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O controle jurisdicional do mérito do ato administrativo no Estado Democrático de Direito.

Apontamentos para um Direito Administrativo contemporâneo

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14/01/2011 às 18:26
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4.ESTUDOS JURISPRUDENCIAIS SOBRE O MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO SEGUNDO O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Depois que foram brevemente avaliadas dentro de um panorama geral as características que formam o Estado Democrático de Direito no Brasil, é necessário iniciarmos os estudos jurisprudenciais sobre acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Antes disso, porém, é necessário questionarmos o que é o mérito do ato administrativo.

Segundo a dogmática tradicional, o mérito do ato administrativo se constitui de critérios de conveniência, oportunidade e justiça. Muitos doutrinadores sustentam que o mérito do ato administrativo está inserido em uma zona de inquestionabilidade absoluta. Essa concepção criaria a incontestabilidade e inquestionabilidade do mérito do ato administrativo. Atualmente, porém, alguns doutrinadores tem submetido essa idéia a crítica. Humberto Ávila alega que não existe a supremacia do interesse público e que cada caso deve ser avaliado isoladamente para se averiguar se o interesse privado está ou não com a razão (ÁVILA, 1999, p. 99). Diz ele que "uma relação de prevalência só pode ser verificada, entretanto, diante do caso concreto". (Ávila, 1999, p. 108). Ele avalia que a proporcionalidade deve ser o meio para se averiguar esses casos concretos (Ávila, 1999, p. 113). Não haveria uma supremacia, definida como um valor inigualável, e por isso o interesse privado poderia se sobrepor ao público. É com base na idéia de supremacia do interesse público que se molda um dos fundamentos do mérito do ato administrativo. Passaremos, agora, a avaliar julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sobre essa questão. Segundo um julgamento do Tribunal de Justiça [09], disse o relator:

Quanto às demais alegações vertidas pelo autor, no sentido do mérito do ato punitivo, descabem sua apreciação pelo Judiciário, conquanto o procedimento adotado pelo requerido foi legal, tendo sido oportunizada a defesa e o contraditório, conforme as provas documentais acostadas aos autos, tendo, após a abertura do processo administrativo, sido citado o autor, ouvidas testemunhas e apresentada defesa pelo indiciado, e, somente após, imposta a pena disciplinar. Tal caminho observa a norma esculpida no art. 5º, inc. LV da CF/88.

Logo após há o voto, que contém as seguintes afirmações, reproduzindo Hely Lopez Meirellez (Direito Administrativo Brasileiro, 19ª. ed., p. 607).

Ao poder Judiciário é permitido perquirir todos os aspectos de legalidade e legitimidade para descobrir e pronunciar a nulidade do ato administrativo onde ela se encontre, e seja qual for o artifício que a encubra. O que não se permite ao judiciário e pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência e justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial. O mérito administrativo, relacionado-se como conveniências de governo ou com elementos técnicos, refoge do âmbito do poder Judiciário, cuja missão é de aferir a conformação do ato com a lei escrita, ou, na sua falta, com os princípios gerais do Direito [10].

Veja-se que inexiste comprovação de qualquer ilegalidade praticada pelo Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto, de modo que ao Poder resta impedido de alterar qualquer decisão tomada na esfera administrativa.

Note-se que o relator afirmou que o Judiciário não poderia se manifestar sobre o mérito do ato administrativo, composto de conveniência, oportunidade, eficiência e justiça, porque estaria realizando um pronunciamento de administração. Ele seguiu a idéia clássica de incontestabilidade do ato administrativo e disse que o Judiciário não poderia invadir a esfera de competências da Administração. Aqui ele considerou o princípio da separação dos poderes, e não a supremacia do interesse público, afirmando que não é da competência do Judiciário se imiscuir em questões que são originariamente atinentes a decisões do Município. Ele seguiu a idéia de que o Judiciário somente pode considerar a lei e os princípios, mas nunca poderia adentrar no mérito da decisão administrativa em si mesma. O Judiciário não poderia invadir esfera de competências do município. Outro acórdão [11], na ementa, diz que:

Não cabe controle judiciário do gabarito oficial da prova objetiva realizada em concurso público, porque constitui o mérito do ato administrativo, ainda vigorando, no sistema da Constituição, a separação dos poderes [12], e porque ao órgão judiciário não é dado estabelecer verdades científicas.

