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A bioprostituição e o direito

01/02/2001 às 00:00
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I – INTRODUÇÃO

Quem se candidata a ter um dedo do próprio pé amputado para mais tarde tê-lo reimplantado? Quem se sujeita a testar remédios com efeitos colaterais desconhecidos em troca de algum dinheiro? Muitas pessoas. Bem mais do que possamos imaginar, envoltas em um mundo camuflado por grandes descobertas e avanços, que não deixam vestígios do longo caminho trilhado até o êxito.

Em tempos de biodiversidade, bioética, biodireito e biopirataria, surge mais uma inovação, a chamada BIOPROSTITUIÇÃO, prática antiga, de freqüente ocorrência, mas pouco, muito pouco divulgada. São pessoas que se submetem à posição de cobaias em clínicas de testes, onde são avaliados remédios experimentais e tratamentos inovadores, sendo que todos os riscos aos quais se submetem são dissimulados por valores que variam de US$100 a US$200 por dia.

Neste trabalho será abordada a relação entre essa prática, comum em países como os Estados Unidos, e o nosso Direito. Seria lícito o aluguel do nosso próprio corpo? Até que ponto vai a responsabilidade dessas clínicas, caso a "cobaia" sofra seqüelas decorrentes dos testes?

É o que passaremos a analisar, em uma abordagem introdutória, onde se sugere inclusive a pesquisa e a indagação acerca deste interessante tema, que, apesar de raramente discutido no mundo jurídico, é paradoxalmente tratado com freqüência quando envolve cobaias animais.


II – A BIOPROSTITUIÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL

Um simples anúncio em jornal recrutando "voluntários de pesquisa" que podem ganhar até US$ 1000, não levanta qualquer suspeita sobre o que se opera na realidade nesses laboratórios que realizam os chamados testes de "fase um".

O que se almeja, na realidade, é constatar a tolerância do organismo de um ser humano a determinados remédios, sendo que, aceitas as regras, as pessoas inscritas terão de passar dias "internadas" nas clínicas, cumprindo o determinado.

Antes desses voluntários serem submetidos aos testes, são informados sobre os possíveis efeitos colaterais (que variam da tontura à disfunção sexual) quando só então podem dar sua autorização, assumindo todos os riscos que a bioprostituição oferece. No entanto, considerando-se os milhões de dólares movimentados por essa prática, e ainda, o nível cultural da maioria das pessoas que se submetem a esse tipo de teste, é duvidoso que essas informações sejam prestadas com total esclarecimento aos "voluntários".

Ademais, presas fáceis da futura extensão da bioprostituição aos países subdesenvolvidos, as cobaias do terceiro mundo, cidadãos famélicos e miseráveis, jamais terão a real noção dos riscos dessa prática.

Apesar da extrema necessidade de serem desenvolvidas drogas para curar ou controlar doenças graves que atingem parte da população, é inadmissível os riscos a que são submetidas pessoas de baixa classe social, que, seduzidas pelo "dinheiro fácil", colocam suas vidas em perigo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, vários casos de "cobaias" já tiveram repercussões negativas, como o de Nicole Wan, uma universitária de 19 anos, que em 1997 faleceu de ataque cardíaco, após ter recebido por engano uma super dosagem de anestesia.

As leis norte-americanas tornam obrigatório o consentimento por escrito dos voluntários, após uma "cristalina" discussão sobre os perigos em potencial dos testes. As instituições responsáveis garantem tratamento gratuito somente em casos de sintomas persistentes, desvinculando-se totalmente nos casos de perda de qualidade de vida ou de incapacidade de trabalho dos voluntários. No caso de seqüelas graves ou morte, resta a essas pessoas ou aos seus familiares, conformação ou muita persistência para lutar por uma indenização justa.

Inútil também cogitarmos das apólices de seguro, pois raramente cobrem problemas decorrentes de testes como esses, o que nos leva a refletir sobre a responsabilidade civil e penal dessas clínicas de testes.

