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Considerações sobre a ingerência interestatal no cenário jurídico internacional

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06/01/2011 às 13:22
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3 SOBERANIA E INGERÊNCIA: coexistência NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Pelo exposto até aqui, é inegável a percepção de que o conceito clássico de Soberania não recebe mais no cenário internacional o mesmo tratamento de outros tempos. Igualmente, é fato que o aparecimento de situações que demandam o uso de um Direito de Ingerência já não se furtam aos olhos dos Estados e Organizações Internacionais.

Destarte, realizando a aproximação necessária entre os dois conceitos cernes deste estudo, a lição de J.J. Gomes Canotilho parece ser de relevância ímpar para que se possa tecer argumentos no sentido de acautelar as conclusões acerca da prevalência de um Direito de Ingerência em detrimento da Soberania estatal. Nesta linha de raciocínio ensina o mestre de Coimbra que:

"A relativização do princípio da soberania interna pela ampliação do conteúdo do conceito de ameaça à paz poderá ser uma das exigências de uma "nova ordem internacional", mas não é certo que através de uma transposição de planos – intervenções militares por ameaça à paz em vez de intervenções humanitárias – se dêem os passos decisivos a favor do "direito de urgência humanitária." (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14)

E, demonstrando sua grande preocupação com o desenvolvimento do tema, o autor ainda aduz que a "nova ordem mundial através de intervenções" tem de estruturar-se como "Estado de direito" ou como "comunidade" que observa o the rule of the law. (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14).

Pode-se perceber que Canotilho preconiza a necessidade de um Direito de Ingerência reconhecido oficialmente pela sociedade internacional, que seja o guardião das normas regulamentadoras dos atos de ingerência. Isto se revela no trecho abaixo, onde o autor afirma que:

"A dimensão puramente formal da autorização para a ingerência – humanitária ou militar – não é fundamento suficiente para assegurar a legitimidade da mesma. Ainda que não haja um "último guardião" para assegurar a legalidade das deliberações do Conselho de Segurança, existe pelo menos a "racionalidade material" que a comunidade internacional exige às ações dos seus órgãos. Uma "crise humanitária" não se inventa, é necessário existirem situações existenciais coletivas quando não seja possível manter o padrão mínimo humanitário." (CANOTILHO, apud PESTANA, 2004, p.14).

Feitas tais considerações, o cenário de mudanças que se impõe resta ancorado nas transformações que a comunidade internacional vivenciou a partir do início do século XX e que ainda nos dias atuais se fazem presentes, e, em constante mutação, corroborando o pensamento de Norberto Bobbio de que os direitos não nascem todos de uma vez, mas quando devem ou podem nascer.

E, nesta torre de idéias, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem contribuiu de forma decisiva para a configuração desta ordem diferenciada, a partir do esforço de mobilizar a comunidade das nações em torno de um conjunto de direitos e liberdades que, a serem respeitados, evitariam o regresso ao poder dos regimes fascistas e a repetição das atrocidades que acarretaram a morte de quase sessenta milhões de pessoas.

O quadro desenrolado leva a comunidade internacional a se adaptar a uma nova realidade, onde os Estados gradativamente adotam uma orientação balizada pelos conceitos de interdependência e solidariedade.

A consequência natural de todo o processo de incremento das relações internacionais, apresentado até agora é a gradual limitação do poder soberano dos Estados, que, por todo o já exposto, não podem abrir mão da atuação em conjunto com seus pares.

Diante de um quadro aparentemente irrevogável, onde a garantia dos direitos humanos é reconhecida como premissa máxima a ser buscada pelas nações é crescente a preocupação acerca do modo como esta tarefa alcança êxito. Assim, surgem entre os internacionalistas correntes que se posicionam em lados opostos no que concerne à celeuma da (i)licitude de um instituto que ratifique a ingerência, via da intervenção, em situações de proteção e promoção dos direitos humanos, sobrepondo-se à Soberania estatal.

