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Biodireito: em defesa do patrimônio da humanidade

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Há mais de cinqüenta anos foram considerados como criminosos de guerra vinte médicos pela prática de experimentos realizados em seres humanos. O julgamento dessas pessoas foi realizado pelo famoso Tribunal de Nuremberg, um tribunal de exceção, porém necessário, criado pelas circunstâncias brutais de uma guerra, que, além das sentenças punitivas, sete foram condenados a pena de morte. Através de um documento chamado Código de Nuremberg essas informações foram divulgadas assim como as primeiras recomendações internacionais sobre a ética nas pesquisas científicas em seres humanos.

Assim, o mundo acordava para o poder do advento de novos métodos, novas técnicas e do avanço da tecnologia. Estava em debate a questão ciência versus ética. O "poder fazer" absoluto, limitado pela natureza, contra o "fazer ou não o que posso", tendo como limite a própria consciência. As ciências biomédicas necessitavam de um paralelo para discutir e definir até onde a evolução das pesquisas poderiam caminhar. Estas ciências tinham dois objetivos portanto: a evolução biológica-cultural e a ética.

Foi então que o Van Rens Selaer Potter, em 1971, trouxe o termo Bioética, que se traduz por um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço das ciências biomédicas. Nesta abertura, as pesquisas passaram a ter como resguardo a colaboração de outras áreas, como Antropologia, Sociologia, Filosofia, Teologia, Psicologia, entre outras. Com o Direito não foi diferente. Novos estudos jurídicos foram realizados, trazendo uma nova disciplina, voltada à discussão da Bioética: o Biodireito. Descobertas fundamentais na atuação das ciências biomédicas são hoje examinadas ao lado dos Direitos Fundamentais devido ao furor da repercussão causada por este tema que paraleliza o vital equilíbrio entre a vida humana, a ética e os direitos dos cidadãos.

A revolução terapêutica, mas principalmente as manipulações sobre a vida e o surgimento de novas formas de procriação, a utilização do ser humano e de seus elementos levaram à produção de novas normas jurídicas, sendo que em certas ocasiões surgem situações emergenciais, até mesmo pelo fato de todas estas descobertas estarem envolvidas em grandes centros. Obrigatoriamente surgiram normas de proteção ao ser humano em seu aspecto psíquico e físico, mudanças na legislação nacional e internacional, novas interpretações, normas profissionais, jurisprudências e doutrina.

Existem princípios gerais baseados na dignidade, respeito, a inviolabilidade, integridade e proteção ao corpo humano, diante do comércio que hodiernamente se formou assim como a extra-patrimonialidade do corpo humano, a exploração para experimentação, a não remuneração ao doador e o seu anonimato, a exclusão da ligação biológica entre o doador e a criança, o regime aplicável à transfusão de sangue, a utilização dos órgãos e elementos do corpo humano; a liberdade sexual, a esterilização, a interrupção da gravidez, a vontade de procriação e sua assistência médica, a proteção do embrião humano, a filiação do embrião, a regulamentação dos nascimentos, os efeitos da filiação, a utilização de dados genéticos, a necessidade terapêutica e as garantias judiciárias.******


Procriação Assistida

Em matéria jurídica específica relacionado à reprodução assistida, ao contrário das técnicas de reprodução que evoluem a cada dia, nada há, principalmente porque as discussões ainda estão em curso. As grandes dúvidas são: "quem é a mãe da criança gerada mediante as técnicas de reprodução assistida? a mulher que gerou ou a que forneceu o óvulo? ou quem a contratou?"; "quem poderá ser beneficiado destas técnicas? solteiros, viúvos, casados ou homossexuais?"; "quais serão os órgãos fiscalizadores?"; "quais os efeitos do congelamento sobre os embriões?". As práticas estão liberadas, já que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, II, Constituição Federal). Lei não há.


Eutanásia

Hoje a discussão é ampla sobre o direito de morrer. Um projeto de lei elaborado estabelece critérios para a legalização da "morte sem dor", e, segundo os especialistas, é um projeto bastante falho. No Brasil a eutanásia é crime, mas também se discute a inclusão de itens no Código Penal, como por exemplo, a exclusão de ilicitude por deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, dada a morte como iminente e inevitável, atestada por médicos, com o consentimento do paciente ou, na sua impossibilidade de seus familiares. Para o jurista Ives Gandra Martins, "o homem não tem o direito de tirar a vida do seu semelhante, mas desligar aparelhos não é matar. Não há polêmica porque não há choque nenhum com o direito canônico ou o direito natural. O direito à vida é se manter vivo com os próprios meios".