No Brasil, foram criadas em 1996 Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde, e apesar de não se saber ao certo sobre a incidência de testes de "fase um" no país, essas normas proíbem que o voluntário de pesquisas receba qualquer forma de remuneração, quando muito, permitem o reembolso por dia perdido de trabalho.

Considerando-se a falta de condições técnicas em nosso país, entre outros motivos, conclui-se que é muito raro um remédio ser totalmente desenvolvido no Brasil. Porém, suspeita-se que esses testes podem ser realizados entre nós à revelia dos comitês de ética, o que dificulta qualquer aprofundamento jurídico na questão, visto que, sem fatos concretos, o Direito torna-se frágil.


III – DA RESPONSABILIDADE POR DANOS CAUSADOS A OUTREM

A Constituição Federal de 1988 no art. 5º, V, dispõe: "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem".

Além da supremacia da nossa Carta Magna, o art. 159 do Código Civil Brasileiro também trata da responsabilidade civil extracontatual, existindo ainda, no mundo jurídico, diversas normas que dispõem sobre a responsabilidade do homem em relação aos danos causados a terceiros.

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Em todos os âmbitos de nossa vida, devemos sempre exercer o nosso direito até um determinado ponto, ou seja, nosso direito termina onde começa o do outro. Se ferimos o direito de outrem, nada mais justo do que ressarcirmos aquele que sofreu o prejuízo.

É indubitável a aplicação da regra da responsabilidade civil subjetiva, baseada na teoria da culpa, nos casos em que envolvem a chamada bioprostituição. Ora, se existe um acordo entre partes, com prestações sinalagmáticas e prazo determinado, é óbvio que se espera uma reparação por eventuais danos causados a uma das partes em decorrência de atos relativos ao contrato.

No caso em tela, aqueles que são submetidos à amputação de membros do corpo humano para testarem métodos de reimplante, podem, inclusive, reclamar indenização por danos materiais e morais decorrentes de danos estéticos causados pelos testes. Veja-se a importante decisão do STJ que dispõe: "Responsabilidade Civil. Dano estético. Perda de um dos membros. Acumulação com dano moral."(STJ;AREG 100.877, rel. Min. Barros Monteiro,03.9.96)

Como os casos de bioprostituição são raros, senão camuflados em nosso país, é conveniente a comparação destes aos casos de erro médico, abordados com freqüência em nossos tribunais.


IV – DA INDISPONIBILIDADE DO CORPO HUMANO

Sobre a questão da ilicitude de quem se submete a prática da bioprostituição, convém mencionarmos o princípio da indisponibilidade do corpo humano. Ora, todo o ser humano é dono de seu próprio corpo dispondo-o da forma que desejar, porém esta disponibilidade é relativa.

Não se trata aqui da simples disposição de sangue ou cabelo, por exemplo, mas da disposição que resulta em inviabilidade à vida ou à saúde, direitos basilares, expostos ao longo do art. 5º da Constituição Federal de 1988, e como inovação, no art. 13 do Projeto do Código Civil. É ler: "Art. 13. Salvo exigência médica, os atos de disposição do próprio corpo são defesos quando importarem diminuição permanente da integridade física ou contrariarem os bons costumes".


V – CONCLUSÃO

Infindável, portanto, é a discussão sobre a bioprostituição e os seus efeitos não só no âmbito jurídico, mas também no âmbito social.

Todavia, em um campo tão pouco debatido, torna-se arriscado opinar sobre veias mais profundas, interessando apenas demonstrar-se neste trabalho a existência de tal prática e todas as possíveis vertentes acerca do assunto.

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Sobre a autora
Leila da Costa Loureiro

advogada em São Paulo (SP), pós-graduanda em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUREIRO, Leila Costa. A bioprostituição e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1843. Acesso em: 23 abr. 2024.

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