8. O CONCUBINATO E OS ALIMENTOS
Já se sabe que o relacionamento concubinário não pode ser reconhecido como entidade familiar por atentar contra o princípio da monogamia, tampouco a lei atribui qualquer direito aos concubinos. Os concubinos não possuem direito a parcela dos bens de seus amásios se não tiverem contribuído efetivamente para a construção do respectivo patrimônio, salvo na hipótese de casamento ou união estável putativos, quando um dos concubinos ignora viver em adultério. Inclusive, a legislação vigente macula de anulabilidade a transferência gratuita de patrimônio (doação) entre os concubinos e a deixa testamentária aos concubinos e não consagra o concubino como beneficiário da Previdência Social.
A dúvida reside na possibilidade de concessão de alimentos entre os concubinos ou entre o concubino supérstite e o espólio do seu amante. Se o concubinato não é entidade familiar e não gera qualquer vínculo entre seus partícipes poderia haver obrigação alimentar entre concubinos?
Para responder ao questionamento supra faz-se necessária uma breve exposição sobre os fundamentos da obrigação alimentar e a legislação relacionada ao tema.
Segundo o eminente jurista Yussef Saide Cahali [50], o ser humano é um ser carente com excelência necessitando do apoio dos responsáveis por sua geração durante todo o período de seu desenvolvimento físico e mental. Atingindo o seu desenvolvimento completo, em princípio o adulto assume a responsabilidade por sua subsistência. Todavia, certas circunstâncias, permanentes ou temporárias, podem colocar o adulto diante de uma impossibilidade de garantir seu sustento.
Ainda segundo o renomado autor, a legislação foi concentrando o dever de prestar alimentos nas pessoas que se encontrassem mais próximas entre si em razão de um particular vínculo afetivo. Guilherme Gama aponta que de longa data reconhece-se a existência de um dever moral da pessoa humana de prestar assistência ao próximo, que se juridicizou [51].
O professor Orlando Gomes define os alimentos como prestações para satisfação das necessidades vitais de quem não pode provê-las por si. A obrigação alimentar, segundo o civilista, pode resultar da lei, do testamento, de sentença judicial ou de contrato. Ensina, ainda, que são pressupostos da obrigação de prestar alimentos: a) a existência de determinado vínculo de família entre o alimentando e a pessoa obrigada; b) o estado de miserabilidade do alimentando e; c) as possibilidades econômico-financeiras da pessoa obrigada. [52]
A legislação vigente adota critério objetivo para definir o dever de prestar alimentos. O Art. 1.694 do CC, corroborado pela legislação esparsa, dispõe que "Podem os parentes, cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender as necessidades de sua educação". [53]
Da inteligência do artigo acima se depreende que a lei não prevê o dever de prestar alimentos entre os concubinos e adota como critério para definição da obrigação alimentar o vínculo familiar ou de parentesco entre alimentante e alimentando. Existe obrigação alimentar dos ascendentes para com os descendentes e vice versa, bem como entre cônjuges ou companheiros, ainda que separados ou divorciados, desde que preenchidos os requisitos legais para tal. [54]
Guilherme Gama [55] e Maria Helena Diniz [56] classificam ou alimentos em naturais ou necessários (aqueles indispensáveis à própria subsistência da pessoa do credor, abrangendo verbas destinadas à alimentação, saúde, moradia e vestuário) e em civis ou côngruos (funcionalizados a atender outras necessidades de ordem intelectual, psíquica e social, permitindo a preservação da vida de modo compatível com as condições sociais dos sujeitos do direito de alimentos.
Adotando tese jurídica questionável, alguns tribunais vêm assegurando a prestação de alimentos aos concubinos sob o argumento de que o relacionamento concubinário equipara-se à entidade familiar. Desta forma, o cônjuge adúltero é obrigado a prestar alimentos ao seu consorte por supostamente ter com ele constituído entidade familiar nos moldes da união estável e do casamento.
Neste sentido:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. CONCUBINATO. ART. 1.727 DO CC/02. DIREITO A ALIMENTOS. ART. 1.694 DO CC/02.
Ainda que o relacionamento mantido entre os litigantes seja tido como um concubinato, na forma do Art. 1.727 do CC/02, também este se enquadra na categoria de entidade familiar a ensejar o direito de alimentos entre os concubinos, se presente a afetividade entre o casal, enquanto tal relacionamento perdurou. E a afetividade, no caso, existia entre os litigantes, devendo ser mantida a pensão alimentícia na forma como fixada na sentença. A omissão contida no Art. 1.694 do CC/02 não afasta a concessão do direito em discussão. Precedentes doutrinários e jurisprudenciais. Apelação desprovida.
