5. Modulação dos efeitos – artigo 27 da Lei 9.868/99
Com a edição da Lei 9.868/99, o legislador legitimou ao Supremo Tribunal Federal em proceder à modulação dos efeitos de suas decisões quando por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, conforme artigo 27, verbis:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Porém, vale salientar que a Suprema Corte nacional já vinha aplicando a modulação dos efeitos de suas decisões bem antes da edição da norma supracitada, fazendo-o por razões de ponderação da declaração de inconstitucionalidade e a necessidade de rigidez da ordem jurídica.
Ao editar tal norma, e inserir na mesma o dispositivo que trata acerca da modulação dos efeitos das decisões pelo Supremo Tribunal Federal, o legislador inseriu duas possibilidades pelas quais poderá ocorrer tal modulação, a saber: i) razões de segurança jurídica e; ii) excepcional interesse social.
Após a edição da Lei 9.868/99, que legitimou ao Supremo Tribunal Federal em proceder à modulação dos efeitos de suas decisões em controle concentrado de constitucionalidade, a Excelsa Corte somente aplicou o artigo 27 da referida legislação em 2004, quando do julgamento da ADI 3.022, reputando constitucional o referido dispositivo da Lei 9.868/99. Ao declarar a inconstitucionalidade de dispositivos normativos vigentes desde 1994, determinou que sua decisão produzisse efeitos somente a partir de 31 de dezembro de 2004.
A doutrina brasileira tem reconhecido a constitucionalidade da nova regra. O autor Zeno Veloso destaca o seguinte ponto (1999, p. 210):
Temos a firme convicção de que é da maior necessidade, utilidade e importância que se preveja em nosso direito constitucional positivo a possibilidade de o STF, em casos excepcionais, e quando o exija o interesse público, estabelecer limites à eficácia da declaração de inconstitucionalidade, com as ressalvas que apresentamos.
De igual forma o doutrinador Eduardo Talamini (2009, p.p. 439):
A possibilidade de excepcionalmente restringir os efeitos retroativos ou mesmo atribuir apenas efeitos prospectivos à declaração de inconstitucionalidade – ao contrário do que possa parecer – confere maior operacionalidade ao sistema de controle abstrato. A regra da retroatividade absoluta e sem exceções acaba fazendo com que o tribunal constitucional, naquelas situações de conflito entre os valores acima mencionados, muitas vezes simplesmente deixe de declarar a inconstitucionalidade da norma, para assim evitar gravíssimas conseqüências que adviriam da eficácia ex tunc dessa declaração [09].
Assinala Luís Roberto Barroso, que "a flexibilização do dogma da nulidade da lei inconstitucional foi saudada como positiva por juristas que nela viram a concessão de uma 'margem de manobra' para o Judiciário ponderar interesses em disputa". [10]
No mesmo entendimento doutrinário posiciona-se Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2004, p. 163):
Reconhecer, portanto, que a norma inconstitucional é nula, e que os efeitos desse reconhecimento devem operar ex tunc, estendendo-os ao passado de modo absoluto, anulando tudo o que se verificou sob o império da norma assim considerada, é impedir a segurança jurídica, a estabilidade do direito e sua própria finalidade.
Porém, em artigo publicado no Jornal Valor Econômico, Fábio Martins de Andrade manifestou o seguinte posicionamento:
[...] É inegável que o argumento consequencialista pode (e deve) ser levado em conta na tomada das decisões judiciais. A depender da área jurídica e das particularidades de cada situação submetida ao exame do Poder Judiciário – e do Supremo – diferentes graus de importância podem ser atribuídos a tais argumentos. De qualquer modo, sempre terão um peso menor e servirão para corroborar ou reforçar os argumentos jurídicos centrais sobre os quais o debate se alicerça. Sua possível aplicação deve ser cogitada somente em situações excepcionalíssimas, quando a atribuição do tradicional efeito "ex tunc" (efeito retroativo) à declaração de inconstitucionalidade conduz a uma situação ainda mais afastada da 'vontade constitucional' em razão do vácuo que pode ser criado em alguns casos.
