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O Estado, o direito e a pobreza:

o problema da efetivação dos direitos sociais

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23/01/2011 às 06:16
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III. O problema da efetivação dos direitos sociais:

Os direitos fundamentais, desse modo, enunciam uma série de bens e valores, formando um núcleo de direitos a partir dos quais deve ser interpretada a Carta Maior e a legislação infraconstitucional, bem como deve ser pautada a atuação do Estado e da sociedade.

A regra, pois, é a de que os direitos fundamentais se complementam na busca do bem comum, da igualdade entre os homens e da dignidade da pessoa humana.

Assim, em tese, os direitos fundamentais apresentam-se perfeitamente compatíveis entre si e, sendo ínsitos a subsistência digna do homem, possuem força normativa própria, expressando compromissos que devem ser efetivamente concretizados pelo Estado, já que a dignidade humana não se satisfaz com o mero reconhecimento abstrato de direitos.

Como exposto no item precedente,os direitos sociais (de segunda geração) visam assegurar o bem-estar e a igualdade entre os homens, impondo uma ação estatal, também chamada pela doutrina de prestação positiva.

Vale reiterar, no particular, as lições de Carlos Henrique Bezerra Leite [19], para quem "os direitos sociais constituem um dever de fazer, de contribuir, de ajudar, por parte dos órgãos que compõem o Poder Público".

Além disso, sendo espécie dos direitos fundamentais, é evidente que aos direitos sociais também é aplicável o princípio da máxima efetividade e da força normativa, que pregam, em síntese, a máxima eficácia daqueles, independentemente de positivação no texto constitucional ou infraconstitucional.

Não restam dúvidas, portanto, que os direitos sociais impõem ao Poder Público a obrigação de adotar prestações positivas e medidas administrativas que propiciem o acesso e gozo pleno por parte dos cidadãos, indistintamente (sem exclusão de qualquer um deles, ou seja, independentemente de sexo, raça, profissão, qualificação, etc), já que se trata de um direito fundamental (social, de 2ª geração), submetido à universalidade.

Não obstante, presenciamos, em pleno século XXI, um verdadeiro descaso do Estado para com a efetivação dos direitos sociais, só tendo efetivação e concretização quando atendem aos interesses do capital e do grupo político dominante.

Alguns juristas, bem como gestores públicos, alegam, para tanto, que as normas constitucionais que tratam sobre direitos sociais apenas declaram princípios programáticos, não impondo, efetivamente, uma ação do Estado. Defendem, no particular, que as normas que regulamentam os direitos sociais são de natureza programática e política, apenas firmando compromisso político ou declarando as boas intenções do Estado.

Nesse contexto, os direitos sociais não criariam obrigações jurídicas concretas para o Estado, de modo que não poderiam ser exigidos judicialmente.

Com a devida vênia, tal corrente não se sustenta, na medida em que as normas definidoras de direitos fundamentais têm aplicação imediata e devem primar, sempre, pela observância do princípio da isonomia, não sendo admitidas distinções desprovidas de fundamento e razoabilidade.

Outrossim, e diante da força cogente das Constituições, é necessário ter em mente que o ordenamento jurídico deve ser interpretado a partir das suas disposições, valores e princípios.

Em outras palavras, é necessário interpretar a legislação infraconstitucional a partir das normas, princípios e valores insculpidos na Constituição Federal, notadamente aqueles que versam sobre direitos humanos.

Pertinente, no particular, a seguinte reflexão de Paulo Ricardo Shier [20]:

Portanto, é a partir dos direitos fundamentais (pois são os direitos vinculados à proteção do homem) que se deve compreender uma Constituição. Esses é que justificam a criação e desenvolvimento de mecanismos de legitimação, limitação, controle e racionalização do poder. Estado de Direito, princípio da legalidade, separação dos poderes, técnicas de distribuição do poder no território e mecanismos de controle da Administração Pública, por exemplo, são instrumentos que giram em torno da proteção daqueles direitos fundamentais que, embora historicamente tenham se desenvolvido e se modificado, permaneceram como núcleo legitimador do Estado e do Direito.