(TJRS - APELAÇÃO CÍVEL Nº 70032101727- OITAVA CÂMARA CÍVEL COMARCA DE URUGUAIANA- C.N.P.S.APELANTE C.R.G.APELADA)
(grifo nosso)
Ocorre que como demonstrado nos capítulos anteriores é impossível o reconhecimento do concubinato como entidade familiar por completa desobediência ao princípio da monogamia, vigente no âmbito do Direito de Família brasileiro. Mesmo assim, não se pode ignorar a situação de completa dependência financeira que alguns concubinos mantêm uns para com os outros, em geral a mulher para com o homem.
Destarte, ainda que se reconheça a ausência de tutela jurídica do concubinato e não se pode ignorar que em muitos casos o mesmo pode durar anos, ou até mesmo décadas, ficando a mulher totalmente desamparada economicamente no caso de fim do relacionamento concubinário. Logo, como ficaria a situação da mulher que depende financeiramente do seu concubino e em nada contribuiu efetivamente para a construção do patrimônio comum deste? A lei não traz qualquer espécie de garantia para os concubinos e a jurisprudência não pode e nem deve estar alheia a esta situação.
Nesta hipótese, reconhecer o concubinato como entidade familiar para fins de garantir alimentos á concubina é uma discrepância que não deve ser admitida. É preciso trilhar outros caminhos com vistas a não deixar a concubina em situação de completo desamparo material em caso de término do concubinato.
Se de um lado há um cônjuge enganado que não pode ter seu patrimônio desfalcado pelas atitudes de má-fé do(a) seu(ua) cônjuge ou companheiro(a) adultero(a) de outro pode haver um concubino que passou anos ou décadas de sua vida na dependência financeira de seu amante e de uma hora para a outra perdeu sua única fonte de subsistência, seja pelo fim do relacionamento concubinário ou pelo óbito do concubino. Cuida-se de uma situação delicada e que merece especial cautela do aplicador do Direito.
Não se pode exigir do cônjuge traído o desfalque de seu patrimônio em favor de um relacionamento paralelo ao qual não deu causa.
Ambos os concubinos são culpados pela infrigência do dever de fidelidade. Cometem ilícito contratual já que o casamento possui natureza de contrato especial do Direito de Família e a fidelidade é um dever inerente ao mesmo.
Acontece que quando um dos concubinos mantém o outro em situação de completa dependência financeira acaba formando um vínculo que embora não esteja previsto explicitamente na norma gera uma obrigação moral de sustento. Ora, se uma concubina passa 20 (vinte) ou 30 (trinta) anos de sua vida sendo provida integralmente por seu parceiro e em um dado momento este a abandona não é justo nem plausível que não haja qualquer obrigação de manutenção entre ambos.
Não se está aqui pregando o reconhecimento do concubinato como entidade familiar, mas apenas a existência de um vínculo entre os concubinos que consiste no dever provisório de sustento, caso um dos amásios viva por anos na dependência financeira do outro e subitamente deixe de ser provido por seu amante.
Trata-se de uma obrigação fora do campo do Direito de Família e que possui como fato gerador a criação do vínculo de dependência da concubina pelo cônjuge traidor. Assim, se um concubino cria uma situação de completa dependência financeira da concubina, provendo-a completamente durante anos deve ele ser responsável pelo pagamento de alimentos necessários à mesma até que esta consiga outros meios de subsistência.
Este dever alimentar seria similar ao resultante do dever de reparação por ato ilícito, previsto no Direito Civil.
Logicamente não se pode impor o pagamento de alimentos à concubina para que esta mantenha o mesmo padrão de vida da família nuclear do concubino, uma vez que a mesma tinha plena ciência da existência do impedimento matrimonial que maculava a sua união.
Giza-se que os alimentos aqui mencionados, aos quais deveria fazer jus à concubina, são os estritamente necessários a sua manutenção durante o período necessário para que esta possa providenciar o seu próprio sustento. Não se defende a indenização por serviços domésticos prestados, mas sim o mero reconhecimento de que em sendo a concubina completamente dependente financeiramente do seu consorte deve este continuar a prover suas necessidades básicas até que aquela adquira capacidade de prover-se.
Já entendimento jurisprudencial neste sentido.
