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O acordo dentro das novas formas de contratação.

Retomando a discussão entre IRTI e OPPO

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03/02/2011 às 15:17
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4. UMA BUSCA POR UMA NOVA PERSPECTIVA

Obviamente, seria muita pretensão dizer que se pode alcançar soluções aos problemas apontados nas poucas páginas de um artigo. No entanto, parece necessária a tentativa de esboçar mais algumas linhas deste quadro.

Na busca por estes novos contornos, parece interessante traçar a importância da boa-fé objetiva, no âmbito da relação contratual. Este princípio, como destaca Paulo Nalin, decorre do princípio da solidariedade. [34] De toda a sorte (atalhando boa parte desta discussão, em vistas do objetivo deste texto), o problema está em inferir um conteúdo próprio a este preceito. [35]

Falar de sua origem enquanto a solidariedade constitucional, no entanto, é dar uma excelente pista de sua dimensão. Parece correto atribuir o seu conteúdo tendo em vistas o que se condicionou chamar de deveres laterais de conduta, como a equidade, transparência e confiança. [36]

Parece, portanto, que é mais fácil entendê-la em seu aspecto dinâmico, dentro das relações em que se desenvolve.

Como bem destaca o professor Nalin, a primeira interpretação que se deu a este princípio foi a conduta do homem médio. No entanto, este tipo de significação daria espaço demasiado ao juiz para escolher o que seria esta conduta, parecendo correto inferir que o faria de acordo com seus próprios valores. [37]

Sugere o professor que definir seu conteúdo passaria, necessariamente pela análise das pretensões, pelos interesses do outro. Em suas palavras:

Analisa-se a posição do titular da obrigação, me execução, se ele agiu de forma a satisfazer, plenamente, as expectativas alheias, não gerando obstáculos desnecessários, encargos pessoais e financeiros inúteis, enfim, ônus subjetivos patrimoniais ou existenciais (morais) indesejados… O projeto é incógnito e construtivo dos prismas conceituais, (…) recorrendo a valores e conceitos jurídicos e, até, metajurídicos, como a confiança, a diligencia do declaratário ao interessar pela intenção do outro contratante, o socialmente relevante da declaração de vontade, a razoabilidade e os princípios gerais de direito (…). [38]

Esta concepção aberta, em forma de cláusula geral, parece interessante aos novos tempos, em que a noção regente é a necessidade de se reequilibrar os contratos de massa, dando-lhes interpretações e modificações capazes de dotá-los de maior equidade e justiça entre as partes, na medida em que desigualam suas forças.

Por fim, tem que se averiguar a questão da função social do contrato, instituto previsto expressamente pelo texto do novo Código Civil Brasileiro. [39]

Eroulths CORTIANO JR. destaca a importância dessa funcionalização dos institutos de Direito Civil e o papel determinante que o Judiciário trará ao assunto, sobretudo quanto a institutos patrimoniais. Os conceitos jurídicos expressos no texto do novo código têm um lapso de significação, que precisa passar pela realidade dos fatos. [40]

Nesta busca pelo conteúdo deste princípio, parece bastante interessante a consideração que fazem Márcia Carla Pereira Ribeiro e Irineu Galeski Júnior:

Função social, então, permite a transição entre os interesses das partes envolvidas no contrato e terceiros, estranhos ao contrato, mas que de alguma forma encontram-se significativamente a ele atrelados. [41]

A função social do contrato, neste sentido, deveria significar um aporte dos valores constitucionais, referentes à dignidade da pessoa humana e solidariedade, ainda que esta visão possa acarretar, por vezes, uma limitação no princípio dos efeitos relativos do contrato. Obviamente, isto não desobriga o Estado de cumprir as suas funções, mas permite que em busca dessas finalidades, ele faça uso das novas estruturas dos institutos privados, agora institucionalizados. [42]

Nalin aponta que tal princípio diz respeito a uma reestruturação do conceito de contrato, assim como acontecera antes com a propriedade. Vemo-nos em frente a um novo momento, em que os valores constitucionais devem ser a base do ordenamento, e, em última ratio, o diploma que deve conduzir à análise de qualquer instituto e relação. [43]

A solidariedade será, aqui também, a noção que ocupará o local de destaque, permitindo que se fale em dimensão intrínseca e extrínseca da função social. Pela primeira, se quer significar o conjunto de novos valores positivados, e, pela segunda, se quer dar a dimensão de acordo com a finalidade coletiva dos contratos, levando em conta suas repercussões dentro das comunidades em que se desenvolvem. [44]

Falar-se em solidariedade, portanto, é forma de limitar essa autonomia dos contratantes, em vistas das funções que devem desenvolver dentro da coletividade, cumprindo os valores constitucionalmente assinalados. Esses valores precisam informar toda e qualquer interpretação que se faça de um contrato.

Obviamente, esse princípio descrito não dá conta do conteúdo da função social, não se confunde com seu conceito, mas denota, outrossim, uma forma de abordá-la, em vistas das reais necessidades do texto constitucional. [45]

Parece estranho falar em uma funcionalização social do contrato, sobretudo em vistas do princípio dos efeitos relativos dos contratos, que limitariam seus efeitos às partes contratantes.