É possível afirmar, também, que sendo os direitos sociais relativamente novos (reconhecidos paulatinamente apenas após a primeira guerra mundial), os juristas que defendem a natureza programática e política das normas constitucionais sobre os mesmos estariam incorrendo no que Luiz Roberto Barroso chamou de patologia crônica da hermenêutica constitucional, "que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo" [21].

José Carlos Barbosa Moreira [22], ao tratar dessa questão, ponderou que:

A ação conjugada desses e de outros fatores costuma gerar fenômeno que, apesar de negligenciado em geral pela teoria clássica da hermenêutica, se pode observar com facilidade toda vez que entra em vigor novo código, ou nova lei de âmbito menos estreito ou de teor mais polêmico. Em tais ocasiões, raramente deixa de manifestar-se, em alguns setores da doutrina e da jurisprudência, certa propensão a interpretar o texto novo de maneira que ele fique tão parecido quanto possível com o antigo. Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação a que não ficaria mal chamar retrospectiva: o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica. Pois bem: o que sucede com outros diplomas é passível de suceder igualmente com uma nova Constituição.

É fato, infelizmente, que há resistência às mudanças e ao progresso jurídico. No entanto, também é fato, incontestável, incontroverso e indiscutível, que os direitos sociais demandam e impõem uma ação efetiva e concreta do Estado.

Definitivamente, as normas constitucionais não são de cunho meramente programático. Do contrário, estariam os direitos sociais vulneráveis à vontade do capital e da classe dominante, perdendo, pois, a característica da inviolabilidade.

Ora, se os direitos sociais demandam uma atuação positiva por parte do Estado, este não pode se omitir. Deve agir em busca da concretização dos direitos previstos nas constituições, sob pena de incorrer em omissão manifestamente inconstitucional.

E assim deve ser para que seja efetivada a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito.

Há, por outro lado, quem defenda que os direitos sociais não são efetivados pelo fato de demandar uma ação positiva do Estado, o que exige recursos financeiros.

Acontece, no entanto, que esse argumento também não se sustenta.

Ora, a Constituição de um país não pode ser encarada como uma mera carta declaratória de boas intenções ou de promessas demagógicas, cabendo ao Estado executá-la e efetivá-la em sua integridade [23].

Muitas vezes os direitos sociais são negados e ignorados em detrimento de medidas e políticas de cunho meramente eleitoreiro e escuso. Países gastam cifras expressivas com publicidade governamental voltada à promoção pessoal do governante, enquanto que a população mais carente não tem acesso a educação, saúde e alimentação de qualidade.

É fato que a efetivação dos direitos sociais demanda recursos financeiros; entretanto, também é fato que a Constituição de um Estado tem força cogente e deve ser cumprida, não podendo ser vista como mera carta declaratória de boas intenções.

Atento a essa realidade, J. J. Gomes Canotilho [24] aponta as seguintes medias que podem dotar o erário de recursos financeiros que viabilizem a satisfação dos direitos sociais:

"(1) provisões financeiras necessárias e suficientes, por parte dos cofres públicos, o que implica um sistema fiscal eficiente e capaz de assegurar e exercer relevante capacidade de coacção tributária;

(2) estrutura da despesa pública orientada para o financiamento dos serviços sociais (despesa social) e para investimentos produtivos (despesa produtiva);

(3) orçamento público equilibrado de forma a assegurar o controle do déficit das despesas públicas e a evitar que um déficit elevado tenha reflexos negativos na inflação e no valor da moeda;

(4) taxa de crescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado (3%, pelo menos ao ano)."

Por sua vez, Ubiratan Moreira Delgado [25] arremata, com bastante propriedade:

"Não resta dúvida que todos os direitos demandam custos, e que nem sempre existe possibilidade real de bancá-los nos casos concretos. Nem por isso se deve dar razão à corrente de pensamento político e econômico que preconiza o fim dos direitos econômicos, sociais e culturais. A reserva do possível deve ser enquadrada nos lindes da razoabilidade e da proporcionalidade, nunca interpretada como uma barreira intransponível para a garantia de um mínimo de efetividade à dimensão prestacional dos direitos.

