Resumo: A finalidade do presente artigo cinge-se à investigação acerca da possibilidade jurídica da utilização de alíquotas progressivas no imposto sobre heranças e doações. Compulsando-se a técnica da progressividade de alíquotas e os desdobramentos da clássica divisão entre impostos reais e pessoais, conclui-se que, com fundamento na supressão ao princípio da capacidade contributiva, no que concerne ao referido imposto estadual, a quantificação progressiva de alíquotas afigura-se, de fato, uma inconstitucionalidade.
Sumário: 1 Introdução 2.1 O imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos (ITCMD) 2.2 A técnica da progressividade 2.3 Os impostos reais e pessoais 2.4 O princípio da capacidade contributiva 2.5 3 Conclusão – Referências bibliográficas
1 Introdução
É cediço que os impostos são uma espécie de exação tributária não vinculada a uma determinada atividade estatal. Diferenciando-se das taxas e das contribuições de melhoria, esta espécie de tributo não possui uma natureza contraprestacional, porquanto seu fato gerador independe de qualquer ação estatal específica.
Desta forma, para realizar o seu mister arrecadatório, sem descurar dos princípios constitucionais da isonomia e da capacidade contributiva, os impostos utilizam-se das mais diversas técnicas para definir o seu aspecto quantitativo. Levando-se em conta estas formas de quantificação, os impostos podem ser classificados em fixos, regressivos, proporcionais ou progressivos.
No presente trabalho, através de regras e princípios plasmados em nossa Carta Constitucional, será perscrutada a juridicidade do ITCMD progressivo, ou seja, a possibilidade jurídica, em face de nosso arcabouço legislativo, da aplicação da técnica da progressividade de alíquotas ao imposto sobre heranças e doações.
2.1 O imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos (ITCMD)
É sabido que a instituição do tributo em exame compete somente aos Estados e ao Distrito Federal. É, desta forma, um imposto estadual, conforme disposição expressa do art. 155, I da Carta Constitucional [01].
O sujeito passivo do ITCMD vem a ser o(s) herdeiro(s) ou legatário(s) ou qualquer das partes envolvidas na doação, conforme previsão encontrável em cada lei estadual. A Constituição é omissa sobre o tema.
Sobre seus antecedentes históricos, Eduardo de Moraes Sabbag nos ensina que "(...) é um dos impostos mais antigos na história da tributação, havendo relatos de sua vigência em Roma, sob a forma de vigésima sobre heranças e doações." [02]
No que se refere à sua hipótese de incidência, vale ressaltar que a mesma deve ser explicitada por leis estaduais, mas deve se restringir à descrição prevista no âmbito constitucional, ou seja, à transmissão da propriedade de quaisquer bens ou direitos, seja por causa de morte ou em razão de doação. Desta definição constitucional, as transmissões inter vivos por ato oneroso se encontram, por óbvio, excluídas.
Possui função precipuamente fiscal, de mera arrecadação aos cofres estatais. Para alguns autores, contudo, pode assumir também função extrafiscal.
2.2 A técnica da progressividade
A alíquota é elemento estrutural dos impostos que, juntamente com a base de cálculo, permite a adequação de seu critério quantitativo. Conforme lição de Hugo de Brito Machado: "Na linguagem da Ciência das Finanças Públicas e do Direito Tributário, progressividade dos impostos significa alíquotas diversas, crescentes na medida em que cresce a base de cálculo do imposto, ou excepcionalmente um outro elemento eleito pelo legislador para esse fim." [03]
À guisa de elucidação do tema, colacionamos abaixo uma tabela demonstrativa com uma suposta e eventual aplicação da técnica de progressividade fiscal em relação ao imposto em estudo:
ITCMD |
|
BASE DE CÁCULO |
ALÍQUOTA |
Até R$ 40.000,00 |
1,5% |
De R$ 40.000,01 até R$ 250.000,00 |
2,5% |
A partir de R$ 250.000,01 |
3,5% |
A tabela acima trata especificamente da progressividade fiscal, porém deve-se salientar, por sua vez, a existência da progressividade extrafiscal. Discorrendo didaticamente acerca da clássica divisão entre a progressividade fiscal e a extrafiscal, Eduardo de Moraes Sabbag assim leciona:
"O critério da progressividade diz com o aspecto quantitativo, desdobrando-se em duas modalidades: a progressividade fiscal e a progressividade extrafiscal. A primeira alia-se ao brocardo ‘quanto mais se ganha, mas se paga", caracterizando-se pela finalidade arrecadatória, que permite onerar mais gravosamente a riqueza tributável maior e contemplar o grau de "riqueza presumível do contribuinte". A segunda, por sua vez, filia-se à modulação de condutas, no bojo do interesse regulatório. Consoante a previsão explícita na Carta Magna, exsurgem 3 (três) impostos progressivos: o imposto sobre a renda, o IPTU e o ITR." [04]
Partindo-se destas duas modalidades de progressividade, sem receio podemos afirmar que, no que se refere à progressividade extrafiscal, não há falar em sua aplicação ao ITCMD, por total ausência de disposição legal expressa em nosso sistema jurídico. Esta espécie de progressividade é prevista em nossa Magna Carta somente para dois impostos reais, quais sejam, o ITR e o IPTU.