No voto, o relator diz que:

E assim porque o Judiciário não interfere ou interferiu no mérito administrativo. Trata-se tão-somente de verificar a legalidade do ato praticado pela Comissão de Concurso. Aliás, a prefacial suscitada já foi corretamente espancada pela origem.

O revisor afirma, citando outro desembargador, que:

Por tal motivo, o Sr. Desembargador José Maria Rosa Tesheiner escreveu artigo, sempre citado, no qual ele examina o problema, objeto de vivos debates, para concluir que não é possível o órgão judiciário adentrar neste tema e substituir o critério técnico escolhido pela banca pelo seu próprio. Permito-me transcrevê-lo (Poder Judiciário e concursos públicos, pp. 353/356, Ajuris/59, Porto Alegre, 1993):

O entendimento tradicional era no sentido de que não cabia, ao Judiciário, reexaminar o mérito dos atos administrativos e, pois, o conteúdo das questões propostas, apresentando-se, agora, o posicionamento contrário como novidade, modernidade e atualidade. O fundamento dessa posição de vanguarda é o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, atualmente expresso no art. 5º, XXXV, da Constituição da República. ‘A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito.

Outro acórdão [13], na ementa, diz que:

Não se mostra lícito [14] ao órgão judiciário controlar o mérito do ato administrativo. Assim, decidido pelo Conselho Estadual de Educação que certa escola não exibe condições para funcionar, indicando motivos congruentes, não há como reexaminar tal ato de meritis [15].

O voto do relator diz que: "O ato administrativo que se pretende anular está adequado, porque oriundo de autoridade competente, bem fundamentado e sem qualquer vício..". Analisando os acórdãos, notamos que os desembargadores estaduais tendem a considerar que o mérito do ato administrativo dentro de uma visão tradicional, seguindo Hely Lopez Meirellez, eis que consideram o princípio da separação dos poderes e da supremacia do interesse público como superiores ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, considerando que somente a legalidade e os princípios podem ser averiguados, mas não a oportunidade, a conveniência e justiça [16], que seriam, respectivamente, espaço decisório da Administração.

Avaliando agora um acórdão do Supremo Tribunal Federal [17], o relator diz que:

Também essa Corte já firmou o entendimento de que não cabe ao Poder Judiciário, no controle jurisdicional da legalidade, que é o compatível com ele, do concurso público, substituir-se [18] à banca examinadora nos critérios de correção de provas e de atribuição de notas a elas. (...) Pela mesma razão, ou seja, não se tratar de exame de legalidade, não compete ao Poder Judiciário examinar o conteúdo das questões formuladas [19] para, em face da interpretação dos temas que integram o programa do concurso, aferir, a seu critério, a compatibilidade ou não, deles, para anular as formulações que não ...

No voto, diz o relator que:

Por outro lado, em relação à violação do art. 5 º, XXXV, da Constituição Federal, não se possibilita ao Poder Judiciário, em matéria de concurso público o exame de critério subjetivos de avaliação, mas tão somente o que diga respeito à legalidade do procedimento [20].

Todos os acórdãos que citamos negaram provimento aos autores, impossibilitando o reexame pelo Poder Judiciário em razão do mérito do ato administrativo. A jurisprudência postulou uma série de teses, e destacaremos as principais:

1. O Judiciário não poderia realizar "pronunciamento de administração".

2. Prevalece na Constituição Federal de 1988 o princípio da separação de poderes.

3. O Judiciário somente pode avaliar a "conformação do ato com a lei escrita" e na ausência usar os princípios jurídicos. Somente é possível exame da legalidade do procedimento.

4. Não compete ao Judiciário avaliar o mérito do ato administrativo, logo não é lícito ou permitido que ele faça isso.

Concluímos que jurisprudência tende a considerar a tradicional concepção do mérito do ato administrativo, considerando que essa é uma área que o Judiciário não tem competência para julgar, eis que se ele o fizesse ele violaria o princípio da separação de poderes e agiria de forma a substituir a Administração Pública na sua função de decidir a conveniência, a oportunidade e justiça do ato administrativo.