Eugenia

O termo "eugenia" foi criado por Francis Galton, que o definiu como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". A questão fica em saber quando a eugenia passa a ser racismo, sendo que este é banido e fortemente combatido pelo nosso ordenamento jurídico. Este assunto remete ao aborto eugênico, de grande discussão nos dias atuais em que se fala em controle de natalidade devido a maior espectativa de vida do homem. A lei brasileira admite alguns casos de aborto, que não inclui, por enquanto, os casos em que o feto é portador de doença grave e incurável.

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Clonagem

A clonagem de seres humanos ainda é uma discussão ética. Muitas avaliações estão sendo feitas. O temor sobre esta técnica é a possibilidade dela ser usada para promoção de raças em detrimento de outras. No Brasil, a Lei 8.974/95 dispõe que a manipulação genética de células germinais humanas, a intervenção em material genético humano in vivo, a não ser para tratamento de defeitos genéticos e obedecendo-se a princípios éticos, é crime, passível de prisão, de 3 meses a um ano. Outro aspecto importante é a patente. A Lei 9.279/96 dispõe que "o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta" não são patenteáveis. Assim, não se concede carta-patente sobre um clone. Há, ainda, dois projetos de lei que proíbem o uso da técnica de clonagem em seres humanos.


Projeto Genoma Humano

O projeto Genoma Humano é um consórcio internacional, composto pelos EUA, Europa e Japão, que tem por objetivo mapear todos os genes da espécie humana, com os seguintes objetivos na área da saúde: a melhoria e simplificação dos métodos de diagnóstico de doenças genéticas, a otimização das terapêuticas destas doenças e a preservação de doenças multifatoriais.


Cirurgia de adequação de sexo do transexual

As leis e as jurisprudências não refletem, ainda, a licitude das intervenções realizadas em transexuais. Mas já observa uma nova noção de sexo, abandonado o conceito puramente fisiológico, e adotando os componentes genético, fisiológico, anatômico, social e psicológico. No campo jurídico, o princípio da indisponibilidade do corpo humano está deixando a rigidez, admitindo-se a que a cirurgia é necessária ao indivíduo transexual recuperar sua saúde, exercendo um direito constitucional.

Como se viu, a inviolabilidade da pessoa humana vê-se hoje ameaçada por manipulações excepcionais, com a utilização de técnicas gerais, para o desenvolvimento da pesquisa científica, muitas vezes, decorrentes das lógicas do desejo e do lucro. E em face desse perigo torna-se necessário a produção de normas de emergências, assentadas em regras bioéticas ou deontológicas. Estas regras, muitas vezes, não garantem os Direitos e Liberdades Fundamentais, e precisam de uma reformulação não apenas teórica, mas pragmática, que lhes dêem efetividade e eficácia. Temos como o corpo humano, os direitos da personalidade, a vida familiar, enfim conceitos que precisam ser reestudados, para que não obstem a evolução. Em alguns países a temática vem sendo estudada com profundidade, onde ressalta-se que a pessoa se encontra, cada vez mais, em confronto com novo poder, com "o poder científico". Os dilemas éticos e sociais, ao lado das decisões em torno da Bioética, estão associados como o "aborto", "esterilização", "reprodução assistida", "genética", "técnicas alternativas de reprodução", "acompanhamento do suicídio", "morte", "operações transexuais", "comercialização e doação de órgãos", "a nova teoria da sexualidade", "casamento entre pessoas do mesmo sexo e outros temas.

O Biodireito se desenvolve. Surge a Quarta Geração de Direitos Fundamentais. A busca é o equilíbrio: as normas não podem impedir o progresso científico, e este, não pode passar por cima dos direitos que foram conquistados, e sem a necessidade de cobaias, mas, muitas vezes, com o sacrifício de vidas humanas.

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Sobre o autor
Luís Augusto Mattiazzo Cardia

advogado em Bauru (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDIA, Luís Augusto Mattiazzo. Biodireito: em defesa do patrimônio da humanidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 39, 1 fev. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1836. Acesso em: 23 nov. 2024.

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