panorama, e visto como um todo, porém, é de se notar, de passagem, que o abuso do poder regulamentar não parece ser de todo intencional, mas sim o resultado de um "agigantamento" do Poder Executivo, com um correspondente enfraquecimento do Poder Legislativo. Esta tendência não se dá apenas no Brasil, mas em todo o mundo, existindo até mesmo teses como a da deslegalização de determinadas matérias atualmente submetidas à reserva da lei. Isto, porém, seria matéria para outro trabalho, não cabendo nos estreitos limites desta monografia; não poderia, porém, deixar de ser citada a presente questão.

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Sobre o autor
Fábio Roberto Sefrin

Físico. Funcionário Público Municipal. Estudante de Direito na Universidade Estadual de Londrina - PR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEFRIN, Fábio Roberto. Abuso do poder regulamentar no Direito Previdenciário.: Doutrina e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18194. Acesso em: 22 nov. 2024.

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