"APELACAO CÍVEL. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE CONCUBINATO IMPURO. PARTILHA DE BENS. AUSENCIA DE PROVA DE CONTRIBUIÇÃO PARA AQUISIÇÃO DO PATRIMÔNIO. ALIMENTOS. DEPENDÊNCIA ECONÔMICA DA CONCUBINA DEMONSTRADA. INDENIZAÇÃO POR SERVIÇOS PRESTADOS. IMPOSSIBILIDADE. Mesmo na relação de concubinato (Art. 1727 CC), faz jus à alimentos a mulher que, por mais de quarenta anos, foi sustentada pelo homem, tendo abdicado de sua profissão em razão do relacionamento. No concubinato ocorrem os efeitos patrimoniais de uma sociedade de fato, sendo imprescindível, para que haja partilha, a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio . Em uma relação afetiva não há como se vislumbrar um caráter econômico, mensurando-se monetariamente os cuidados e dedicação que um destina ao outro, equiparando-os a ‘serviços prestados’. Não se trata de ‘serviços’, mas de troca de afeto, amor, dedicação, companheirismo. RECURSO DO RÉU IMPROVIDO. UNÂNIME. RECURSO DA AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO, POR MAIORIA." (Apelação Cível Nº 70026301937, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 16/10/2008).
(grifos nossos)
O tema ainda não está pacificado, havendo entendimentos no sentido da impossibilidade de concessão de alimentos à concubina.
Assegurar à concubina que dependa economicamente do seu parceiro o direito a alimentos necessários durante o período em que esteja se adaptando e providenciando outros meios de subsistência não atenta contra o princípio da monogamia. Reconhecer o dever alimentar não implica, necessariamente, em reconhecer vínculo familiar entre alimentante e alimentando.
Cuida-se de uma obrigação no campo da moral que merece ser consagrada por garantir a dignidade da pessoa humana dos concubinos. Ao infringir o dever de fidelidade os cônjuges ofendem o princípio constitucional da monogamia no Direito de Família e devem arcar com as conseqüências negativas de tal ato. Todavia, não deixam de serem pessoas que merecem viver com dignidade.
9. POSSIBILIDADES DE TUTELA JURÍDICA DO CONCUBINATO ANTE O PRINCÍPIO DA MONOGAMIA
A ausência de regulamentação do concubinato é fato que causa insegurança jurídica para toda a sociedade. Tanto para os envolvidos no relacionamento concubinário, para os cônjuges ou companheiros traídos, seus filhos e para o próprio Estado a incerteza acerca das conseqüências de um fato social tão freqüente é negativa e preocupante.
Como visto, demandas envolvendo relacionamentos concubinários são freqüentes e os tribunais não possuem entendimento consolidado acerca do tema.
Em não havendo norma ou súmula vinculante disciplinando os efeitos (negativos e positivos) do concubinato qualquer sujeito envolvido direta ou indiretamente no relacionamento concubinário pode ser surpreendido por uma decisão judicial completamente contrária ao princípio da monogamia e que surtirá efeitos até a sua revisão pelo respectivo tribunal ad quem.
Faz-se urgente a regulamentação do tema para disciplinar os efeitos do concubinato de forma positiva e negativa. Se aos concubinos não são assegurados direitos patrimoniais, previdenciários ou sucessórios deve a lei explicitamente assim o dizer para garantir à sociedade a segurança jurídica que lhe é devida.Na hipótese de se assegurar ao concubino que dependa economicamente de seu parceiro o direito a percepção de alimentos necessários à sua subsistência deve haver a maior cautela possível para que não haja infração ao princípio da monogamia.
Atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 276/2007 [57] que tenta regulamentar o concubinato. Propõe a modificação do Art. 1.727 do CC/2202 para que passe a versar da seguinte maneira:
"Art. 1.727 - As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar e que não estejam separados de fato, constituem concubinato, aplicando-se a este, mediante comprovação da existência de sociedade de fato, as regras do contrato de sociedade.
Parágrafo único. As relações meramente afetivas e sexuais, entre o homem e a mulher, não geram efeitos patrimoniais nem assistenciais."
Maria Helena Diniz afirma que o parecer de Vicente Arruda não aprovou o mencionado projeto sobre o argumento de que não acrescenta nenhum elemento novo ao conceito de concubinato.