4.1. A LEGITIMIDADE DO JUDICIÁRIO FRENTE À ADMINISTRAÇAO PÚBLICA

Depois de considerarmos a maneira como a jurisprudência considera o mérito do ato administrativo, dentro de uma visão tradicional, é necessário questionarmos criticamente quais são as repercussões sociais dessa postura. Qual é o efeito dessas decisões dos magistrados na sociedade? O Judiciário teria legitimidade suficiente para julgar o mérito do ato administrativo? Seria aceitável que ele se imiscuísse profundamente nas questões administrativas?

Devemos considerar que o Judiciário se considera legítimo para usar sua jurisdição somente em relação à lei no caso do mérito do ato administrativo. Ele não afirma que nada pode fazer, mas sim que pode fazer algo até um certo limite. Depois desse limite os magistrados não se julgam legítimos para avançar. A questão que então se coloca é: isso é benéfico ou prejudicial à sociedade?

O Judiciário se considera capaz de controlar os atos administrativos dentro de linhas genéricas, ou seja, havendo leis gerais e princípios constitucionais que manifestem expressamente a ilegalidade ou ilicitude do ato administrativo, é possível a atuação desse Poder, mas somente até ali. Havendo um procedimento formal correto, o Judiciário não se considera capaz de adentrar o espaço da discricionariedade administrativa, pois deixa um espaço considerável de liberdade a Administração Pública.

O mérito do ato administrativo é composto de três elementos:

1.Conveniência;

2.Oportunidade;

3.Justiça;

A conveniência é um poder que tem o governo de saber o que é ou não é bom ou útil ao interesse público e a própria Administração Pública. A oportunidade é a capacidade que tem o administrador de escolher o momento para a prática dos atos administrativos. A justiça seria uma idéia de que a caracterização do que é justo ou injusto ao governo cabe a ele mesmo decidir.

A questão que fica é esta: é possível uma recepção da teoria da não sindicabilidade judicial do mérito do ato administrativo no Estado Democrático de Direito? Dada a força normativa da Constituição e dos princípios constitucionais, como considerar que a conveniência de um ato administrativo possa estar imune ao controle judicial, como se o administrador fosse o "proprietário" do conceito de "conveniência", quando esta é vinculada ao interesse público? E os princípios da razoabilidade e da moralidade administrativa? O mesmo pode ser dito face à oportunidade e à justiça. Como impossibilitar um candidato de ter reexaminada a violação do seu direito pelo Judiciário – por exemplo, quanto ao gabarito de um concurso público – ferindo o acesso à Justiça, com base na teoria da indevassabilidade do mérito do ato administrativo? E se o administrador não achar conveniente anular uma resposta mal elaborada? Será que a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional não restaria ferida? Será que não atenta contra o princípio da igualdade em um concurso público um candidato ser prejudicado por uma questão mal formulada e não que não foi anulada administrativamente?

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4.2.A NECESSÁRIA ADEQUAÇÃO DO CONTROLE JURISDICIONAL EXTERNO DO ATO ADMINISTRATIVO AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Liberal era um Estado Legislativo. O Estado Social focalizava suas óticas no Executivo, queria que ele tivesse políticas públicas diretas. O Estado Democrático se focaliza, diversamente, no Judiciário e no Ministério Público, como defensores dos interesses sociais dentro do século XXI (COPETTI, 2000, p. 56). Em outras palavras, o Judiciário do século XXI deve(ria) ser diferente do Judiciário do século XVIII, assim como os demais poderes. Não se deve conceber os três poderes da Federação brasileira com a ótica unicamente liberal ou social. Deveríamos considerar a filosofia política do Estado de forma a unificar esses três modelos políticos, harmoniza-los em um sistema e visualizar tudo com os olhos na civilização globalizada e tecnológica do século XXI.

Atualmente há uma série de fenômenos recentes e até então inéditos que surgiram dentro do nosso constitucionalismo brasileiro. Podemos citar exemplos: 1. a judicialização, jurisprudencialização e politização do Judiciário; 2. a jurisdição constitucional democrática; 3. um enfraquecimento dos postulados do Positivismo Jurídico; 4. o compromisso democrático; 5. a nova hermenêutica. É evidente que outras mudanças poderiam ser analisadas, mas no presente trabalho estas são as mais importantes.

O Judiciário de hoje em dia está muito mais inserido na política de governo. Não há mais aquela separação absoluta entre o Judiciário e os outros dois poderes que havia no modelo liberal, pelo princípio da separação de poderes. O compromisso democrático fez com que os magistrados sejam chamados na participação dos interesses públicos em jogo, rompendo com a idéia de que deveria haver um distanciamento e um julgamento meramente formal dos problemas políticos. O Estado Democrático invoca a atuação da jurisdição como um meio de influir democraticamente no interesse público. Não podemos ver a função dos juízes com uma ótica individualista.