Esses casos são situações específicas que evidenciam a necessidade de uma solução menos tradicional. Como exemplos, pensem na declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo normativo (1) que criou mais cargos de vereadores do que deveria; (2) que criou certo município; (3) que nomeou um grupo de servidores públicos; (4) que aumentou o vencimento de uma categoria deles. Esses exemplos são rotineiramente examinados pelo Supremo. São casos delicados onde a aplicação pura e simples do efeito retroativo poderia gerar gravíssimas consequências, tanto do ponto de vista fático como também – e especialmente – jurídico. Para tais situações, a aplicação da modulação dos efeitos é plenamente viável, cabível e até recomendável. Observando essas e outras situações de diferentes áreas jurídicas, verificamos que a modulação dos efeitos pode ser salutar em alguns casos. Em outros não.
(…) O dilema com que se defrontou - e voltará a ser defrontar neste mês – a suprema corte é algo no qual deve participar toda a sociedade. Como já alertamos no passado, é hora de definir se a modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais vai ser utilizada como um instrumento efetivo de proteção dos direitos dos fundamentais dos cidadãos ou se vai servir a interesses específicos, nem sempre de caráter republicano.
A Lei nº. 9.868/99 foi alvo da impetração das ADI's nº. 2154 e 2258, que aguardam julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal [11]. Ressalta-se que o Procurador-Geral da República opinou pela improcedência de ambas as ADI's. O Ministro Relator Sepúlveda Pertences votou pela procedência das mesmas, que por sua vez aguardam pedido de vista da Ministra Cármen Lúcia.
Em que pese tenham sido impetradas as ADI's 2154 e 2258, o Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou explicitamente acerca da inconstitucionalidade/constitucionalidade da norma infralegal atacada (artigo 27 da Lei 9.868/99, bem como de outros dispositivos deste diploma normativo). Ao contrário, a Excelsa Corte vem aplicando a modulação dos efeitos prevista no referido dispositivo normativo iterativamente em seus precedentes jurisprudenciais, o que sugere a perda de objeto da questão jurídica posta nas referidas ADI's.
Segundo disposição normativa da Lei nº. 9.868/99, a modulação dos efeitos das decisões será aplicada apenas em sede de controle concentrado, porém o Supremo Tribunal Federal também a utiliza em sede de controle difuso, até mesmo anteriormente à edição da referida legislação. No ano de 2000, quando do julgamento do RE 197.917, em que se discutiu o pedido de inconstitucionalidade da Lei editada pelo Município de Mira Estrela, que fixou o nº. de vereadores além do limite determinado pela Constituição Federal vigent, declarou a Suprema Corte a inconstitucionalidade da referida norma, porém, aplicando-se os efeitos pro futuro, tendo em vista prevalência do interesse público.