Porém, parece correto inferir que esse corolário da autonomia privada encontra limites dentro do novo constitucionalismo. O individualismo exacerbado dos negócios jurídicos precisa ser controlado, levando-se em consideração os interesses envolvidos nas relações que se desenvolvem. [46]

Nas palavras mais abalizadas de FACHIN:

Não se trata de aniquilar a autonomia privada, mas sim de superar o ciclo histórico do individualismo exacerbado, substituindo-o pela coexistencialidade. Quem contrata não mais contrata com quem contrata, eis aí o móvel que sinaliza, sob uma ética contratual contemporânea, para a solidariedade social. [47]

Por fim, parece bastante interessante a colocação de PIANOVISK, Carlos Eduardo Ryuzik, que vê no conteúdo da função social do contrato o exercício de liberdades, não somente em seu aspecto contratual, mas demais aspectos constitucionalmente albergados. Em suas palavras:

Vale dizer, a liberdade formalmente assegurada nos contratos não é exercida apenas com fundamento em si mesma, mas, também, com fundamento em outros perfis da liberdade que integram o sentido funcional do Direito Civil e em outros valores jurídicos que não se resumem à liberdade (ainda que com ela possam se relacionar) individual, mas que também possuem status constitucional – podendo remeter-se a uma esfera que extrapola as partes contratantes. [48]

A boa-fé objetiva e a função social do contrato, nos termos discutidos neste tópico, parecem ser construções teóricas interessantes para limitar a flagrante iniquidade presente nas "trocas sem acordo", por limitarem o exercício de poder do proponente.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão iniciada por aqueles dois autores, no apagar das luzes da década de noventa, abre os olhos a uma discussão que parece essencial ao perfil assinalado para o Direito Civil contemporâneo.

O que eles puderam indicar naquelas linhas, com uma maestria impar, foi o fenômeno da despersonalização marcante dos novos modelos contratuais e como a falta de paridade em sua formação é mascarada por meio de uma simples repetição da teoria da declaração unilateral de vontade.

Diante das mais variadas teorias que foram levantadas, não parece correto inferir que estes contratos sejam "contratos sem acordo" ou "não contratos". Em seu bojo se engendra acordo, nem que seja meramente pela confluência de duas declarações unilaterais, e não mais pelo consenso. [49]

O acordo, nesta perspectiva, muda seu foco da ampla negociação entre as partes, para se resolver dentro da possibilidade de propor os termos do acordo e aceitá-los em sua integralidade, dando operatividade às novas relações massificadas de troca.

Obviamente, essa percepção trará conseqüências graves ao plano obrigacional, eis que se retira de uma das partes a possibilidade de negociar os termos do contrato do qual fará parte.

Meramente repetir a teoria da formação do contrato enquanto encontro de duas declarações unilaterais de vontade (uma de proposta e outra de aceitação) não resolve este problema. Como se indicou, os ordenamentos tentaram dar conta deste fenômeno arrefecendo as desigualdades entre as partes, mas isso não faz com que essas relações dêem conta dos anseios plasmados em âmbito constitucional, sobretudo a dignidade da pessoa humana.

Rediscutir este tema, com base nos valores expressos no constitucionalismo, e não mais com a visão oitocentista, centrada em valores como a autonomia da vontade e o individualismo parece ser o grande desafio do Direito Civil atual.

A tradicional teoria do contrato, chegado este ponto, mostra-se como um quadro brilhantemente pintado ao longo desses dois séculos. Contudo, ele esconde em suas belas matizes e linhas bem estruturadas uma grande desigualdade latente, e os interesses do capitalismo destes tempos.

Neste especial aspecto, a função social do contrato e a boa-fé objetiva são aparatos instrumentais interessantes para redesenhar a estrutura de um novo modelo contratual, baseado não mais em um pretenso individualismo frio, aos moldes dos códigos oitocentistas, mas num real antropocentrismo, um indivíduo como finalidade do sistema, e observado em vistas das relações concretas que desenvolve.

A sociedade não irá estacionar seu desenvolvimento, nem o capitalismo cessará a evolução de suas formas. É preciso que se pegue o bonde da história, para que não se perca a oportunidade de rever as injustiças que foram criadas.

Esta necessidade permite lembrar uma interessante parábola, descrita por Oscar Wilde em "O Retrato de Dorian Gray".

Assim como o quadro que fora pintado por Basil, do jovem cujo nome aparece no título da obra, este retrato pintado pelos anos de vigência da teoria dos contratos esconde boa parte das iniquidades que gerou e esconde.

Na história de Wilde, quando Dorian resolveu encarar seu retrato já era tarde demais, e o desespero acabou por levá-lo à morte. Ao Direito Civil cabe não cometer o mesmo erro. É imperativo que os juristas reflitam sobre tudo o que foi feito e readequar as cores e formas pintadas, acrescentando novas matizes, que somente agora passam a ser discutidas.

Não se pode permitir que a discussão entabulada por aqueles dois autores morra no silêncio, sem resposta às suas questões. É preciso que ela seja reaberta, para que se possa refletir sobre soluções aos problemas. O momento talvez seja o mais acertado, em vistas do desenvolvimento da teoria do Direito Civil constitucionalizado.

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Readequar as molduras tradicionais, como dissera Fachin, para colocar a pessoa enquanto centro axiológico da experiência jurídica parece ser o dever do jurista contemporâneo.

Em curtas linhas, valendo-se das expressões cunhadas por aqueles dois autores que deram azo a estas elucubrações, é preciso reumanizar o direito, sobre pena de vê-lo consumido como Dorian, pelo retrato criado pelos seus teóricos.


BIBLIOGRAFIA:

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Sobre o autor
João Rubens Pires Balbela

Estagiário no Escritório Losso, Tomasetti e Leonardo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BALBELA, João Rubens Pires. O acordo dentro das novas formas de contratação.: Retomando a discussão entre IRTI e OPPO. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2773, 3 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18418. Acesso em: 27 abr. 2024.

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