O Judiciário do século XVIII teve a sua vivência em uma época em que não havia maior limite para o Estado que a Lei, em que o tradicionalismo político e o individualismo tendiam a separar formalmente o Judiciário dos outros dois poderes. Na França havia fortemente o princípio da separação dos poderes, de forma rígida, absoluta e inflexível. O Judiciário não poderia influir nas questões do governo, deveria se ater a lides interindividuais. Segundo a visão da época, ele não deveria se intrometer no governo e querer submetê-lo as suas opiniões, eis que então estaria invadindo o espaço de decisão governamental. Essa era a forma como se avaliava esse Poder. Passados mais de duzentos anos, porém, muitas construções teóricas surgiram, novas idéias se implantaram nos Estados, e o gérmem da democracia se expandiu e se consolidou no Brasil. Por isso mesmo deveria haver uma reconsideração do que significaram essas mudanças.

A filosofia política democrática, originária principalmente do movimento constitucionalista de 1988, busca um devir ou um dever-ser democrático para a nação, o engajamento no compromisso da democracia, inclusive pelo Judiciário, eis porque que a sua função política se modificou. Não que esse Poder ainda não esteja atento a legalidade, as lides interindividuais e a valorização da propriedade individual, como estava no Estado Liberal, mas há um plus, que significa toda uma nova hermenêutica jurídica e hoje há vários instrumentos jurídicos adequados à consolidação dos valores democráticos do interesse público. Pode-se dizer, então, que se considerarmos o Judiciário com a visão do passado, a nossa consciência hermenêutica do significado das teorias políticas estará em diacronia com as necessidades do nosso tempo.

Diz Leonel Ohlweiler que "A jurisdição constitucional, com efeito, sempre esteve ligada à própria idéia de constitucionalismo, o que demanda questionar o acontecer histórico desse movimento". (OHLWEILER, 2004, p. 290). Estudando a história do constitucionalismo estamos em busca da compreensão do que ele trouxe de alterações para a ideologia do Judiciário e para o que se espera hoje desse poder. A seguir diz esse administrativista:

Conforme será posto, uma das causas da dificuldade de entender a jurisdição constitucional, na atualidade, reside no atrelamento a alguns pressupostos tradicionais do Estado liberal-individualista e na in-capacidade de algumas construções ultrapassarem o pensamento objetificador, metafísico, calcado na lógica-formal do mundo dos enunciados (OHLWEILER, 2004, p. 301).

Disso notamos que há uma insuficiência teórica de capacidade de explicação da jurisdição constitucional dentro do modelo liberalista atualmente. A jurisdição liberal era distanciada do interesse público, era privatista. A idéia de interesses difusos não existia para o Judiciário do século XVIII.

O que devemos entender por jurisdição constitucional? Todo juiz de direito deve ser um juiz constitucional, pois atua em um Estado Constitucional de Direito. É incoerente negarmos que ele deve seguir o constitucionalismo, que aponta as orientações das leis e do Direito. Suas funções, estando relacionadas ao Estado, devem se vincular a Constituição. A respeito do tema, diz José Maurício Adeodato que "ao conjunto de interpretações, argumentações, decisões apreciadas pelo Poder Judiciário, em questões que envolvem os textos constitucionais, dá-se à denominação de jurisdição constitucional (ADEODATO, 2004, p. 170) ... Dentro do cenário brasileiro, havendo não somente o controle concentrado da constitucionalidade, mas também o controle difuso, qualquer juiz pode avaliar matéria constitucional e todos os magistrados são juízes constitucionais de direito. Nessa ótica, devemos considerar a importância que a Constituição deve representar para os magistrados.

Após consideramos esses aportes preliminares sobre a jurisdição constitucional e os movimentos constitucionalistas, nos ateremos na questão do mérito do ato administrativo, buscando relacionar a hermenêutica jurídica com a jurisdição constitucional democrática para que possamos compreender o significado da filosofia política que a mentalidade do constitucionalismo atual pretende concretizar.