Ainda que o projeto acima não traga grandes inovações ao conceito de concubinato e seja criticável em partes, a sua aprovação traria maior segurança jurídica aos envolvidos em um relacionamento adulterino. Um porque impediria definitivamente o reconhecimento de efeitos patrimoniais ao concubinato adulterino, unificando a atual conflituosa jurisprudência relativa ao assunto e duas pois o teor da súmula 380 do STF não seria o único elemento de definição dos efeitos patrimoniais do concubinato.
Contudo, o projeto de lei é criticável na medida em que afirma não haver qualquer efeito assistencial do concubinato, com o qual discorda-se. Atribuir ao concubinato de longa duração, no qual um dos partícipes depende financeiramente do outro, efeito assistencial durante o período de readaptação do concubino mais carente não se trata de uma ofensa ao princípio da monogamia, tampouco tornaria o concubinato entidade familiar.
A regulamentação do concubinato, tão postergada pelo legislativo, é necessária para garantir segurança jurídica aos envolvidos nesta espécie de relacionamento. A lei não pode ficar alheia a um fato social tão abrangente, deixando ao crivo do Poder Judiciário a análise dos casos concretos sem garantia de uniformidade no tratamento a ser dado.
É fato que o princípio da monogamia deve ser mantido no ordenamento jurídico pátrio por apresentar diversas vantagens, como já exposto. Todavia, negar a existência do concubinato adulterino não parece ser medida das mais válidas para afirmação da monogamia.
A ausência de normas relativas ao concubinato é uma ofensa ao princípio da monogamia. Na medida em que os julgadores analisam os casos concretos de acordo com seu convencimento pessoal, implicando em alguns casos no reconhecimento do pluralismo familiar, a monogamia acaba sendo mitigada.
Nas questões referentes ao Direito de Família a norma deve ser sensível e maleável o bastante para garantir a paz social, o menor dano psicológico possível e a estabilidade das relações familiares. No caso do concubinato adulterino garantir qualquer direito na esfera patrimonial aos concubinos seria desestabilizar as famílias e causar dano psicológico ao cônjuge ou companheiro traído bem maior do que o já causado pelo adultério de seu parceiro. Em contrapartida, deixar os concubinos que dependem financeiramente de seus amásios sem qualquer amparo no caso de término da união concubinária é valorizar a torpeza do cônjuge traidor e punir unilateralmente um dos adúlteros privando-o de verba alimentar que lhe é essencial.
Nos casos de término do relacionamento concubinário o concubino que sustentava seu amásio deverá mantê-lo durante o período de sua readaptação financeira. E isto é deverás benéfico a monogamia uma vez que indiretamente desestimula a reincidência adulterina. O cônjuge adúltero que se vê obrigado a pagar alimentos à sua ex-concubina certamente pensará duas vezes antes de constituir relacionamento concubinário com outrem.
Na hipótese de falecimento do concubino que provia o(a) seu(ua) amante a questão é mais delicada. O concubinato não pode ser favorecido em detrimento da família nuclear do cônjuge traidor em matéria sucessória ou previdenciária, até porque a lei veda a instituição do concubino como herdeiro ou legatário. A solução mais acertada, neste caso, consistiria na atribuição do direito a alimentos necessários para a concubina apenas quando a hipotética meação do cônjuge, excluída a reserva da legítima, pudesse supri-los.
A normatização do concubinato é questão delicada e necessária. Pensar em uma sociedade que se rege pelo princípio da monogamia nas relações afetivas é pensar em uma sociedade onde este postulado pode ser contrariado. As leis existem para se cumpridas e porque as pessoas as descumprem. Ao uma norma jurídica o legislador deve preparar-se para o seu eventual descumprimento e criar sanções e soluções para futuros embates.
Ao analisar o crime de furto, por exemplo, o legislador previu o direito de reparação por ato ilícito. Logo, a vítima do crime de furto pode requerer ressarcimento pelos danos materiais e morais sofridos em razão do ilícito e o autor do fato poderá ser condenado a cumprir pena prevista na lei penal. O mesmo não ocorre com o concubinato.
Quem pratica o concubinato não tem ciência das conseqüências de tal ilícito contratual e por outro lado a "vítima" (cônjuge traído) pode até ser penalizada pelo ilícito de seu companheiro com a diminuição de seu patrimônio por uma decisão judicial que entende cabível o pluralismo familiar. É isso que a ausência de normatização traz.
A monogamia deve e precisa ser preservada, mas para tanto se faz necessária uma coerente e suficiente normatização do concubinato adulterino.