No que concerne à progressividade de natureza fiscal, impende ressaltar que a única previsão constitucional para sua aplicação aos impostos ditos reais encontra-se prevista na nova redação do art. 156, § 1ª da CF/88, e diz respeito ao IPTU.
Como veremos adiante, por questões lógico-jurídicas, a técnica da progressividade fiscal que, como vimos, não diz respeito à modulação de condutas, somente pode ser legitimada constitucionalmente se mantida estreitamente conectada ao princípio da capacidade contributiva.
2.3 Os impostos reais e pessoais
No intuito de se investigar a questão referente à possibilidade de se considerar jurídica a aplicação de alíquotas progressivas ao ITCMD, antes se faz necessário trazer a lume a didática classificação doutrinária entre impostos ‘reais’ e ‘pessoais’.
Seguindo-se esta distinção, é possível dizer que os impostos pessoais são aqueles que consideram apenas os aspectos referentes à pessoa do contribuinte. Os impostos reais, por sua vez, são os que levam em conta tão somente as características do bem ou direito a ser tributado – a matéria tributável.
Na classificação em comento, como bem lembra Luciano Amaro, "depende de se verificar se predominam características objetivas ou subjetivas na configuração do fato gerador. Se o tributo leva em consideração aspectos pessoais do contribuinte (nível de renda, estado civil, família etc.) ele se diz pessoal. Real será o tributo que ignore esses aspectos." [05]
Por esta sistematização, forçoso conceituar o ITCMD (impostos sobre a transmissão causa mortis e doação) entre os chamados ‘impostos reais’, porquanto para a dosagem do mesmo não se leva em consideração quaisquer aspectos individuais do sujeito passivo tributário. Não "contabilizadas" as circunstâncias pessoais do contribuinte, é de se questionar o posicionamento de que o referido tributo deve mesmo ser suportado em razão da capacidade contributiva do sujeito passivo tributário.
2.4 O princípio da capacidade contributiva
O princípio da capacidade contributiva (ou da capacidade econômica) possui estatura constitucional, encontrando-se expressamente delineado na atual Carta Federal, especificamente em seu artigo 145, § 1º. [06]
A idéia ínsita ao princípio da capacidade contributiva não se confunde ou se encontra restrita à outro princípio de envergadura constitucional, qual seja, o da isonomia. Este último preconiza o ideal de igualdade. A capacidade contributiva, por seu turno, encontra-se muito mais ligado ao conceito de justiça ou à arrecadação justa.
Por meio do princípio da capacidade econômica, ensina o arguto mestre Luciano Amaro que"quer-se preservar o contribuinte, buscando-se evitar que uma tributação excessiva (inadequada a sua capacidade contributiva) comprometa os seus meios de subsistência, ou o livre exercício de sua profissão, ou o exercício de outros direitos fundamentais, já que tudo isso relativiza sua capacidade econômica" [07]"
Ressalvado o entendimento de uma corrente minoritária, que caminha contra o preceito literal do supracitado dispositivo, podemos afirmar que o princípio da capacidade contributiva não abrange a totalidade dos impostos.
Como vimos, por não considerarem os aspectos pessoais, mas somente as características da matéria (bem ou direito) tributável, os impostos reais não podem ser quantificados com base na variação progressiva de alíquotas. Doutra margem, somente os impostos pessoais consideram as qualidades individuais da pessoa tributada. A capacidade contributiva do sujeito passivo nesta modalidade de tributo se afigura de extrema relevância na dosagem do seu aspecto quantitativo.
Partindo-se desta premissa, que classifica o ITCMD como um imposto real, resta claro, portanto, não ser possível se observar o princípio da capacidade contributiva na quantificação desta exação tributária.