Naquela ocasião, considerou-se que a declaração de inconstitucionalidade da referida da norma com efeitos ex tunc geraria grave ameaça ao sistema legislativo vigente, visto que todos os efeitos da norma seriam reputados nulos. Confira-se:
Municípios. Câmara de vereadores. Composição. Autonomia municipal. Limites constitucionais. Número de vereadores proporcional à população. CF, artigo 29, lV. aplicação de critério aritmético rígido. Invocação dos princípios da isonomia e da razoabilidade. Incompatibilidade entre a população e o número de vereadores. Inconstitucionalidade, incidenter tantum, da norma municipal. Efeitos para o futuro. Situação excepcional. (...) Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. (RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 6-6-02, DJ de 7-5-04)
No julgamento do RE 395.092-AgR, a Suprema Corte firmou entendimento acerca da aplicação da modulação no controle difuso de constitucionalidade, conforme transcrito abaixo:
(...) A declaração de inconstitucionalidade reveste-se, ordinariamente, de eficácia ex tunc (RTJ 146/461-462 - RTJ 164/506-509), retroagindo ao momento em que editado o ato estatal reconhecido inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, excepcionalmente, a possibilidade de proceder à modulação ou limitação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, mesmo quando proferida, por esta Corte, em sede de controle difuso. Precedente: RE 197.917/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa (Pleno). Revela-se inaplicável, no entanto, a teoria da limitação temporal dos efeitos, se e quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar determinada causa, nesta formular juízo negativo de recepção, por entender que certa lei pré-constitucional mostra-se materialmente incompatível com normas constitucionais a ela supervenientes. A não-recepção de ato estatal pré-constitucional, por não implicar a declaração de sua inconstitucionalidade – mas o reconhecimento de sua pura e simples revogação (RTJ 143/355 – RTJ 145/339) –, descaracteriza um dos pressupostos indispensáveis à utilização da técnica da modulação temporal, que supõe, para incidir, dentre outros elementos, a necessária existência de um juízo de inconstitucionalidade (...). (RE 395.902-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Julgamento em 7-3-06, DJ 25-8-06). No mesmo sentido: AI 720.991, Rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, julgamento em 19-5-09, DJE de 27-5-09; RE 438.025-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-3-06, DJ 25-08-06. AI 421.354-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-3-06, DJ 15-9-06, AI 463.026-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 21-2-06, DJ 15-9-06.
Quando do julgamento da AC 189-MC-QO, o Supremo Tribunal novamente entendeu que a modulação dos efeitos aplica-se também ao controle difuso de constitucionalidade, conforme transcrito abaixo:
Embora a Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso. Ressalte-se que não se está a discutir a constitucionalidade do art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999. Cuida-se aqui, tão-somente, de examinar a possibilidade de aplicação da orientação nele contida no controle incidental de constitucionalidade. (...) assinale-se que, antes do advento da Lei n. 9.868, de 1999, talvez fosse o STF, muito provavelmente, o único órgão importante de jurisdição constitucional a não fazer uso, de modo expresso, da limitação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. (...) No que interessa para a discussão da questão em apreço, ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos. (AC 189-MC-QO, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-6-04, DJ de 27-8-04)
Não obstante tenha o Supremo Tribunal Federal, conforme acima citado, se posicionado pela aplicação da modulação no controle difuso, quando do julgamento da AC189-MC-QO, a 2ª Turma do colendo Tribunal entendeu pela inaplicabilidade do instituto da mitigação dos efeitos ao julgar o RE 395.654-AgR, cujo excerto transcreve-se:
RE 395.654-AgR, Rel. Min. Carlos Britto, Primeira Turma, DJ 3-3-2006; AI 428.886-AgR, Rel. Min. Eros Grau, Primeira Turma, DJ 25-2-2005; e RE 430.421-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, Primeira Turma, DJ 4-2-2005). (AI 666.455, Rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, julgamento em 20-6-07, DJ de 8-8-07)O Agravante alega que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei municipal somente poderiam operar-se ex nunc, em virtude de razões de segurança jurídica e de prevalência do interesse social. Todavia, este Supremo Tribunal decidiu que a norma apontada como de regência para a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade — art. 27 da Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999 — não se aplica ao caso, pois se impõe no controle abstrato de constitucionalidade (
Destaca-se, ainda, que para o Supremo Tribunal Federal modular os efeitos de suas decisões, exige-se o quorum qualificado de 2/3 dos Ministros, conforme exigência de quorum qualificado previsto na Lei 9.868/99 [12].
Ressalte-se que a modulação dos efeitos também foi positivada na Lei 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que dispõe acerca do processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, no seu artigo 11, que assim dispõe:
Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seus trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".
Portanto, com a edição das Leis nº. 9.868/99 e 9.882/99 houve a ampliação da possibilidade de o STF proceder à modulação de suas próprias decisões, relativizando, assim, a teoria da nulidade, quando por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, no controle incidental ou concentrado de constitucionalidade.