Celso D. Albuquerque Mello argumenta que, muito embora a sociedade internacional demande a proteção desses direitos, não há licitude nas intervenções humanitárias, aduzindo que:

"Nenhuma organização internacional, seja ela qual for, poderá intervir para a defesa dos direitos do homem. Tais direitos são encarados como tendo a sua aplicação e fiscalização fazendo parte da jurisdição doméstica dos Estados. A própria ONU só poderia intervir se a sua violação acarretasse uma ameaça à paz e à segurança internacionais. O fundamento de uma ação desta natureza seria não propriamente a violação dos direitos do homem, mas da própria paz e segurança internacionais [...]. Esta atitude pode servir de pretexto para a prática de abusos. Acresce ainda que direitos do homem, além de ser uma noção jurídica, também é uma noção eminentemente política. Por outro lado, quem defende este tipo de intervenção são uns poucos Estados ocidentais que sempre tiveram a oposição dos antigos países socialistas e do terceiro mundo". (MELLO apud DELGADO 2005, p. 66)

E, em sua análise, Mello ainda leciona que:

"nesta matéria parece-nos que uma nova visão deve ser exposta. É que os direitos do homem estão se internacionalizando. É suficiente lembrar que os Pactos da ONU já entraram em vigor. É óbvio que o ideal é que qualquer ação para defesa dos direitos do homem partisse de organizações internacionais, especialmente da ONU, mas ainda não chegamos a esta era, apesar de reconhecermos que tal matéria não pode mais pertencer à jurisdição doméstica dos Estados. Podemos considerar os direitos do homem como sendo matéria costumeira e, portanto tendo ocorrido a internacionalização, mas cabe ao Estado que se considera vítima agir pela proteção diplomática, através de organizações internacionais ou, ainda, se for possível, nos tribunais internacionais, mas nunca se admitir a intervenção, ato ilícito, por um Estado". (MELLO apud DELGADO 2005, p. 66)

A exposição de Celso de Mello exprime em suas lições a percepção de parte de doutrina que entende não ser possível a aplicação de um "Direito de Ingerência". Em outra via, porém, encontra-se enraizado o entendimento de que existe uma orientação legitimadora da "ingerência humanitária", podendo ocorrer até sob a forma militar. O chamado "direito internacional humanitário" cederia, pois, espaço para a prática consuetudinária de um poder especial, advindo das decisões do Conselho de Segurança da ONU, que autorizaria, deste modo, a ingerência, via da intervenção, nos ambientes político e territorial de um Estado, quando nele ocorressem violações graves aos direitos humanos. Tal modo de pensar, para (DELGADO, 2005, p. 66-67) estaria sedimentado pelas mais importantes instituições internacionais, sendo, nos dias atuais, o posicionamento das Nações Unidas, via de seu Conselho de Segurança e de seu Secretariado Geral, talvez esquecendo que a Carta de São Francisco não preveja tais práticas de forma explícita, proibindo, conforme o já visto, a intervenção em assuntos internos de outros Estados, a não ser que a paz e a segurança internacional estejam comprometidas.

Há no campo da aceitação ou não da ingerência, assuntos ainda não devidamente explicitados, como os critérios que autorizariam o seu uso, ou o que, de fato, atentaria contra a paz e a segurança internacional. E, é nesta fileira que os autores discordam e expõem em seus escritos os entraves para a consecução imediata deste novo elemento.

O que se tem, por hora, é o reconhecimento de que já existe no cenário global o embrião de um "Direito de Ingerência", aplicado pelas ações já desencadeadas em nações mundo afora, como por exemplo, no caso de Kosovo, antiga província da ex-Iugoslávia, em 1999, onde a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), através de atos de ingerência, sem a autorização das Nações Unidas, interveio sob a justificativa de mesmo sem o amparo do Conselho de Segurança da ONU, fazia-se justa a sua ação.

A grande dúvida que limita a imediata aceitação da ingerência é em saber quais critérios a norteiam, levando o tema para o universo de se indagar se há de fato um direito ou então, um "dever" de ingerência? Se a resposta seguir para o lado do dever de ingerência, pode-se vislumbrar maior tranquilidade no cenário global dos próximos anos, uma vez que o dever de ingerir oferece a noção de que sempre, quando se carecer do restabelecimento da paz e segurança internacional, tal expediente se fará presente, garantindo, os direitos humanos, conforme o discurso das Nações Unidas e da sociedade internacional que a ampara. Porém, caso a opção seja pelo direito de ingerir, caberá o temor de que somente se atue quando os interesses de alguns Estados dotados de maior poder econômico, bélico e, portanto decisório, estiverem em jogo. Esta é a grande questão, face às transformações percebidas no mundo nos últimos anos, a sociedade internacional estaria pronta para admitir em seu bojo um direito ou um "dever" de ingerência?