Nesse sentido, segundo vimos na jurisprudência, o mérito do ato administrativo é visto pelos magistrados dentro de uma visão dogmática e tradicional, positivista e formalista. O Judiciário tende a sobressaltar o princípio da separação dos poderes para motivar suas decisões. O que significa esse princípio? Se considerarmos o constitucionalismo liberal, notaremos que nele há uma demarcação absoluta entre as competências do Judiciário e do governo; representando isso por uma analogia, poderíamos dizer que é como se o Estado fosse dividido em três terras ou terrenos, que representam seus poderes e competências, sendo que o Legislativo caberia a maior parcela de terras, o Executivo ficaria com a segunda maior parcela e o Judiciário ficaria com o que sobrasse. A atuação jurisdicional não era muito valorizada, até mesmo porque antes da Revolução Francesa os burgueses se revoltavam contra as decisões judiciais, que consideravam parciais. No Estado Liberal, o princípio da separação de poderes era sagrado, pois representava uma divisão de competências e fortalecia os interesses do governo.

Modernamente, porém, poderíamos reconsiderar a força desse princípio, dizendo que há mais flexibilidade nas relações dos 3 Poderes. Tendo o Judiciário assumido compromissos constitucionais com o interesse público, ele se aproximou mais do governo, que está nos pólos de muitas ações que dizem respeito a esse princípio, e por isso o Judiciário rompeu naturalmente as barreiras absolutas que separavam a competência dos três Poderes, pois, no Estado Democrático, ele já julgou muitas vezes contra os interesses do governo, ou seja, julgando questões administrativas, que no Estado Liberal ele não julgava. Logo, hoje o princípio da separação de poderes é fluido.

Não devemos dizer que há uma invasão de competências, em razão disso, pois os três poderes continuam atuando em suas funções, mas naturalmente, mas nos casos de ilicitude, ilegalidade ou inconstitucionalidade, e somente nesses casos, o Judiciário poderia rever decisões administrativas [21].

A respeito, José Luiz Bolzan de Morais e Walber de Moura Agra dizem que "O enquadramento das funções estatais dentro do esquema da rígida tripartição de poder não corresponde mais às necessidades das sociedades hodiernas, que devido a sua alta complexidade permite o afloramento das mais diversas necessidades (MORAIS, 2004, p. 226)." Logo após afirmam que:

A concepção tradicional dos poderes é utilizada como argumento contrário ao aumento da extensão da atuação da jurisdição constitucional e, conseqüentemente, da jurisprudencialização da Carta Magna, basicamente devido a dois de seus postulados: que todas as decisões judiciais devem ser proferidas dentro dos parâmetros legais e que a análise de questões, que envolvam elevado grau de discricionariedade são questões essencialmente políticas e, portanto, estão fora do alcance da apreciação pela jurisdição constitucional (MORAIS, 2004, p. 226).

Logo após, sustentam que:

A reestruturação do princípio da separação dos poderes, com a sua concepção de atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, não pode ser concebida como um fator para restringir ou para expandir a jurisprudencialização da Constituição. Da mesma forma que não se pode outorgar à jurisdição constitucional à absoluta interpretação jurídica, chegando a ponto de prescindir do alicerce normativo, também não se pode vincular seu desenvolvimento a modelos ultrapassados que não mais atendem ao interesse da sociedade [22]. ...

Em vistas disso, deveríamos considerar que o princípio da separação de poderes não é legítimo para evitar o controle jurisdicional do mérito do ato administrativo, eis que nesse caso outro princípio se sobressai sobre ele, conforme o Leonel Ohlweiler:

Inclusive, o artigo 5º., XXXV, da CF, estaria a possibilitar uma atuação mais interventiva e transformadora por parte da jurisdição constitucional, na medida em que nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser afastada do Poder Judiciário. Um dos grandes dogmas do direito administrativo [23] diz respeito à criação de uma zona de imunidade de controle, o chamado mérito do ato administrativo. Para que seja possível a construção de um regime administrativo desobjetificado, faz-se mister que o Poder Judiciário supere esse dogma, através do constante labor de suspensão dos pré-juízos liberais individualistas que impedem o desvelamento do autentico modo-de-ser-dogmático [24]. Aliás, esse trabalho, há algum tempo, já vem sendo defendido pela doutrina (Ohlweiler, 2004, p. 320).