Na esteira deste posicionamento, consoante lúcido ensinamento de Leandro Paulsen "a progressividade, nos impostos reais, é vedada, salvo autorização constitucional expressa, conforme a jurisprudência do STF, da qual se extrai que não se prestam a revelar capacidade contributiva e que, por isso não podem ser graduados com base nela [08]"
Reforçando o entendimento acima aduzido, vale salientar que, em se tratando de impostos reais, a nossa Corte Suprema já fixou entendimento, através da súmula nº 656 do STF, de que é inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o ITBI.
Não nos filiamos ao prestigioso mestre Hugo de Brito Machado quando, ao se referir ao tema da progressividade em sede de ITCMD, leciona:
"Essa progressividade é uma forma de realizar o princípio da capacidade contributiva, ou, mais exatamente, de adequação do tributo à capacidade econômica de cada um. Além disto, dependendo do percentual estabelecido, pode constituir desestímulo à acumulação de riqueza e, desta forma, contribuir, ainda que modestamente, para a redistribuição de renda no País." [09]
Esta progressividade sugerida pelo respeitável tributarista, que visa o desestímulo à acumulação de riqueza, não guarda qualquer relação com o princípio da capacidade contributiva, e só pode se constituir de uma progressividade extrafiscal. Todavia, em se tratando de imposto real, tal modalidade de progressividade deve possuir obrigatoriamente previsão expressa em nossa Carta Constitucional, o que não ocorre.
Especificamente sobre a progressividade do ITCMD, a Suprema Corte, no RE 562.045, reconheceu a repercussão geral da questão, considerando a invocação dos arts. 145,§ 1º e 155, § 1º, IV, da Magna Carta. A decisão de mérito ainda não foi prolatada, porém, a se seguir o raciocínio perfilhado pelos precedentes daquela Corte, melhor sorte não restará ao ITCMD progressivo.
Saliente-se ainda que a controvertida Resolução nº 9/92 do Senado Federal, ao tratar do ITCMD, assim disciplinou, em seu art. 2°: "As alíquotas dos impostos, fixadas em lei estadual, poderão ser progressivas em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber, nos termos da Constituição Federal."
Sobre a supracitada Resolução é importante destacar que, não obstante o fato de os impostos reais não se prestarem a revelar capacidade contributiva, o legislador constituinte também não conferiu ao Senado Federal poderes para determinar fossem progressivas as alíquotas do referido imposto. O art. 155, § 1º, IV da Carta Federal franqueia apenas que as alíquotas máximas do ITCMD sejam fixadas pelo Senado Federal.
Nesta esteira, discorrendo sobre a ausência de comando constitucional que ampare a referida Resolução, o renomado tributarista José Eduardo Soares de Melo vaticina enfaticamente que "a possibilidade de ser estabelecida a progressividade em função do quinhão que cada herdeiro efetivamente receber (prevista na mencionada Resolução) não contém amparo na Constituição. [10]"
3 Conclusão
Ante o expendido, verificou-se que, salvo autorização expressa do próprio texto constitucional, os impostos reais não admitem a progressividade fiscal, porquanto neles não se cogita das condições referentes à pessoa do contribuinte, não havendo como compatibilizá-los, portanto, ao princípio da capacidade contributiva.
Forçosa, ainda, a conclusão de que a Resolução 9/92 do Senado Federal (que permite aos Estados instituir o ITCMD progressivo) não possui o condão de alterar esta realidade. O referido ato normativo não encontra qualquer fundamento constitucional, e exorbita, como demonstrado, a competência que lhe foi conferida pelo art. 155, § 1º, IV, da Carta Magna.
Assim sendo, seja por ausência de comando constitucional ou pela dissonância com o princípio da capacidade contributiva, inarredável se mostra a antijuridicidade do ITCMD progressivo, bem como a inconstitucionalidade do art. 2ª da Resolução nº 9/92 do Senado Federal, que deu azo à sua instituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.
MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010;
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e Jurisprudência. 10ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. 2ª edição atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010.
Notas
1 "Art. 155. Compete aos Estados e ao distrito Federal instituir impostos sobre: I- transmissão ‘causa mortis’ e doação, de quaisquer bens ou direitos. (...)
§ 1º. O imposto previsto no inciso I:
I- relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
II- relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
III- terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a)se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;"
b)se o ‘de cujus’ possuía bens, era residente ou domicliado ou teve seu inventário processado no exterior;"
2 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. 2ª Ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010, p.1016.
3 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 317
4 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de Direito Tributário. 2ª Ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010, p.403.
5 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p.89
6 "Art. 145. § 1º- Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte."
7 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 137
8 PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e Jurisprudência. 10ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 718
9 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 379
10 MELO, José Eduardo Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. 3ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 210