Lecionando sobre o tema, Delgado (2005, p. 67-68) aduz que:

"Um "dever" de ingerência suporia que, verificada – pela autoridade internacional competente, conforme normas preestabelecidas – a existência de uma situação que daria ensejo à ingerência humanitária, esta ocorreria de conformidade com o procedimento estabelecido para tais casos pela comunidade internacional. De acordo com alguns magistérios seria considerado até mesmo uma obrigação – um verdadeiro dever de intervir – e não apenas uma opção. E pouco importaria que a infração fosse o massacre de curdos por Saddam Hussein, de albano-kosovares por Slobodan Milosevic, de chechenos pela dupla Ieltsin-Putin, a opressão de tibetanos e de dissidentes políticos pelo governo de Beijing ou mesmo o massacre de centenas de civis iraquianos e afegãos na auto-proclamada guerra contra o "Eixo do mal" perpetrada pelos Estados Unidos nos territórios do Afeganistão e do Iraque."

O discurso do autor encontra-se enfileirado com a postura de alguns estudiosos da ingerência que a consideram como um ente de extrema complexidade, tendo por um lado o caráter humanitário, de inequívoca função para a promoção da igualdade jurídica preconizada pela Carta das Nações Unidas e, de outro, os danos que podem ser gerados caso o seu uso não esteja disciplinado de modo a dotar os seus preceitos de segurança jurídica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A par do exposto, resta uma evidência ao término, ao menos por hora, deste estudo: existe de fato um cenário de transformações na ordem internacional, envolvendo, dentre outras temáticas relevantes, nomeadamente, o exame das mudanças que o conceito clássico de Soberania vem sofrendo ao longo dos tempos, e, o advento, a partir do final da década de 1980, de uma nova terminologia conectada ao direito internacional, mesmo que ainda não reconhecida como seu instituto oficial, qual seja, a Ingerência.

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Os esforços demandados na análise que fora desenvolvida dirigiram-se no sentido de aproximar do leitor a compreensão do modo como a Soberania vem sendo limitada pelos fenômenos emergentes do mundo contemporâneo, objetivando aclarar a idéia de que, mesmo debaixo de críticas e severas ponderações, urge o reconhecimento de uma "nova ordem jurídica global" consubstanciada numa maior participação solidária dos Estados nos assuntos de outros Estados, notadamente quando os direitos humanos estiverem em questão.

Disto, conclui-se que a Soberania, tal qual se concebia em outros momentos da história da humanidade, perde sim espaço para um novo modelo de Estado, uma organização estatal voltada para a defesa e promoção dos direitos humanos não só de seus nacionais, mas, devido à universalização desses direitos, também numa esfera supranacional, autorizando, assim, o debate sobre um Direito de Ingerência Humanitária capaz de fomentar a prática dos direitos humanos em todos os setores da sociedade internacional. Há, neste sentido, uma ordem jurídica internacional em (trans)formação, que busca na efetivação de paradigmas formulados inicialmente na década de 1940, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma alteração substancial que precisa acostar-se em figuras jurídicas e políticas capazes de legitimar esta mutação, gerando frutos tanto no âmbito externo dos Estados, em suas relações mútuas, quanto em seus interiores, ofertando uma nova visão acerca de conceitos anteriormente estáticos e imutáveis.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.

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DALLARI, Pedro Paulo de Abreu. Teoria Geral do Estado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

DELGADO, Vladimir Chaves. A Soberania dos Estados Face a Questão da Ingerência Humanitária no Direito Internacional Público In: Rev. Jur., v. 7, n. 76 (2005). Brasília: Presidência da República.

FARIA, Eduardo J. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004.

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NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. (1945/2010). Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.onubrasil.org.br/documentos_carta.php>. Acesso em 28/05/2010.

PESTANA, Eugênia Kimie Suda Camacho. Ingerência Humanitária: um novo paradigma em formação? Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Direito Legislativo.UNILEGIS. UFMS. 2004. Disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/senado/unilegis/pdf/UL_TF_DL_2004_EUGENIAPESTA\NA.pdf acesso em: 21 jun. 2010.

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Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. Considerações sobre a ingerência interestatal no cenário jurídico internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2745, 6 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18207. Acesso em: 25 abr. 2024.

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