Segundo esse doutrinador, deveríamos considerar que há pré-juízos dogmáticos que deveriam ser desvendados pela hermenêutica, de forma a manifestar as teses liberalistas que encobrem e que, analisadas de forma diacrônica, violam os ideais da democracia. A lesão ou ameaça de lesão a direito seria mais importante que o princípio da separação de poderes, até mesmo porque o princípio da separação de poderes é meramente formalista e, segundo a ontologia democrática, está reconceitualizado. O problema é que os magistrados tendem a considerar esse princípio sob os auspícios do Estado Liberal, como se não vivêssemos em um Estado Democrático de Direito. Eles ficam agarrados a teoria administrativa tradicional. Por que isso ocorre? Por que há essa dificuldade em romper e criar novas idéias?

Em grande parte, isso ocorre em razão de que a instalação de uma consciência democrática é muito recente, e os juristas ainda estão em um processo de assimilação do significado da democracia e das suas possibilidades. A democracia está em construção, está evoluindo e crescendo. Ainda não estamos acostumados com a novidade da democracia. Não estamos assim tão longe da Revolução Francesa. Pouco mais de 200 anos nos separam dela, o que significa que o Liberalismo está em construção há mais de 2 séculos, enquanto que o Estado Democrático, há pouco mais de 20 anos, o que é pouco. É por isso que é muito mais fácil se apegar na tradição, ela tem a força da História no seu seio; mas isso não quer dizer que não devamos estimular a mudança.

A sociedade se interessa muito mais pela proteção aos seus direitos pelo Judiciário do que pela separação de poderes. O Judiciário não vive no século XVIII. O interesse público democrático pressupõe a valorização de todos os direitos do homem e a possibilidade de investigação judicial de toda sorte de ilicitude. É isso o que as sociedades almejam. Segundo Leonel Ohleweiler:

É possível sustentar que a tarefa de compreensão do fenômeno jurídico-administrativo exige, por exemplo, a superação do paradigma liberal-individualista que tanto tem predominado no âmbito da atividade dos operadores jurídicos do Brasil, bem como, cada vez mais, construir um pensar não objetificador, melhor dizendo, aquele que supera o modo-de-ser metafísico e remete a pergunta originária para a questão do ser. (Ohlweiler, 2004, p. 286)

O princípio da separação de poderes, sendo o pilar fundamental da idéia de inquestionabilidade das decisões administrativas, no Estado Democrático de Direito deve ceder ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório, da ampla defesa e de toda sorte de valores fundamentais da República Brasileira. O Judiciário deve investigar todas as profundezas dos atos administrativos na busca de ilicitudes. Havendo um processo administrativo que vise punir o cidadão, sendo retirado da inércia, o Judiciário tem o dever-poder de averiguar se há ou não violação de direitos.

A interpretação da filosofia política da Constituição no Estado Democrático de Direito deve ser a de que o Judiciário é um dos titulares principais da capacidade de controlar o poder administrativo e, já que de toda força política do Estado podem surgir abusos, os magistrados são o mais legítimo de todos os órgãos para apurar a violação ao Direito, eis que tem todo um instrumental processual e conhecimento jurídico para isso. Eles têm o dever de avaliar se há ou não lesão, eis que sua tarefa, atualmente, também está ligada ao interesse público. Não vivemos mais na era unicamente liberal. O Estado Democrático incorpora o Liberalismo, o Estado Social e a democracia.

É nesse sentido que incumbe ao Judiciário fiscalizar a atuação da Administração Pública e inclusive decidir o mérito do ato administrativo, negando a sua imunidade e sopesando os princípios constitucionais. A fiscalização jurisdicional deve notar a plena constitucionalidade do controle judicial dos atos administrativos em todos os seus aspectos. É evidente que a intervenção do Judiciário no exame do mérito do ato administrativo deve ser fundamentada e necessária, sem buscar se substituir ao administrador público. Mas se o Direito não é somente a lei, porque nele existe também a justiça e os princípios, então eles devem ser considerados diante do mérito do ato administrativo, e não somente a legalidade formal.

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Sobre o autor
Logan Caldas Barcellos

Advogado. Mestre em Direito Público pela UNISINOS/RS. Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade IDC/RS. Graduado em Direito pela UNISINOS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARCELLOS, Logan Caldas. O controle jurisdicional do mérito do ato administrativo no Estado Democrático de Direito.: Apontamentos para um Direito Administrativo contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2753, 14 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18275. Acesso em: 24 abr. 2024.

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