A escassez de recursos não justifica a negação pura e simples de prestações que garantam um mínimo existencial involucrado no próprio conteúdo jurídico do direito à vida, como, por exemplo, uma habitação modesta, o acesso à água e à alimentação, a educação básica, um patamar mínimo de assistência médica. Diante da fome e da miséria prementes, todos os demais gastos orçamentários passam a ser supérfluos e extravagantes, com um viés de inconstitucionalidade.

É preciso que se diga que o legislador e o administrador não têm liberdade total sobre a elaboração e a execução orçamentária. A discricionariedade da conformação dos gastos públicos deve ser exercida de modo a não anular o dever constitucional de garantir um mínimo de dignidade aos indivíduos desassistidos, um núcleo de prestações indispensáveis a uma vida digna. O princípio da competência orçamentária do legislador não é absoluto e não pode servir de mote à inexigibilidade judicial de uma prestação social mínima."

A teoria da reserva do financeiramente possível, portanto, está na meio que na contramão do neoconstitucionalismo, na medida em que o Estado não pode invocar limitações financeiras para se exonerar do cumprimento de obrigações constitucionais, notadamente aquelas dotadas de fundamentalidade, como a efetivação dos direitos sociais.

Outro obstáculo para a efetivação dos direitos fundamentais é o conflito entre eles.

Pode ocorrer, no caso concreto, situações em que conflitem dois ou mais princípios elevados à categoria de fundamentais, restando ao aplicador do Direito a incumbência de solucionar tal impasse. Para tanto, utilizar-se-á necessariamente das regras de interpretação e hermenêutica.

Nesse sentido, Alexandre de Moraes [26] melhor elucida o tema:

O conflito de direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta do fato de a Constituição proteger certos bens jurídicos (saúde pública, segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional, família, idosos, índios, etc.), que podem vir a envolver-se numa relação de conflito ou colisão

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. Para solucionar-se esse conflito, compatibilizando-se as normas constitucionais, a fim de que todas tenham aplicabilidade, a doutrina aponta diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílio ao intérprete.

(...)

Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas. (grifos acrescidos).

Destarte, não se mostram ilimitados os direitos e garantias alçados a cânone constitucional, vez que relativizados, muitas vezes, por outros direitos e garantias de mesma estirpe (princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).

Algumas vezes o intérprete se deparará com situações em que, de um lado, precisará respeitar um direito basilar da Constituição, ao passo que, de outro, necessitará, contemporaneamente, assegurar um outro direito ou garantia igualmente fundamental.

É o caso de acidente ocorrido com pessoas autodenominadas "Testemunhas de Jeová", ou seja, integrantes de uma religião que proíbe veementemente a transfusão de sangue. Em sendo necessária esta, como única forma de salvar a vida do paciente acidentado, como proceder? Como compatibilizar o direito à vida com o respeito à liberdade de crença?

Os Tribunais brasileiros têm decidido no sentido da preservação do direito à vida em detrimento da liberdade de religião, por entenderem ser aquele o bem inviolável e preponderante, inerente à condição de dignidade humana [27].

É imprescindível, assim, a utilização das regras de hermenêutica em cada caso concreto para a justa solução dos conflitos entre direitos fundamentais. O emprego de métodos e regras interpretativas, além de racionalizar e garantir segurança jurídica, evita a aplicação casuística dos direitos fundamentais conflitantes, evitando a concentração de poderes ilimitados nas mãos do intérprete ou do gestor (administrador) público.

Deve o intérprete (em sentido lato), portanto, seguir regras de hermenêutica constitucional previamente apontadas pela doutrina e jurisprudência, não ficando à sua livre disposição, sem qualquer critério, a escolha acerca de qual dos princípios aplicar.

Acerca da relatividade dos direitos fundamentais, muitas vezes limitados pelos demais direitos dessa espécie, Enéas Castilho Chiarini Júnior [28] afirma que:

A limitação de um Direito Fundamental será necessária, portanto e, principalmente, quando acontecer o choque entre dois direitos que, apesar de absolutamente compatíveis – de um modo geral –, em determinado caso concreto se apresentem como incompatíveis entre si. E a conseqüência desta possibilidade de limitação a Direitos Fundamentais da pessoa humana é o surgimento de teorias cujo intento é descobrir critérios justos e válidos para a averiguação de como se deve proceder quando exista, na prática, uma colisão entre dois Direitos Fundamentais.

Aponta então o referido autor, inicialmente, que "as possíveis limitações que podem ser feitas aos Direitos Fundamentais não são ilimitadas, devendo-se na prática, sempre, preservar um mínimo de direito compatível com o Direito Fundamental o qual se pretende limitar. É a idéia de núcleo essencial’ de um Direito Fundamental".

Partindo-se dessa premissa, que se destina a "evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais", tem-se as demais regras de interpretação que seguem, conforme abalizada doutrina.

Alexandre de Moraes [29] traz à baila diversos princípios e regras interpretativas das normas constitucionais enumerados por Canotilho, tais como: a) unidade da Constituição (a interpretação deve dar-se de modo a evitar contradições entre normas constitucionais); b) efeito integrador (deve-se favorecer primordialmente critérios de integração política e social); c) máxima efetividade ou eficiência (deve ser atribuído à norma constitucional aplicada o sentido que lhe conceda maior eficácia); d) justeza ou conformidade funcional (a interpretação não pode chegar a uma posição que subverta, altere ou perturbe o esquema organizatório-funcional estabelecido pelo constituinte originário); e) concordância prática ou harmonização (exigência de coordenação e combinação de bens jurídicos em conflito, de modo a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros); f) força normativa da Constituição (dentre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior aplicabilidade, permanência e eficácia das normas constitucionais).

Complementando tal entendimento, Enéas Castilho Chiarini Júnior ressalta ainda a proibição de limitações legislativas casuísticas aos direitos e garantias fundamentais e a necessidade de aplicação da razoabilidade e da proporcionalidade nas interpretações conferidas aos conflitos entre estes.

Ainda no dizer de Enéas Castilho Chiarini Júnior, "enquanto que a colisão entre regras é resolvida pelos critérios da especialidade, hierarquia ou pelo critério cronológico; a colisão entre Princípios é resolvida por sopesamento, e é justamente para decidir-se os conflitos entre princípios que surge a norma (regra) da proporcionalidade, cuja origem remonta ao direito germânico". Assim, prossegue o autor afirmando que "a regra da proporcionalidade implica na aplicação de três sub-regras: da adequação, da necessidade e a sub-regra da proporcionalidade".

A primeira delas implica em dizer que a solução adotada deve estar ligada à finalidade que a norma pretendeu alcançar; a segunda legitima a limitação de direitos fundamentais somente quando não existente outra medida tão eficaz quanto a pretendida; segundo a terceira, por fim, deve-se averiguar se os ganhos oferecidos pela medida limitadora compensam os prejuízos advindos. As três sub-regras mencionadas são subsidiárias umas das outras, de modo que só se é permitido analisar uma delas quando preenchidos os requisitos das precedentes.

A razoabilidade, por sua vez, diz respeito à idéia de bom senso na aplicação das normas ditas fundamentais.

Há, portanto, formas de equacionar e superar os entraves, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais, como forma de realizar o princípio da isonomia e, em especial, o da dignidade da pessoa humana. Falta, no entanto, empenho e interesse político.

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Sobre o autor
Adriano Mesquita Dantas

Juiz Federal do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região/PB, Professor Universitário e Presidente da Amatra13 - Associação dos Magistrados do Trabalho da 13ª Região. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pós-Graduado em Direito do Trabalho e em Direito Processual Civil pela Universidade Potiguar (UnP). Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino (UMSA). Foi Agente Administrativo do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região/RN, Advogado, Advogado da União e Diretor de Prerrogativas e Assuntos Legislativos da Amatra13 - Associação dos Magistrados do Trabalho da 13ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS, Adriano Mesquita. O Estado, o direito e a pobreza:: o problema da efetivação dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2762, 23 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18328. Acesso em: 22 dez. 2024.

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